Opinião

Estado, autonomia privada e maconha: debate fora dos trilhos

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17 de abril de 2024, 18h33

Cabe ao Estado fiscalizar o uso privado de drogas? Deve o Estado de imiscuir na sua vida privada? Considerando as complexidades envolvidas, a discussão pode ser ampliada, abordando temas como o uso de benzodiazepínicos e antibióticos, planejamento familiar, casamento, modificações corporais, nome e por aí vamos.

Em relação aos antibióticos, por exemplo, é consenso que seu uso indiscriminado pode gerar bactérias resistentes, prejudicando a saúde de toda a população. Nesse sentido, o controle sobre essa classe de medicamentos é essencial para evitar consequências danosas. Por outro lado, quando falamos dos benzodiazepínicos, medicamentos desde que utilizados longe do alcance de crianças, sua  liberação é fortemente defensável.

Essa abordagem se alinha à corrente de pensamento de Gerald Dworkin (não confundir com Ronald), defensor da “neutralidade liberal”. Vale ressaltar que tal termo não deve ser confundido com o liberalismo ou neoliberalismo. A proposta é de um Estado que não imponha padrões de “vida boa” ou “vida que vale ser vivida”, mas fornecendo educação, saúde e tratamentos para questões como o alcoolismo, sem buscar proibir essas escolhas individuais.

O reconhecimento de que o Estado não deve se valer da lei penal para coibir aquilo que entende como nocivo ou imoral data da década de 1970, quando os estudiosos do Direito Penal, na Alemanha Ocidental, ao criticar o Anteprojeto de Reforma do Código Penal, buscaram ancorar a fundamentação do poder de punir do Estado à ideia de lesividade social do fato criminoso. Claus Roxin, entre todos, ao questionar a subsistência do crime de sodomia na legislação alemã, sustentou que condutas que ofendem apenas a moralidade coletiva não podem ser criminalizadas, mesmo que essa visão seja majoritária numa dada sociedade.

Nesse contexto, a intervenção do Poder Legislativo ou do Poder Judiciário em decisões relacionadas à autodeterminação privada, como número de filhos, religião, uso de substâncias etc, , não é apropriada. Questões que integram a esfera da subjetividade de cada indivíduo não demandam justificativas externas, pois a autonomia privada deve ser respeitada – sempre  embasada em informações claras e ponderadas.

Por mais bem intencionada que seja, a lei não pode impedir que o sujeito tome decisões que outros entendem como ruinosas para sua saúde, seu bem-estar ou seu patrimônio. A disposição de seus bens, desde que não prejudique terceiros, é livre; do ponto de vista do direito penal, este é fundamento para não se incriminar o suicídio tentado, ou a autolesão – sendo que esta última só é punível se tiver por objetivo a fraude a apólice de seguros (artigo 171, § 2º, V, Código Penal brasileiro).

Paulo Pinto/Agência Brasil

Campanhas educativas sobre os malefícios do tabagismo e uso de drogas, o livre planejamento familiar e outros temas são importantes para informar a sociedade, porém, devem respeitar a liberdade de escolha de cada um. Assim como no caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou escolha do nome são questões que dizem respeito à vida íntima. Não devem ser objeto de interferência estatal.

A propósito, a redução no tabagismo, desde 1990 até 2020, foi altamente significativa – dados internacionais dão notícia de um decréscimo de 27,2% entre homens, e de 37,9% entre mulheres, sendo que, no Brasil, a redução do consumo de cigarros foi da ordem de 70% no mesmo período –, e não se operou por meio de proibições ou limitações ao consumo, mas pela conscientização do público e pela proibição da veiculação de propagandas. Isso reforça o argumento de que informar funciona melhor do que sancionar.

Porém, é fundamental que o Estado ofereça “tratamento sem julgamentos morais” àqueles que necessitam, respeitando a autonomia e autoconstrução da dignidade de cada um. Todos devem ser tratados como tal, com pleno exercício de sua  autonomia privada. A liberdade de cada cidadão em traçar seu caminho em direção à felicidade, desde que não prejudique terceiros, é um pilar importante para uma sociedade democrática e esclarecida.

O STF, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659/SP, analisa a constitucionalidade do artigo 28 da Lei Federal nº 11.343/2006 (Lei de Drogas). Apesar de se tratar, pretensamente, de um crime contra a saúde pública, os contornos do tipo penal deixam claro que o único objeto jurídico afetado pela ação é a saúde individual do potencial consumidor de drogas. O Tribunal, de modo casuísta, limitou a declaração de inconstitucionalidade, que deveria recair sobre o tipo legal de crime como um todo, apenas ao seu enquadramento quando a droga for a cannabis sativa, deixando de lado o debate, mais amplo, acerca da legitimidade da criminalização em face de qualquer substância definida em regulamento como droga. Mesmo com a ressalva do objeto, ainda não se firmou maioria no sentido de reconhecer a impropriedade de se utilizar a legislação criminal como modo de conformação das ações de adultos, num Estado democrático.

Enquanto isso, a Alemanha se juntou, no dia 01 passado, ao grupo de países que tornou legal o consumo recreativo da cannabis, desde que por adultos capazes e mediante fiscalização estatal. São autorizados o porte, em pequenas quantidades, e o plantio doméstico, permanecendo vedada a comercialização – solução semelhante à que vem sendo construída no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659/SP, caso se firme o entendimento por enquanto majoritário da Corte.

O Poder Legislativo brasileiro, por sua vez, fez avançar proposta de Emenda à Constituição que positiva, enquanto mandamento constitucional de criminalização, o porte de drogas enquanto crime, no rol dos direitos e garantias fundamentais. Se antes já se havia utilizado o mecanismo da Emenda à Constituição para reverter entendimentos assentados pelo Supremo Tribunal Federal – a saber, a Emenda à Constituição nº 96, de 2017, que veio em resposta ao reconhecimento da inconstitucionalidade de leis relativas a competições esportivas feitas com sofrimento animal –, é a primeira vez que se emenda o artigo 5º da Constituição para se impor a manutenção de um tipo legal de crime.

Em suma, a defesa da autonomia privada, aliada à responsabilidade individual e ao acesso a tratamentos sem estigmas, reflete princípios iluministas que valorizam a liberdade de escolha e o respeito às diferenças. É por meio desse diálogo e respeito mútuo que se constrói uma sociedade mais plural e igualitária.

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