Opinião

Restrições à livre iniciativa na revenda de veículos importados na MP 1.205/2023

Autor

  • Flávio Miranda Molinari

    é mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e sócio do Collavini Advogados.

19 de fevereiro de 2024, 10h23

O governo federal, no pacote de medidas anunciadas no final do ano passado, editou a Medida Provisória nº 1.205/2023, a qual tem por objetivo principal instituir o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover).

O Programa Mover estabelece (1) requisitos obrigatórios para a comercialização de veículos novos produzidos no país e para a importação de veículos novos, (2) regimes de incentivos à realização de atividade de pesquisa e desenvolvimento para as indústrias de mobilidade e logística, (3) regime de autopeças não produzidas e o (4) Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Econômico.

Restrições à livre iniciativa e à livre concorrência
Parte do intento do Programa Mover vai ao encontro dos objetivos constitucionais da República estabelecidos no artigo 3º da Constituição, em especial, no que concerne às atividades de pesquisa e desenvolvimento em mobilidade. Certamente, políticas públicas dessa natureza reforçam o compromisso de desenvolvimento estabelecido no texto constitucional.

Paradoxalmente, a MP 1.205/2023 vai de encontro ao texto constitucional ao buscar regular aspectos nitidamente comerciais das relações entre particulares.

O artigo 2º, §2º, da MP 1.205/2023 estabelece a obrigatoriedade de comprovação de requisitos para a comercialização e importação de veículos novos no país, cuja prova será por meio do “Ato de Registro dos Compromissos” no Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

No bojo do “Ato de Registro dos Compromissos”, o artigo 3º, I, alíneas “a” e “b”, estabelece a obrigatoriedade de os particulares comprovarem estar autorizados a (1) realizarem, no território nacional, as atividades de prestação de serviços de assistência técnica e de organização de rede de distribuição e (2) utilizarem as marcas do fabricante em relação aos veículos objeto de importação, mediante documento válido no país.

Tais obrigações impostas pelo referido dispositivo contrariam os artigos 170 e 174 da Constituição da República, pois mitigam a livre-iniciativa ao estabelecerem condições de comercialização desprovidas de qualquer interesse público, bem como a livre-concorrência, pois criam uma reserva de mercado para bandeiras autorizadas de revenda de veículos no mercado interno.

Reprodução

Ao estabelecer a obrigatoriedade de prestação de serviços de assistência técnica, a MP 1.205/2023 impõe condição ilegítima para os revendedores de veículos importados no Brasil que não estão ligados aos fabricantes.

A assistência técnica e garantia são convenções e acordos estabelecidos entre particulares, os quais devem respeitar a legislação cível corrente, sobretudo as normas consumeristas que impõem aos importadores a prestação de serviços de reparo no produto no prazo de até 30 dias [1].

A assistência técnica, portanto, deve ser prestada pelo fornecedor de modo a sanar eventuais defeitos do objeto. Por outro lado, esse dever não impõe a condição de manter uma estrutura de assistência técnica para prestação direta do serviço. Esses serviços podem ser prestados por terceiros, como é comum no contexto dos revendedores de veículos importados.

O dever de comprovar a permissão para utilização de marcas do fabricante também está no âmbito de possibilidade de regulação entre particulares. Não há qualquer interesse público em monitorar a divulgação de marcas de veículos no Brasil.

Entendimento do STF e a Lei 13.874/2019
Essas imposições de condições jamais poderiam ser feitas, pois “a eleição de atividade que será empreendida assim como o quantum a ser produzido ou comercializado resultam de uma decisão livre dos particulares” [2]. O Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o princípio da livre-iniciativa, “garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégias empresariais” [3].

A livre- concorrência também é afetada, pois somente as fabricantes e revendedoras autorizadas de veículos poderão prontamente comprovar que possuem assistência técnica própria e licença de uso da marca. Trata-se de uma norma que cria uma reserva de mercado, afastando os revendedores de veículos importados da possibilidade de concorrerem em iguais condições no ambiente de mercado.

Essas restrições impostas pela MP 1.205/2023 também afrontam as garantias estabelecidas à livre-iniciativa no bojo do artigo 4º da Lei 13.874/2019, que veda a abuso de poder regulatório que, por meio de atos normativos, criam (1) reserva de mercado para favorecer grupo econômico em prejuízo dos demais concorrente, (2) enunciados normativos que impeçam o ingresso no mercado de novos competidores, (3) exigência de especificação técnica desnecessária aos fins da atividade, (4) aumento dos custos de transação sem benefícios comprovados e (5) restrição a livre formação de atividades econômicas.

Possíveis efeitos das restrições
Por fim, tais restrições implicarão em diminuição das importações de veículos para revenda no mercado nacional, o que certamente diminuirá a arrecadação de tributos incidentes nesse tipo de operação. Portanto, essa restrição afeta, inclusive, os objetivos atuais do governo federal, no sentido de manter o equilíbrio das contas públicas por meio do incremento da arrecadação.

Atualmente, a MP 1.205/2023 está em trâmite no congresso nacional e já conta com emendas supressivas e modificativas do texto dos artigos 2º, §2º, e 3º, I, “a” e “b”. Espera-se que o processo legislativo aprimore o texto dos dispositivos mencionadas para que se mantenha correspondências com os filtros constitucionais e legais aplicáveis. Senão, caberá ao Poder Judiciário reconhecer as inconstitucionalidades e ilegalidades desses textos normativos.

 


[1] Código de Defesa do Consumido, artigo 18.

[2] Comentários à Constituição do Brasil. Coord.: J.J.Gomes Canotilho, Ingo Wolfgang Sarlet, Lenio Luiz Streck e Gilmar Ferreira Mendes – 3. Ed. Rev. Atual. – Saõ Paulo: SaraivaJur, 2023. p. 1928/1929.

[3] ADC 48, rel. min. Roberto Barroso, j. 15-4-2020, P, DJE de 19-5-2020; ADI 3.961, rel. min. Roberto Barroso, j. 15-4-2020, P, DJE de 5-6-2020

Autores

  • é sócio do Collavini Advogados, mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, graduado pela mesma universidade e especialista em Direito Tributário pela FGV Direito SP.

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