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INPI pressiona Congresso por tratado sobre patentes com microrganismos

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14 de fevereiro de 2024, 8h51

O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) vem fazendo pressão sobre parlamentares para que seja aprovado um projeto de decreto legislativo (PDL) relacionado ao Tratado de Budapeste. A proposta introduz no arcabouço legal brasileiro esse pacto, que traz regras sobre o depósito de microrganismos para pedidos de patentes.

Microrganismos precisam ser depositados fora do Brasil para viabilizar patentes

O texto já passou por diversas comissões da Câmara dos Deputados, mas ainda aguarda a aprovação do parecer da relatora da matéria na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da casa.

O INPI, na figura de seu presidente, Júlio César Moreira, tem conversado com deputados federais e senadores para cobrar avanços na tramitação, pois entende que a adesão do Brasil ao tratado é benéfica para a pesquisa e o desenvolvimento na área de biotecnologia.

A principal vantagem de incluir o Tratado de Budapeste na legislação brasileira é a redução dos custos e do tempo de envio e depósito de microrganismos para patentes. 

Esses seres microscópicos são muito usados atualmente na produção agrícola, mas também podem ser aproveitados pela indústria farmacêutica, por exemplo.

Descrição detalhada
Em um pedido de patente, é necessária a descrição completa da invenção que se busca proteger. As orientações precisam ser claras o suficiente para que um técnico da área consiga reproduzir o produto sem esforços desnecessários ou exagerados.

Quando uma patente é concedida a um inventor, o produto não pode ser comercializado por terceiros durante 20 anos. No entanto, o sistema garante que esses terceiros possam se apropriar do conhecimento da invenção, para estudá-la e colocar algo no mercado após o fim do período de proteção exclusiva, ou mesmo inovar em cima dela de imediato.

“Quem se apropria daquela informação pode ir para o laboratório, desenvolver um novo produto em cima daquele conhecimento existente e depositar uma nova patente”, explica o presidente do INPI. “É para isso que o sistema existe: para incentivar a inovação e novos produtos no mercado.”

Nos casos em que a invenção envolve material biológico — os microrganismos —, a descrição por escrito não é considerada suficiente para atender a esse objetivo. Por isso, em complemento ao relatório, uma cepa dos microrganismos usados no produto precisa ser depositada em um centro de referência.

Esses centros são chamados de autoridades depositárias internacionais (IDAs, na sigla em inglês). Elas são responsáveis por guardar os microrganismos, conservá-los e torná-los disponíveis ao público mediante solicitação.

As IDAs, para efeitos de patentes, são regulamentadas pelo Tratado de Budapeste, assinado na Hungria em 1977 e em vigor desde 1980. Atualmente, 89 países são signatários do pacto.

Pelas regras do tratado, os países são obrigados a reconhecer os microrganismos depositados nas IDAs como parte do procedimento de obtenção de patente. Assim, um depósito em uma dessas autoridades é válido para todos os signatários.

Brasil atrasado
Embora o Brasil ainda não faça parte do Tratado de Budapeste, o INPI aceita o depósito de material biológico nas IDAs, ou seja, reconhece a capacidade dessas autoridades de receber os microrganismos usados nas invenções.

Mas, sem a adesão ao pacto, o Brasil não pode ter centros do tipo em seu território. Assim, os inventores brasileiros (pessoas físicas, empresas ou instituições) precisam enviar os microrganismos para IDAs de outros países.

Hoje existem 49 IDAs estrangeiras certificadas pelo tratado. As mais conhecidas são a American Type Culture Collection (ATCC), localizada em Manassas, nos Estados Unidos; e a Coleção Alemã de Microrganismos e Culturas Celulares (DSMZ, na sigla em alemão), do Instituto Leibniz, situada na cidade alemã de Brunsvique.

INPI quer aprovação pelo Congresso da internalização do Tratado de Budapeste

Na América Latina, há apenas uma IDA: a Coleção Chilena de Recursos Genéticos Microbianos (CChRGM), na cidade de Chillán. Porém, segundo Júlio César Moreira, esse centro no Chile “é muito limitado” e “não é diverso” como o Brasil precisa.

Como membro do pacto internacional, o Brasil poderia ter um centro depositário reconhecido no mundo todo, que guardaria material biológico de forma geral. Parte da coleção seria voltada às patentes.

