Repensando as Drogas

Vai-Vai passar nessa avenida um samba 'impopular'

Autor

  • Felipe Morais Barbosa

    é juiz de Direito no TJ-GO (Tribunal de Justiça do Estado de Goiás) graduado em Direito pela UFJF (Universidade de Juiz de Fora); pós-graduado em Direito pela Emerj (Escola de Magistratura do Rio de Janeiro) mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa) pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados).

16 de fevereiro de 2024, 8h00

O Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp) emitiu nota repudiando o desfile da escola de samba Vai-Vai, durante a segunda noite do Carnaval paulistano. Afirma a nota que a escola demonizou a polícia ao representar agentes com chifres e outros elementos no sambódromo do Anhembi, zona norte da capital.

É de se lamentar que o Carnaval seja utilizado para levar ao público mensagem carregada de total inversão de valores e que chega a humilhar os agentes da lei“, destacou o sindicato.

O deputado Alberto Fraga (PL-DF), presidente da frente e primeiro-vice-presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara Federal, indagou: “A que ponto chegamos?”

Lamentavelmente, vivemos uma sociedade na qual a polícia é desvalorizada e humilhada diariamente”, afirmou o deputado Sargento Portugal (Podemos-RJ). Segundo ele, a escola protagonizou um “escárnio com esses heróis anônimos da sociedade”.

“Não há justificativa para fazer tamanha imbecilidade contra os policiais, categoria que rala diariamente, sob condições precárias, para proteger aqueles que eles nem conhecem”, afirmou o deputado Sargento Gonçalves (PL-RN).

Carnaval como celebração política
A escola se defendeu das críticas. Com o samba-enredo “Capítulo 4, Versículo 3 – Da rua e do Povo, o Hip Hop: um Manifesto Paulistano”, o desfile homenageou o álbum Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s. Lançado em 1997, o disco retratava a onda de brutalidade policial pela qual passava São Paulo na década de 1990.

O caso de maior destaque na época foi o massacre do Carandiru, em 1992. A maior chacina já registrada em um presídio. O episódio foi lembrado pelos Racionais na música Diário de um Detento, que pertence ao álbum homenageado pela Vai-Vai e retratado no desfile.

O Carnaval é um período de festas populares. Pessoas dançam, comem, bebem alegremente em festas, bailes de máscaras, bailes de fantasias, desfiles de blocos, escolas de samba, trios elétricos etc. Não obstante, dentro deste contexto (pretensamente) descontraído, críticas sociais contundentes são feitas. O Carnaval é, acima de tudo, resistência. Resistência a padrões. Provocação!

Divulgação/Vai-Vai

Apesar de ser levado pela vinculação da “festa da carne”, trata-se de uma celebração política e de manifestações sociais. Desde os nomes e origem dos blocos, às fantasias e marchinhas. Tudo recheado de humor, ironia e muitas críticas.

A esmagadora maioria dos agentes
No caso em análise, ainda que estejamos dentro de um contexto específico (crítica à violência policial paulista da década de 90, retratada no hip hop), conforme alegado pela própria agremiação, deve ser “incômodo” ao policial ver a imagem da farda sendo trajada por um ser demoníaco. A simbologia é forte! Desagrada.

Penso naquele indivíduo que, desde pequeno, sonhou em ser um agente da lei. Que batalhou anos e anos. Ultrapassou testes complexos e extenuantes, para poder servir a sociedade. Que acorda cedo e se põe em risco para salvaguardar os demais. Que visa fazer o “bem” (ainda que este conceito possa se perder na complexidade da sociedade moderna e desigual). Não deve ser fácil ver sua imagem à semelhança do diabo.

ConJur

Imagino a mãe de um policial, vítima da equivocada política de guerra às drogas e enfrentamento bélico, morto em uma incursão na comunidade, vendo essa imagem. Infelizmente, não são poucas as mães nesta situação.

A imagem, retratada pela escola de samba, não faria “justiça” a esses casos. Na verdade, a imagem não faria justiça à esmagadora maioria dos agentes de segurança pública. Estes estão longe de serem os únicos responsáveis pela violência produzida pelo sistema penal. Mas muitas vezes, os únicos apontados como culpados.

Simbologia policial
Por esta ótica, me questiono se é defensável que a agremiação teria passado dos limites. Errado na intensidade. Exagerado. “Pecado” pela generalização.

Talvez.

A “Carnavália” é hiperbólica por natureza. Usa do caráter emotivo e busca enfatizar determinado fato ou situação por meio do exagero da realidade. Tudo, em princípio, com um fundo de realidade.

Certo é que a imagem ganhou repercussão e acendeu o debate. Não só trouxe a memória uma das páginas mais infelizes de nossa história (massacre do Carandiru), como intensificou a controvérsia em torno da “simbologia”.

Símbolo é algo que faz lembrar outra coisa.  A representação de algo (ou seja, re-apresentação). Uma ideia que guarda um vínculo convencional com o seu objeto.

Se estamos cobrando a simbologia representada em uma escola de samba (associações populares), qual deveria ser a postura dos críticos, associações de classe e políticos (em especial com pautas relacionadas a segurança pública) na simbologia repassada pela própria polícia?

O que dizer dos cantos (que se diga de passagem, não são marchinhas de Carnaval)?!

