Opinião

A essência autoritária do artigo 385 do Código de Processo Penal

Autor

  • Paulo Thiago Fernandes Dias

    é advogado doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela PUCRS pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho professor de Direito Penal e Direito Processual Civil na Universidade Ceuma e professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Unisulma.

5 de fevereiro de 2024, 15h14

A Anacrim (Associação Nacional da Advocacia Criminal) protocolou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) com vistas à declaração da não receptividade do artigo 385 do Código de Processo Penal (CPP) pela Constituição (CRFB) [1].

Estabelece o artigo 385 do CPP que: “nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada” [2].

Para entender os motivos apresentados pela Anacrim em sua petição inicial, faz-se relevante uma breve explanação sobre o problema consistente tanto pela manutenção da validade do artigo 385 do CPP, como pela sua aplicação pelo Poder Judiciário, durante o julgamento de casos penais concretos.

O artigo 385 do CPP faz parte da redação original desse diploma legal, cuja origem remonta ao ano de 1941, quando o Brasil se encontrava sob regime político manifestamente autoritário. Refiro-me ao nefasto Estado Novo, presidido por Getúlio Vargas, figura política sui generis na história brasileira. É que, pelo menos até o ingresso do Brasil na Segunda Guerra, Vargas não escondia o seu alinhamento ideológico com o nazifascismo[3].

Não por acaso, mesmo antes de deflagar o Estado Novo (1937-1945), Vargas determinou que o Estado brasileiro agisse de forma implacável contra judeus, comunistas e adversários políticos de seu governo.

“As honras concedidas ao Brasil em consequência do voto nas Nações Unidas teriam sido mais moderadas se tivesse havido ampla divulgação de que, catorze anos antes, o presidente Getúlio Vargas e sua liderança política, que incluía Aranha e Muniz, haviam proposto que fosse impedida a entrada de refugiados judeus no Brasil. Após dois anos de restrição informal, em 7 de junho de 1937, cinco meses antes da instituição do Estado Novo, de inspiração fascista, o Ministério de Relações Exteriores do Brasil, o Itamaraty, emitiu uma circular secreta que bania a concessão de vistos a todas as pessoas de ‘origem semítica'”[4].

Vínculo com a Gestapo
Vargas mobilizou o aparato policial brasileiro para a perseguição dos inimigos que possuía em comum com os nazistas. Basta ver que agentes da polícia brasileira estabeleceram um vínculo com a Gestapo, por meio do qual táticas, cooperação e serviços de inteligência foram compartilhados. “Foi também a Gestapo quem ajudou Filinto Müller a identificar a companheira de Prestes”[5]. Fazendo-se remissão ao processo judicial autoritário e persecutório que mandou Olga Benário (então grávida) para morrer, provavelmente, no campo de concentração Ravensbrück (destino comum à maioria das mulheres judias), no ano de 1942.

“Conforme relato de Sarah Helm, mais de 8 mil pessoas foram exterminadas na câmara de gás instalada numa sala de catorze metros quadrados de um hospital da cidade de Bernburg. Ao lado dessa câmara havia um crematório com dois fornos, uma sala de dissecação e uma morgue. Os nazistas mostravam-se extremamente ciosos de manter o extermínio em massa de prisioneiros em segredo. Na secretaria do campo de concentração de Ravensbrück, registrava-se uma doença inventada como causa da morte de cada mulher entre milhares que haviam sido assassinadas em Bernburg” (p. 75-76)[6].

Com esse perfil autoritário, o Governo Vargas contava com figuras como Francisco Campos, titular da pasta da Justiça e grande responsável pela aprovação de diplomas normativos antidemocráticos como a Constituição de 1937, o Código Penal de 1940 e o Código de Processo Penal de 1941.

Sobre o CPP, Francisco Campos deixou explícita a sua admiração pelo Direito Processual Penal Fascista, do então presidente Mussolini, da feita que não se pode falar em plágio ou em cópia de um diploma por outro. Mas sim que “há, inequivocamente, a convergência de um modelo autoritário de processo penal (o italiano) com certos institutos ibéricos de corte conservador”[7].

O CPP brasileiro (1941), portanto, foi idealizado por juristas autoritários para reproduzir um desenho antidemocrático de processo penal no Brasil, em plena compatibilidade com a Constituição de 1937.

Dispositivos intactos do CPP
Logo, mesmo que tenha sofrido alterações parciais em seu texto ao longo desses mais de 80 anos de existência, o CPP brasileiro conserva alguns dispositivos intactos. É o caso do artigo 385, objeto da ADPF mencionada, haja vista a sua impossível convivência com um ordenamento jurídico que preza pelo princípio da correlação entre acusação e sentença, pelo postulado da inércia da jurisdição, pelo respeito ao contraditório e à ampla defesa, pela garantia da imparcialidade judicial e também pelo cumprimento da presunção de inocência.

“Com efeito, a norma contida no art. 385 do Código de Processo Penal brasileiro é naturalmente incompatível com a presunção de inocência. Dos três sujeitos envolvidos na relação de direito processual penal, apenas um deles – o julgador que deveria ser imparcial – opina e emite juízo condenatório. A possibilidade de o juiz condenar em flagrante descompasso com a acusação não permite cogitar-se de observância à presunção de inocência, que exige provas estremes de dúvida para efeitos de condenação”[8].