Mas isso não seria automático. O país precisaria sugerir instituições capazes de receber material biológico, para que o conselho do tratado as avaliasse.

O advogado Luiz Marinello, sócio do escritório Marinello Advogados, que atua com Propriedade Intelectual (PI), lembra que o Tratado de Budapeste é discussão antiga no INPI.

A principal movimentação ocorreu em 2010, quando o órgão se uniu ao Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro) para a construção, em Duque de Caxias (RJ), do Centro Brasileiro de Material Biológico (CBMB), projetado para ser credenciado como IDA. O projeto, no entanto, não foi adiante e as obras foram encerradas em 2014.

Em novembro do ano passado, durante uma palestra, o presidente do INPI citou quatro instituições brasileiras que teriam grande chance de conseguir certificação como centros depositários para patentes: a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa); a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde; a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e o Banco de Células do Rio de Janeiro (BCRJ).

Uso amplo
A principal utilização dos microrganismos no Brasil atualmente é na área da agricultura, com os bioinsumos e biodefensivos. Moreira cita como exemplo o tratamento de cana-de-açúcar para produção de combustível e outros ativos, além de bioplásticos.

Pedro Moreira, sócio do escritório Dannemann Siemsen (especializado em PI), agente da propriedade industrial e farmacêutico de formação, explica que os microrganismos são usados no lugar de produtos químicos para controlar pragas, aprimorar a colheita e aumentar a produtividade agrícola.

Ele já teve acesso a um pedido de patente com microrganismos que transformam a borra do petróleo — resíduo poluidor excedente, não usado pela indústria — em material biodegradável.

O presidente do INPI diz que os microrganismos ainda não são utilizados pela indústria farmacêutica, em pedidos de patentes para vacinas ou medicamentos. “Mas nada impede que isso seja feito”, ressalta ele.

Alívio para o bolso
Sem uma IDA no Brasil, os inventores precisam arcar com os custos do envio de material biológico para outros países. E quem deseja fazer pesquisas com tais microrganismos também precisa pagar pela importação. Para o presidente do INPI, isso “dificulta a vida do inventor nacional”.

Se aderir ao Tratado de Budapeste, o Brasil poderá certificar algumas IDAs estrangeiras como preferenciais para depósito de microrganismos. Isso abre espaço para uma parceria entre países, com cobrança de um preço mais barato.

Priscila Kashiwabara, sócia do Kasznar Leonardos (também especializado em PI), agente da propriedade industrial e bióloga especializada em Biotecnologia, explica que a assinatura do pacto “pode fomentar a cooperação internacional em pesquisa e inovação, pois facilita o intercâmbio de informações e de materiais biológicos entre países”.

Outra opção garantida pela adesão ao tratado é a criação de um centro depositário no Brasil. Assim, os inventores não precisariam enviar o material biológico para outros países. De acordo com Marinello, isso também diminuiria o custo de transação, o que estimularia novos depósitos de patentes no INPI.

Maioria dos pedidos de patentes com microrganismos no Brasil é da área agrícola

Para Priscila, a adesão “tornará o processo de depósito mais simples, eficiente, desburocratizado, ao utilizar um sistema internacionalmente reconhecido”.

Com uma IDA nacional, o presidente do INPI acredita que o Brasil poderia virar referência para os países da América Latina e do Caribe. Em vez de enviar o material biológico para os EUA ou para a Europa, tais nações o remeteriam ao Brasil, que formaria uma coleção. “Quanto mais microrganismos nós tivermos, maior a nossa capacidade de estudá-los e criar inovação em cima deles.”

“As instituições nacionais qualificadas poderão obter novas fontes de receita, pois será aberta a possibilidade de depósito não apenas de material biológico de pesquisadores nacionais, mas também de outros países, principalmente da América Latina”, confirma Marinello.

Priscila aponta que “o envio do material biológico para uma IDA no exterior pode ser bastante custoso, exigindo a contratação de serviços especializados em transporte de material biológico, para que o material chegue viável ao destino”.

Pedro Moreira detalha a logística e os custos envolvidos no transporte de microrganismos. Em 2010, ele enviou, em nome da Embrapa, plasmídeos (moléculas de DNA) da bactéria E. coli para o ATCC.

A empresa teve de contratar um serviço especializado de transporte de material biológico para buscar os plasmídeos no laboratório e levá-los até o Aeroporto Internacional de Brasília. Lá, também foi preciso contratar, com uma companhia aérea, uma remessa especial de material biológico, com formulários complexos.