O CHOQUE É O TERROR [1]

Cabra safado metido a valentão

O choque pega ele e quebra no bastão

Presidiário quando faz rebelião

O choque pega ele e quebra no bastão

Bem que ele avisou, bem que ele avisou

Cuidado com o Choque esse Choque é o terror

 

ARRANCA A CABEÇA [2]

Eu miro na cabeça,

atiro sem errar

Se munição eu já não tiver,

pancadaria vai rolar

Bate na cara,

espanca até matar

Arranca a cabeça

e explode ela no ar

Arranca a pele

e esmaga os seus ossos

Joga ele na vala

e reza um Pai Nosso

 

O TIRO É NA CABEÇA [3]

“É o Bope preparando a incursão

E na incursão

Não tem negociação

O tiro é na cabeça

E o agressor no chão.

 E volta pro quartel

pra comemoração”

 

PENA DE MORTE À MODA BRASILEIRA [4]

“Arranca a cabeça e deixa pendurada

É a Rotam patrulhando a noite inteira

Pena de morte à moda brasileira”

 

MISSÃO [5]

“Homens de preto qual é tua missão,

entrar pela favela e deixar corpos no chão,

 homens de preto o que é que você faz,

eu faço coisas que assustam o Satanás

 Os exemplos são incontáveis. Os cantos são rotineiros na formação das forças de segurança.

Qual a “re-apresentação” se extrai da fala de um governador que afirma que “a polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro” [6]?

Qual a simbologia de políticos se posicionando contra o uso de câmeras por policiais?

Qual a simbologia de um chefe de Estado que posta fotos sorrindo com os dizeres – “CPF CANCELADO” ?! Gíria comumente utilizada para se referir a pessoas mortas em “confronto” com policiais [7].

Criminoso absoluto
A verdade é que o Estado brasileiro, na sua política de segurança pública contestável, cria, rotineiramente, simbologias odiosas, que aumentam o preconceito, que levam à morte suspeitos e inocentes e que estigmatizam os moradores de comunidades.

Todos nós (da zona sul), aceitamos e aderimos subjetivamente a esse contexto. O blindado, com símbolo da caveira no dorso, nos traz segurança. A morte… é do outro. Do periférico.

O Carnaval, contudo, como festa popular, tende a dar voz a eles.

E por que não ouvirmos?

Por que não imaginar a dor de uma mãe, cujo filho, inocente (ou não), foi vítima de uma ação policial, nessa equivocada política de enfrentamento? Ou a dor do parente de um detento executado no Carandiru?

Ao contrário da (legítima) defesa dos agentes de estado, os filhos delas são indefesos. Se transformaram em alguém reduzido ao status de “criminoso absoluto”. Distante de qualquer vínculo familiar e contexto afetivo. É a vida do “bandido” que não tem valor porque ele é “bandido” … e que é “bandido” porque sua vida não tem valor. O tal do “CPF cancelado”.

Como interpretar, simbolicamente, a carreira política de Ubiratan Guimarães, conhecido como Coronel Ubiratan?! Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo e político brasileiro que conduziu a invasão da Polícia Militar de São Paulo ao Complexo Penitenciário do Carandiru. Ação policial resultou na morte de 111 detentos, retratada no desfile.

O deputado disputou as eleições com o número 14 111 em 2002, recebendo mais de 50 mil votos.

Ressalta-se, em relação ao massacre do Carandiru, ninguém está preso. Isso também é uma simbologia.

Não é forçoso concluir que, se a polícia e/ou o Estado não merecem ser demonizados… eles também não têm nada de santo!

O samba impopular, que dá voz à periferia, já passou. A questão é se amanhã vai ser outro dia…


[1] FRANÇA, Fábio Gomes de. Polícia e sociologia: Estudos sobre o poder e normalização. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020.

 

[2] JORNAL OPÇÃO. Policiais militares cantam hino que exalta violência e causam polêmica nas redes. Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/policiais-militares-cantam-hino-que-exalta-violencia-e-causam-polemica-nas-redes-94629/. Acesso em 15 de fev. de 2024.

 

[3] G1. Tropa do Bope canta grito de guerra que faz apologia à violência. Disponível em: https://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/05/tropa-do-bope-canta-grito-de-guerra-que-faz-apologia-violencia.html. Acesso em 15 de fev. 2024.

 

[4]  G1. PMs de elite do Pará cantam ‘arranca a cabeça e deixa pendurada’ em aniversário da tropa. Disponível em: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2019/08/03/em-video-polemico-policiais-de-elite-da-pm-do-para-cantam-arranca-a-cabeca-e-deixa-pendurado.ghtml. Acesso em 15 de fev. de 2024.

 

[5] FOLHA.UOL. Gritos de guerra do Bope dividem moradores. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0508200627.htm. Acesso em 15 de fev. de 2024.

 

[6] UOL. A polícia vai mirar na cabecinha e… fogo’, afirma Wilson Witzel. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2018/11/01/a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo-afirma-wilson-witzel.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 15 de fev. de 2024.

[7] UOL. Foto de Bolsonaro com “CPF cancelado” é criticada pela oposição. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/04/25/foto-de-bolsonaro-com-cpf-cancelado-e-criticada-pela-oposicao.htm?cmpid=. Acesso em 15 de fev. de 2024.

 

Autores

  • é graduado em Direito pela Universidade de Juiz de Fora (UFJF), pós-graduado em Direito pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), mestre em Direito Constitucional pelo Instituto brasileiro de desenvolvimento e pesquisa (IDP), pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás e autor do livro Atitude Suspeita - a Seletividade na Atuação da Polícia Militar e Poder Judiciário no Combate ao Narcotráfico.

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