Nos termos da Constituição, o Ministério Público é o titular da ação penal pública incondicionada, cabendo-lhe a formulação da pretensão acusatória em face do denunciado, bem como, durante o processo, arcar com o ônus da acusação que formulou. Sendo certo que, nesse arquétipo de processo penal, somente o Ministério Público pode sustentar a pretensão acusatória no âmbito de uma ação penal pública incondicionada.

Ora, se o próprio órgão do Estado (Ministério Público), ao qual se atribuiu, constitucionalmente, a legitimidade para a sustentação da pretensão acusatória no processo penal, considerou a inviabilidade ou o não cabimento de decreto condenatório, o Judiciário, sob penal de agir como se acusador fosse, não pode julgar o mérito dessa causa penal. É que “[…] a questão se coloca no fato de que não é aceitável, por ser incompatível com o sistema acusatório, o acolhimento da pretensão quando o próprio Parquet a reconhece infundada e não provada”[9].

Assim, se ao final da instrução processual penal, o Ministério Público requerer a absolvição do acusado, o Poder Judiciário estará impedido de proferir sentença condenatória.

“O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP mediante o exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém”[10].

O regime democrático instituído com a Constituição de 1988 sepultou o chamado procedimento judicialiforme, além de todas as suas variações. É dizer, diferentemente da leitura de processo penal consagrada em 1941, por meio da qual o Judiciário atuava como se dono e maior protagonista do processo fosse, a ausência de pedido condenatório formulado pelo Ministério Público nas ações penais públicas impede, por completo, que o Judiciário ultrapasse a limitação que lhe fora imposta pelo sistema acusatório.

“O modelo acusatório, por sua vez, estrutura-se no protagonismo das partes, responsáveis que são, exclusivamente, pela iniciativa e pela gestão probatória. Esse modelo de processo penal se caracteriza ainda pela oralidade, pela consagração do princípio que presume a inocência do acusado (não apenas formalmente), pela publicidade dos atos judiciais e, obviamente, pela separação de funções entre a acusação, a defesa e o órgão encarregado do julgamento da causa penal (o juiz, portanto, perde a condição de investigador e se assume como árbitro da demanda). Além do mais, as características da imparcialidade do julgador e da democraticidade são também reinantes no sistema acusatório centrado no respeito aos direitos fundamentais”[11].

Em sentido oposto ao sistema acusatório, Miguel Wedy sentencia a natureza inquisitorial do modelo de processo penal aplicado no Brasil, especialmente a partir do código aprovado em 1941, inspirado que foi, como dito acima, no diploma processual penal fascista italiano da década de 1930, em razão das seguintes caraterísticas fundamentais:

  • a) iniciativa probatória e poder de decisão de ofício pelo órgão julgador;
  • b) desprezo à presunção de inocência;
  • c) consagração do sistema presencial de testemunhas, também a cargo do órgão julgador (o dono do processo);
  • d) o encargo, da defesa, de fazer prova do prejuízo, a fim de que seja reconhecida a nulidade de ato processual[12].

Ademais, de acordo com Gustavo Badaró, “[…] o ato de retirada da pretensão processual pelo Ministério Público — ainda que denominado ‘pedido de absolvição’ — exige a concordância do acusado para que, com tal, acarrete a extinção do processo sem julgamento do mérito”[13].

Espera-se que, ao julgar a ADPF proposta pela Anacrim, o Supremo Tribunal Federal, diferentemente do Superior Tribunal de Justiça[14], declare a manifesta incompatibilidade do artigo 385 do CPP com a Constituição, reconhecendo a não receptividade desse dispositivo legal pela ordem constitucional vigente desde 1988, a fim de que, finalmente, retire-se a validade desse entulho autoritário do ordenamento jurídico e da prática forense de uma vez por todas.


[1] Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-jan-29/stf-julgara-se-juiz-pode-condenar-mesmo-apos-pedido-de-absolvicao-do-mp/

[2] Fonte: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm

[3] NETO, Lira. Getúlio: do governo provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[4] LESSER, Jeffrey. Semitismo em negociação. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (Org). O anti-semitismo nas américas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2007, p. 273.

[5] NETO, Lira. Getúlio: do governo provisório à ditadura do Estado Novo (1930-1945). São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 263.

[6] PRESTES, Anita Leocadia. Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 75-76.

[7] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal II. São Paulo: Tirant lo blanch, 2023, p. 26.

[8] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; LEONEL, Juliano de Oliveira. O manifesto autoritarismo inquisitorial do artigo 385 do Código de Processo Penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 175. ano 29. p. 251-281. São Paulo: Ed. RT, janeiro/2021, p. 271.

[9] NICOLLIT, André. Manual de Processo Penal. Belo Horizonte, 2019, p. 968.

[10] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1144.

[11] DIAS, Paulo Thiago Fernandes. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate. Florianópolis: Emais, 2020, p. 116.

[12] WEDY, Miguel Tedesco. Sistema Acusatório e juiz das garantias. Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2022, p. 15-23.

[13] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 559.

[14] STJ. 6ª Turma. REsp 2.022.413-PA, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. para acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 14/2/2023.

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