Opinião

Propriedade fiduciária de grãos pelas empresas que vendem produtos agrícolas

Autor

  • Guilherme Eduardo Nascimento

    é advogado associado do Grupo ERS graduado em Direito pela UFMT e em Comércio Exterior pela Uniasselvi especialista em Direito Empresarial com foco em reestruturação empresarial e agronegócio e membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB-MT.

7 de maio de 2024, 13h13

Nos últimos meses, diante da agravada crise climática que afetara a última safra do agronegócio brasileiro, houve um inegável aumento de 535% nos pedidos de recuperação judicial por produtores rurais, consoante dados extraídos do Serasa Experian [1].

Wenderson Araujo/Trilux/CNA

Com a preocupante fala do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro [2] a respeito da suposta “banalização” das recuperações judiciais no agronegócio, o endividamento do agronegócio se torna o principal desafio de 2024, tendo a certeza de afetação ao crédito rural e, por consequência, à economia brasileira.

Nesta toada, ante a imprevisibilidade econômica desse setor, as empresas que comercializam produtos agrícolas passaram a adotar, em seus contratos de compra e venda, a obrigação de emissão de Cédulas de Produto Rural (CPR) e a garantia de alienação fiduciária de grãos a serem produzidos em sua lavoura.

Assim sendo, tais empresas se tornariam as proprietárias fiduciárias e possuidoras indiretas do produto alienado e titulares de todos os direitos atribuídos à proprietária fiduciária, na forma do § 1º, do artigo 8º, da Lei nº 8.929/1994, na redação conferida pela Lei nº 13.986/2020, em seus termos:

“Art. 8º […]

§1º. A alienação fiduciária de produtos agropecuários e de seus subprodutos poderá recair sobre bens presentes ou futuros, fungíveis ou infungíveis, consumíveis ou não, cuja titularidade pertença ao fiduciante, devedor ou terceiro garantidor, e sujeita-se às disposições previstas na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e na legislação especial a respeito do penhor, do penhor rural e do penhor agrícola e mercantil e às disposições sobre a alienação fiduciária de bens infungíveis, em tudo o que não for contrário ao disposto nesta Lei.”

Neste sentido, na possibilidade de crise dos produtores rurais e a consequente postulação de recuperação judicial, as empresas agrícolas encontrariam guarida na disposição do §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/2001, o qual dispõe que o credor titular da posição de proprietário de bens móveis não se submete aos efeitos da recuperação judicial, com a possibilidade de prevalecimento dos direitos de propriedade e as condições contratuais, em seus termos:

“Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

[…] § 3º. Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”

Tática

Adentrando ao espírito do legislador, ao excluir os credores que detêm a posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis do âmbito da recuperação judicial, visou atenuar os riscos assumidos pelas instituições financeiras, bem como aliviar os encargos financeiros dos devedores. Com a garantia da satisfação de suas obrigações, as instituições financeiras poderiam oferecer capital de giro crucial para a recuperação de empresários em dificuldades, através de financiamentos com taxas de juros mais baixas.

Spacca

Assim sendo, convém destacar que, em termos práticos, ajuizada a recuperação judicial do produtor rural, as empresas de comércio agrícola concomitantemente ajuízam também a execução de título extrajudicial com o pedido de busca e apreensão dos bens, no caso, os grãos a serem colhidos para verem seu crédito adimplido, escapando dos termos e condições do feito de soerguimento.

Restrição

Contudo, apesar dessa tática estar se tornando comum no mercado do agronegócio, ocorre que, por disposição expressa de lei, essas empresas que comercializam produtos agrícolas não possuem legitimação para se tornarem proprietárias fiduciárias de bens móveis.

Convém destacar que a alienação fiduciária regulamentada pelo Código Civil não se refere à garantia de coisas móveis fungíveis, que é o caso dos grãos, uma vez que em seu próprio artigo 1.368-A que as demais espécies se submetem às leis especiais.

“Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial.”

Neste espeque, o renomado doutrinador Tartuce [3] afirma que as leis especiais, Leis nº 4.728/1965 e no Decreto-Lei nº 911/1969, as quais regem às propriedades fiduciárias de bens móveis, seriam somente aplicáveis às instituições financeiras e pessoas jurídicas equiparadas, assim sendo:

“Do ponto de vista da incidência das normas, frise-se que todas as leis especiais referentes à propriedade fiduciária de bens móveis, contidas na Lei 4.728/1965 e no Decreto-lei 911/1969, são aplicáveis apenas às instituições financeiras e pessoas jurídicas equiparadas, caso das empresas de consórcio, e, portanto, as demais pessoas físicas ou jurídicas não podem celebrar alienação fiduciária em garantia. De qualquer modo, o Código Civil de 2002 possibilita a qualquer pessoa física ou jurídica a celebração de negócio jurídico pelo qual se dá em garantia certo bem móvel e infungível como propriedade fiduciária. Assim, a codificação tem incidência para as alienações fiduciárias de bens móveis celebradas por outras pessoas, que não as instituições financeiras.”

Coadunando com tal posicionamento, pelo fato de que na propriedade fiduciária de coisas móveis fungíveis ou de direitos, a Lei de Mercado de Capitais (Lei nº 4.728/65) exige que esse proprietário fiduciário se submeta à fiscalização do Banco Central [3].

Destarte, tal disposição acaba por restringir a legitimidade somente às instituições financeiras, às sociedades que a elas se equiparam e às entidades estatais ou paraestatais. Na mesma esteira, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário de nº 111.219/RS, firmou jurisprudência que somente esses entes poderiam se utilizar da alienação fiduciária em garantia, senão vejamos:

“EMENTA: Alienação fiduciária em garantia. Firmou-se a jurisprudência do STF no sentido de que somente as instituições financeiras e os consórcios autorizados de automóveis é que podem utilizar-se do instituto da alienação fiduciária em garantia. Admite a doutrina que as entidades estatais ou para- estatais são igualmente legitimadas para receber tal tipo de garantia, como resulta do art. 5º do Decreto-lei n. 9111-69. Recurso conhecido e provido.”

