Opinião

Separação obrigatória de bens para maior de 70 anos: contrassenso sistêmico

Autores

  • David Igor Rehfeld

    é advogado sócio do escritório Pires Kaufmann e Rehfeld e membro do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFam).

  • Victor Pacheco Merhi Ribeiro

    é advogado graduado pela UFV (Universidade Federal de Viçosa) sócio do Ribeiro e Cury Sociedade de Advogados especializado em direito civil com foco na atuação de causas envolvendo direito de família e sucessões.

30 de abril de 2023, 7h12

Sem data marcada para julgamento, mas com previsão para este ano ainda, o Supremo Tribunal Federal irá decidir se é constitucional o regime da separação obrigatória de bens no casamento de pessoas maiores de 70 anos e a consequente aplicação ou não dessa regra às uniões estáveis. A matéria é objeto do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.309.642, que, no dia 30 de setembro de 2022, teve reconhecido pelo Plenário o caráter constitucional da controvérsia, bem como a sua repercussão geral (Tema 1.236) [1].

A discussão gira em torno da constitucionalidade do artigo 1.641, II, do CC/2002, nos termos do qual "é obrigatório o regime da separação de bens no casamento da pessoa maior de 70 (setenta) anos" e se tal limitação seria ou não aplicável também a união estável. Isso porque, em maio de 2017, o próprio STF fixou uma tese no sentido de que seria inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, considerando inconstitucional a previsão do artigo 1.790 do CC/2002. Por um silogismo simples, não é difícil perceber que, se é inconstitucional a diferenciação entre cônjuges e companheiros, caso se entenda também pela inconstitucionalidade da previsão da obrigatoriedade da separação total de bens para os casamentos após os 70 anos, também assim o será para as uniões estáveis constituídas após tal idade.

Para saber se tal previsão mostra-se constitucional ou não é necessário que se volte o olhar para o aspecto histórico e funcional da proibição em análise. O artigo 258, parágrafo único, do Código Civil de 1916 previa que seria obrigatória o regime da separação total de bens do maior de 60 e da maior de 50 anos.

Tal previsão podia ser justificada uma vez que em 1900 a expectativa média de vida do brasileiro era de 30 anos [2] e, assim, aqueles que atingiam a idade superior ao limite legal estavam basicamente vivendo mais que o dobro do que a população média.

Além disso, é preciso levar em conta o que se entendia por família à época em que tal código foi editado: somente era considerada família, para fins de tutela e atenção jurídica, a união devidamente formalizada entre pessoas de sexos diversos, com o objetivo de procriar, baseada em um ideal religioso, hierarquizado e subservientes [3].

Nessa época, a mulher era impossibilitada de ingressar no mercado de trabalho e a família era sustentada financeiramente pelo homem, assumindo a figura do provedor. A restrição etária para a escolha do regime de bens derivava justamente de uma sociedade patriarcal e que culminava na proteção do patrimônio do homem bem-sucedido, que, em caso de idade já avançada para os parâmetros da época, desejasse se casar "tardiamente".

O aumento da expectativa de vida média da população (atualmente 75,9 anos) aliada à transição da família clássica, enxergada como unidade econômica, para uma compreensão de família igualitária, tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, reafirma uma nova feição, agora fundada no afeto [4]. Com efeito, a sociedade moderna reconhece as mais diversas formas de famílias, levando em consideração o princípio constitucional da pluralidade de arranjos familiares, podendo-se citar não somente as famílias matrimonializadas, mas também as informais, monoparentais, reconstituídas, homoafetivas, multiparentais, entre outras.

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Tal feição foi inserida na Constituição de 1988 e deu origem a diversas inovações legais subsequentes, inclusive no tocante à terceira idade. É com esse pano de fundo que se deve analisar a constitucionalidade da proibição em questão.

O Código Civil de 2002, apesar de aumentar a idade da previsão para 70 anos e acabar com a distinção de gênero, manteve a mesma lógica de tutela patrimonial por parte do Estado, impedindo o exercício da autonomia da vontade por parte dos indivíduos que desejassem optar pelo regime de bens do "casamento tardio".

O Estado democrático de direito teve suas origens no Estado liberal francês do século 19 e, assim, as legislações civis foram construídas tendo a liberdade como seu bem maior. Nesse sentido, a legislação brasileira procura preservar a autonomia da vontade nas relações entre particulares, tendo como marca um conceito nitidamente negativo de liberdade: permite-se ao particular a realização de tudo aquilo que a lei não proibir.

Deste ideal de liberdade de agir, derivado da não-intervenção do Estado na vida privada, surge a capacidade de autorregulamentação dos interesses consubstanciado no Princípio da Pact sunt Servanda (pactos devem ser respeitados — em tradução livre) nas relações jurídicas privadas.

Assim, perante o conceito adotado no Estado brasileiro, o regime de bens é um estatuto patrimonial derivado do casamento (e/ou da união estável), onde prevalece uma natureza de autorregulamentação dos interesses do casal na constituição e gestão do seu patrimônio [5].