Após a chegada aos EUA, a Embrapa ainda precisou contratar um procurador americano para fazer o desembaraço do material na alfândega. Em seguida, os plasmídeos foram finalmente encaminhados ao ATCC, que cobra uma taxa em dólar.

Além do custo com transporte e todos os trâmites envolvidos, Priscila explica que, nas IDAs no exterior, “há custos mais elevados pela cobrança de taxas geralmente em moedas sujeitas à variação cambial”.

O ATCC atualmente cobra US$ 2,5 mil — mais de R$ 12 mil na cotação atual — para receber o material biológico, testar sua viabilidade e mantê-lo vivo, em condições ideais, por 30 anos. Após esse período, há possibilidade de renovação, mediante nova taxa.

Contra o tempo
O ganho de tempo é mais uma vantagem da adesão ao Tratado de Budapeste. Enquanto o material biológico não é depositado em uma IDA, o inventor não pode pedir a patente ao INPI. Um centro no Brasil aceleraria esse processo.

Esse fator também é importante para pesquisas que importam o material biológico. As cepas precisam passar pela alfândega e pelo controle sanitário do país, que tem restrições rígidas ao transporte de microrganismos, para evitar a entrada de pragas.

Mesmo lacrados e refrigerados, os microrganismos têm um tempo de vida limitado. A depender da demora nos trâmites de importação, esses seres podem morrer e, assim, perder sua utilidade para as pesquisas. Caso isso aconteça, é necessário esperar a vinda de uma nova cepa, o que representa mais gasto de tempo e dinheiro.

No caso dos plasmídeos de E. coli, Pedro conta que a Embrapa precisou de dois envios. Na primeira tentativa, o material chegou aos EUA morto e foi classificado como amostra inviável. Por isso, todo o procedimento foi repetido.

Assim, uma IDA nacional significaria um “avanço no conhecimento de empresas do setor de biotecnologia”, nas palavras de Marinello. Já segundo Priscila, o ambiente de inovação se tornaria mais atrativo para a pesquisa nessa área, “promovendo o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil”.

Custo e tempo do transporte do material são problemas para inventores brasileiros

Demora duvidosa
Vigente há mais de 40 anos, o Tratado de Budapeste só começou a avançar no Congresso brasileiro nos últimos meses.

A adesão a tratados internacionais muitas vezes envolve uma cuidadosa avaliação de como as disposições do tratado se alinham aos interesses nacionais e às políticas internas”, alerta Priscila.

Júlio César Moreira lembra que, na década de 1970, o Brasil trabalhava com a política de substituição de importações. O país tinha grande resistência a acordos internacionais, pois entendia que eles fragilizariam a indústria nacional.

Pela lógica da época, era vantajoso não ter patentes estrangeiras dentro do Brasil. Isso porque a tecnologia podia ser importada para ser “copiada” e, assim, absorvida. Sem as patentes, não era preciso pagar quaisquer valores pela exploração dessa tecnologia no país.

O presidente do INPI critica essa filosofia. De acordo com ele, à medida em que o Brasil aderiu a tratados internacionais, tornou-se mais atrativo para que empresas estrangeiras viessem fazer pesquisas no país. Isso também aumentou a cooperação com outras nações na transferência de tecnologia.

“Entendemos que o Tratado de Budapeste está mais do que maduro para ser aprovado e internalizado no Brasil”, conclui Júlio César Moreira. “É esse o nosso objetivo.”

Pedro Moreira identifica uma “falta de vontade política” de aderir ao tratado nas últimas décadas. “Quem milita e trabalha na área resolveu isso no dia a dia”, diz ele, em referência ao fato de que o INPI já reconhece os depósitos feitos em IDAs certificadas pelo pacto internacional.

Priscila cita outros fatores que podem ter travado a adesão: “O Brasil pode ter tido outras prioridades legislativas ao longo dos anos, direcionando recursos e esforços para diferentes questões”.

Além disso, “a ratificação de tratados geralmente requer processos legislativos específicos e, por vezes, revisões na legislação nacional”. Esses processos podem ser demorados, pois dependem “da estabilidade política e do consenso entre as partes interessadas”.

Por fim, ela destaca que o governo atual tem dado bastante importância à bioinovação, o que pode “ter sido um motivador forte para fazer o processo de adesão evoluir”.

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