Nesta senda, como citado por Chalhub [4], Paulo Restiffe Neto distinguiu as modalidades de contrato de alienação fiduciária, sendo: a paritária, regulamentada pelo Código Civil, e a mercadológica, que é regida pelo Decreto-Lei n. 911/1969, in verbis:

“Para marcar a distinção entre essas duas modalidades de contrato de alienação fiduciária, Paulo Restiffe Neto cunhou expressões próprias de identificação, denominando paritária a alienação fiduciária regulamentada pelo Código Civil, porque essa espécie, em princípio, é contratada entre iguais, havendo presumivelmente equiparação econômica e técnica entre as partes, e mercadológica a alienação fiduciária de que trata o Decreto-lei nº 911/69, porque esta espécie se caracteriza pela não-equiparação entre as partes, havendo, ao contrário, desigualdade entre elas, seja do ponto de vista econômico ou técnico, situação que, pela vulnerabilidade em que se encontraria o devedor, configuraria uma relação de consumo.”

Nesta mesma prismática, infere-se que o posicionamento pacificado do Supremo Tribunal de Justiça de que o procedimento judicial de busca e apreensão previsto no Decreto-Lei nº 911/1969 é instrumento exclusivo de instituições financeiras, reforça o posicionamento de ilegitimidade de constituição dessa garantia por demais sociedades empresariais, a saber:

“AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. UTILIZAÇÃO DO RITO POR SOCIEDADE COMERCIAL NÃO INTEGRANTE DO SISTEMA FINANCEIRO. MANUTENÇÃO DA EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. AGRAVO NÃO

PROVIDO. 1. “O procedimento judicial de busca e apreensão previsto no Decreto-Lei nº 911/1969, nos termos da jurisprudência desta Corte, é instrumento exclusivo das instituições financeiras lato sensu ou das pessoas jurídicas de direito público titulares de créditos fiscais e previdenciários” (REsp 1.311.071/SC, rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 21/03/2017, DJe 24/03/2017), o que não é o caso da parte agravante sociedade comercial. 2. Agravo interno a que se nega provimento” [6].

Ainda, sob outra vertente, há o entendimento do eg. TJ-SP [5] apontando que, em que pese haja a possibilidade de se constituir a garantir fiduciária sobre bens fungíveis, tal garantia não poderia ser concretizada em bens consumíveis e substituíveis, que são os casos de grãos advindos da lavoura:

“ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BENS MÓVEIS FUNGÍVEIS E CONSUMÍVEIS. IMPOSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DOS BENS. NÃO- CONSTITUIÇÃO DA GARANTIA FIDUCIÁRIA. DESCABIMENTO DA AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. Em que pese a admissão do estabelecimento de garantia fiduciária sobre bens fungíveis, trazida pela Lei 10.931/04, bens consumíveis e substituíveis não se prestam à constituição de propriedade fiduciária. Inteligência do art. 33 da lei mencionada. Em conseqüência, não se há de cogitar do cabimento de ação de busca e apreensão, de que é carecedor o credor por falta de interesse. Recurso desprovido.”

Posto isso, a prática das empresas que comercializam produtos agrícolas de constituírem a garantia fiduciária dos grãos a serem colhidos não merece prosperar, uma vez que, diante das disposições legais, estas não possuem legitimidade para tanto, por não serem instituições bancárias, nem sociedades que se equiparam, nos termos da Lei nº 7.492/86.

Conclui-se, portanto, que, não possuindo legitimidade para constituir a garantia fiduciária, tais dívidas não encontram guarida no §3º do artigo 49 da Lei nº 11.101/2005, tornando-se, portanto, submetidas aos efeitos da recuperação judicial do produtor rural.

 


[1] Produtores rurais que atuam como pessoa física acumulam 127 pedidos de recuperação judicial em 2023, revela Serasa Experian. Disponível em: https://www.serasaexperian.com.br/sala-de-imprensa/agronegocios/produtores-rurais-que-atuam-como-pessoa-fisica-acumulam-127-pedidos-de-recuperacao-judicial-em-2023-revela-serasa-experian/. Acesso em: 26 abr. 2024.

[2] “Banalização” de recuperações judiciais pode custar caro ao crédito rural, diz Fávaro. Disponível em: https://globorural.globo.com/economia/noticia/2024/03/banalizacao-de-recuperacoes-judiciais-pode- custar-caro-ao-credito-rural-diz-favaro.ghtml. Acesso em: 26 abr. 2024.

[3] SACRAMONE, Marcelo e PIVA, Fernanda Neves. Cessão Fiduciária de créditos na recuperação judicial: requisitos e limites à luz da jurisprudência. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, ano 19, v. 72, Revista dos Tribunais, São Paulo, abr.-jun. 2016, p. 133-155.

[4] CHALHUB, Melhim Namem Negócio Fiduciário. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006, p. 218-219.

[5] TJ-SP – AI: 1071537820128260000 SP 0107153-78.2012.8.26.0000, relator: Gilberto Leme, Data de Julgamento: 17/07/2012, 27ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 19/07/2012.

 

Autores

  • é advogado associado do Grupo ERS, graduado em Direito pela UFMT e em Comércio Exterior pela Uniasselvi, especialista em Direito do Agronegócio, especialista em Direito Empresarial (com foco em reestruturação empresarial e agronegócio) e membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falências da OAB-MT.

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