Magistrados x advogados

Centros de Inteligência de tribunais se unem contra a litigância predatória

 

10 de fevereiro de 2024, 14h33

Centros de Inteligência de diversos tribunais estaduais e federais elaboraram uma nota técnica conjunta sobre as causas e os efeitos da litigância predatória. O objetivo é fornecer ao Superior Tribunal de Justiça subsídios para o julgamento do Tema Repetitivo 1.198  (REsp 2.021.665), que decidirá se o juiz pode obrigar a parte autora a apresentar novos documentos capazes de lastrear minimamente os pedidos, caso perceba a possibilidade de litigância predatória.

Tribunais se uniram para combater o excesso de ações sem qualquer lastro

O tema é alvo de embate com advogados, que afirmam que o termo litigância predatória foi criado para frear o ajuizamento de ações legítimas envolvendo principalmente a defesa de consumidores contra práticas ilegais, inconstitucionais e lesivas, e se traduz em uma forma de perseguição contra a advocacia de consumo.

Os Centros de Inteligência, no entanto, afirmam que há diferenças marcantes entre litigância predatória e casos repetitivos e de massa. Eles citam como exemplos diversos estudos, entre eles o que identificou 27 mil ações sobre empréstimo consignado assinadas por um mesmo advogado em Mato Grosso do Sul.

As peças, diz o documento, tinham “narrativa hipotética”, segundo a qual os autores não se lembraram de celebrar empréstimo, e não vinham acompanhadas de qualquer extrato bancário; a procuração tinha “conteúdo genérico” e, em 99% dos casos, foi pedida a dispensa da audiência de conciliação.

Assinam o documento o Centro de Inteligência da Justiça Federal de Minas Gerais e do Tribunal de Justiça de Minas (TJ-MG); os Centros de Inteligência e os Núcleos de Monitoramento de Perfis de Demandas do TJ-SP e do TJ-MS; além dos Centros de Inteligência de TJ-TO, TJ-RN, TJ-DF, TJ-PB, TJ-PA, TJ-SC, TJ-MA e das Justiças Federais do Rio Grande do Norte e Ceará.

Prejuízos
Os Centros de Inteligência afirmam que a litigância predatória causa prejuízos de duas ordens principais: consumo de recursos públicos de elevado valor e desperdício de tempo do Judiciário, que deveria “ser destinado ao processamento e decisão de feitos e atos processuais” que representam o regular exercício do direito de ação.

Como exemplos, eles contam ter identificado dois temas principais de litigância em nível nacional: Direito do Consumidor e obrigações envolvendo contratos.

“Nos tribunais estaduais do país, em relação a essas duas matérias, pelo menos 30% da distribuição média mensal consiste em manifestação de litigância predatória artificialmente criada”, diz o documento.

As duas matérias, prossegue a nota técnica, englobam principalmente feitos como ações declaratórias de inexistência de débito com pedido de exclusão de negativação, pleitos de indenização por danos morais e ações revisionais de contratos bancários e empréstimos.

Considerando apenas esses dois assuntos, o custo para o Judiciário foi de mais de R$ 25 bilhões só em 2022. Esse levantamento tem como base cálculo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o custo unitário médio dos processos no Brasil (R$ 8.270).

“Tal valor é praticamente todo absorvido pelo Estado brasileiro, pois a quase totalidade dessas ações é movida sob Justiça gratuita. Como os serviços judiciários são custeados por meio de impostos, constata-se que essa conta é paga pelos cidadãos brasileiros, especialmente pelos menos favorecidos, que não têm condições de se valer de planejamento tributário a fim de reduzir o pagamento dos impostos a que estão submetidos”, afirma a nota.

Litigância predatória em São Paulo
Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico em outubro de 2023, a litigância predatória foi responsável por uma média de 337 mil novos processos por ano só em São Paulo, e um prejuízo estimado em cerca de R$ 2,7 bilhões aos cofres públicos, segundo dados do Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demandas (Numopede) do Tribunal de Justiça paulista (TJ-SP).

O levantamento leva em conta as demandas consideradas predatórias identificadas entre 2016 e 2021. Se considerado todo esse período, o prejuízo pode alcançar R$ 16,7 bilhões.

Para chegar a esse valor, o Numopede do TJ-SP também levou em conta a estimativa do Ipea sobre o custo médio por processo, o que não inclui despesas comuns como perícias técnicas, múltiplos recursos ou custos indiretos das partes, como a contratação de advogados.

A pesquisa classificou 503 casos envolvendo litigância predatória. Cada um deles reúne diversos processos sobre um mesmo tema. Se um juiz comunicar um número grande de ações que tenham empréstimo consignado como assunto, por exemplo, e houver indício de que se trata de litigância predatória, todos esses processos são considerados um caso.

Em Ribeirão Preto, por exemplo, um único caso envolvendo ações de exibição de documentos e de inexigibilidade de dívidas e de multas de trânsito foi responsável por mais de 50 mil demandas no Poder Judiciário.

Em MS, o mesmo itinerário
Em Mato Grosso do Sul, assim como em São Paulo, foi identificado o mesmo itinerário envolvendo a litigância predatória: os advogados entram com reclamações no site consumidor.gov e ajuízam processos em nome de pessoas vulneráveis, com procurações outorgadas por instrumento particular.

Segundo um estudo do Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJ-MS), há diversos casos de litigância predatória sobre, por exemplo, empréstimos consignados. As demandas, em sua grande maioria, tramitam em algumas comarcas específicas e são patrocinadas por um pequeno grupo de advogados e escritórios.

O Centro de Inteligência listou 300 desses processos e concluiu que em 99% deles constam pedidos de dispensa de audiência de conciliação já na petição inicial; em 97%, o cadastro da parte autora na plataforma consumidor.gov foi preenchido com indicação de telefone fixo do escritório do advogado como se ele fosse a parte autora; em 83% dos casos, a procuração foi outorgada por instrumento particular; em 100% da amostragem, a procuração foi redigida em termos genéricos.

Outros temas que, segundo o documento, têm levado a casos de assédio processual em nível nacional são: planos de saúde, multas, serviços de telefonia, ações contra bancos, negativação indevida, dever de informação e Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos (DPVAT).

Julgamento do STJ
O STJ vai decidir se o juiz, ao perceber a possibilidade de litigância predatória, pode obrigar a parte autora da ação a apresentar novos documentos capazes de lastrear minimamente o pedido. O julgamento está marcado para o próximo dia 21.

O tema, que está afetado ao rito dos recursos repetitivos, seria originalmente julgado pela 2ª Seção do tribunal, mas foi afetado à Corte Especial por seu impacto em todos os ramos do Direito.

O recurso trata de uma tese fixada pelo TJ-MS segundo a qual o juiz pode exigir a apresentação de novos documentos que entender pertinentes. O enunciado cita cópias de contratos e de extratos bancários, quando a demanda for contra o consumidor; procuração atualizada; declaração de pobreza; e comprovante de residência. Isso tudo serviria para mostrar que a ação não decorre de uma aventura jurídica.

Para o TJ-MS, isso é possível porque o Código de Processo Civil confere ao julgador o poder geral de cautela, pelo qual ele tem a liberdade de conduzir o feito, determinando a adoção de diligências e providências que entender necessárias ao julgamento da demanda.

Na visão da advocacia, porém, isso é um grande problema, pois abre espaço para o juiz ultrapassar os limites da lei, com o pretexto de combater a litigância predatória, reduzindo o acesso à Justiça e impondo obstáculos processuais, especialmente a pessoas vulneráveis.

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