Contudo, a disposição constante do artigo 1.641, II, do CC/2002 parece desafiar a forma como as relações sociais foram definidas no Direito brasileiro, limitando a autonomia da vontade onde, ao que nos parece, não deveria haver limitação.

Veja-se, por exemplo, o instituto da União Estável, que foi equiparado ao casamento. Nele, inexiste impedimento de que seja formalizada a união estável, por pessoa com mais de 70 anos, com a imposição de regime de separação total, uma vez que a escritura de união estável tem natureza declaratória, e não constitutiva.

Referido entendimento restou consolidado no Enunciado 261 da III Jornada de Direito Civil [6] ("A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade") e vem sendo amplamente aceito pela jurisprudência pátria (v.g. REsp 1.318.281).

Essa jurisprudência não deixa outra alternativa ao maior de 70 anos: aquele que, maior de 70 anos, deseje se casar somente poderá fazê-lo optando pelo regime da separação total. Alternativamente, poderia declarar previamente a união estável para, posteriormente, convertê-la em casamento, elegendo regime diverso.

Some-se a este fato que, segundo as regras de sucessão do direito brasileiro, o cônjuge (companheiro) é herdeiro necessário nos termos do artigo 1.845 do Código Civil e, a sucessão ocorre independentemente do regime de bens adotado, nos termos do artigo 1.829 do mesmo código.

Por fim, mas não menos importante, e retomando a ideia de autonomia da vontade, em especial sob um aspecto da senilidade, temos que a legislação impositiva capaz de afastar a vontade dos nubentes gera até mesmo estranheza se confrontada com o conteúdo da EC/88 [7] de 2015, conhecida popularmente como PEC da bengala, que alterou a idade para a aposentadoria compulsória do servidor público geral. De acordo com a alteração realizada na Constituição, o servidor público somente seria aposentado de forma compulsória aos 75 anos de idade e não mais ao 70 anos.

Diante disso, temos que a legislação constitucional considera que o cidadão médio se encontra apto ao trabalho até os 75 anos de idade, contudo, não pode eleger o regime de bens para seu matrimônio após os 70 anos.

Seria um contrassenso admitir que ministros de tribunais superiores podem tomar decisões que impactam na vida de toda a população brasileira até os 75 anos completos e o cidadão comum não poderia eleger o regime de bens para o seu matrimônio a partir dos 70 anos.

Após a recente aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski, atualmente, na Corte Máxima, apenas a ministra Rosa Weber tem mais de 70 anos, sendo certo que completará 75 ainda este ano, deixando vaga mais uma cadeira na Suprema Corte. Contudo, em menos de cinco anos, os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin terão todos atingido 70 anos completos.

Se estes ministros entenderem que o cidadão brasileiro não é capaz de dispor acerca de seu próprio patrimônio, optando pelo regime de bens que melhor lhe aprouver quando do casamento após os 70 anos, como poderão sustentar suas decisões após esta idade?

Um caso curioso a ser observado (e exemplificativo do quão inócua se mostra a proibição ora analisada) é o fato de o atual presidente da República contar 77 anos e ter contraído matrimônio no ano passado. Lula foi eleito por mais de 60 milhões de brasileiros para tomar decisões que influenciarão diretamente o futuro de toda a nação, mas pela legislação em vigor, não teve autonomia para escolher com qual regime de bens gostaria de se casar.

Como aduz a desembargadora Andréa Pachá em seu livro Velhos são os Outros [8], para diversas tribos e civilizações, a idade era sinônimo de experiência, poder, sabedoria. Para a lei brasileira, entretanto, como visto, não é bem assim que funciona. Entre a manutenção do ideal de liberdade e a proteção excessiva ao idoso, a realidade nos mostra que após atingir-se a "velhice", vem mais vida. E para continuar vivendo com dignidade, o mínimo que se deve garantir é a manutenção do poder individual de escolha.

 


[2] Dados disponibilizados pelo centro de estudos estratégicos da Fiocruz Antônio Ivo de Carvalho, podendo ser acessados em: https://cee.fiocruz.br/?q=esperanca-de-vida-diante-da-emergencia-sanitaria-e-climatica#:~:text=Por%20exemplo%2C%20Brasil%20e%20Costa,3%20anos%20na%20Costa%20Rica.

[3] CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da afetividade no Direito brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora

Forense, 2017. p. 158-160.

[4] FARIAS, Cristiano Chaves de. A família da pós-modernidade: em busca da dignidade perdida da pessoa

humana. Revista de Direito Privado, v. 19, p. 56-68, jul./set. 2004.

[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. 1. 23ª Ed., Rio de Janeiro: Grupo Gen/Forense, 2009, (fls. 189/190).

[8] Pacha, Andrea. Velhos são os outros, 1ª Edição. 2018. Editora Intrínseca.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Pires, Kaufmann e Rehfeld, graduado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), especializado em direito das Famílias e Sucessões e associado do IBDFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família).

  • é advogado, graduado pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) sócio do Ribeiro e Cury Sociedade de Advogados, especializado em Direito Civil com foco na atuação de causas envolvendo Direito de Família e Sucessões.

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