Opinião

A prisão preventiva do estrangeiro em trânsito pelo território nacional

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14 de janeiro de 2024, 6h31

Não é incomum que o estrangeiro em trânsito pelo território nacional tenha a sua prisão preventiva decretada em casos em que um nacional possivelmente permaneceria livre. É assim porque os juízes, muitas vezes, lhe pedem o impossível: provar que possui algum vínculo com o Brasil. A falta de vínculo ensejaria um hipotético “risco de fuga”.

O artigo 5º, incisos LXI e LXIV, da Constituição consagra o caráter excepcional da prisão. Em relação à prisão preventiva, essa excepcionalidade fica ainda mais nítida no nível infraconstitucional, no artigo 282, §6º, do Código de Processo Penal, segundo o qual: “A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.

Ora, considerando que a falta de laço com o Brasil é inerente à condição do estrangeiro em trânsito pelo território nacional, supor que essa situação sirva de fundamento para uma prisão preventiva é o mesmo que dizer que o caráter excepcional do instituto — consagrado nos artigos supracitados — não vale para os estrangeiros em trânsito pelo território nacional. Por essa lógica, a exceção da prisão preventiva é transformada em regra, criando inadmissível disparidade entre brasileiros e estrangeiros.

Realmente, como é possível exigir de um sérvio que faz conexão em Guarulhos com destino ao Irã qualquer vínculo com o Brasil? É tão desarrazoável quanto exigir que uma pessoa em situação de rua comprove endereço fixo e ocupação lícita. No entanto, afirmando a validade dessa exigência, em 2017, a 5ª Turma do STJ, no julgamento do RHC 79.918, reconheceu a medida cautelar — devido ao risco de fuga — contra um nigeriano preso após ser flagrado com mais de quatro quilos de cocaína quando se preparava para retornar ao seu país. De acordo com o ex-ministro Jorge Mussi, relator do caso, o fato de o réu ser estrangeiro “deve ser considerado fundamento idôneo a autorizar a ordenação e preservação da prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal, uma vez que há efetivo risco de evasão”.

No entanto, em julgado mais recente, datado de 2019, mitigando o teor dessa última decisão, a 6ª Turma do Tribunal da Cidadania considerou que o “risco de fuga” em decorrência da falta de vínculo com o Brasil não pode ser o único fundamento para a prisão preventiva. Trata-se do julgamento do HC 524.239 RR 2019/0223167-0 — com a ordem concedida —, sob a relatoria da ministra Laurita Vaz, em que restou estabelecido que, “o fato de o acusado ser estrangeiro, morador de rua, não possuir identificação ou vínculos com o distrito da culpa, nos termos da jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, isoladamente, não é fundamento idôneo para justificar a custódia cautelar”.

Dez anos antes desse julgado, a 6ª Turma do STJ, no HC 123.847-SP, em caso envolvendo a prisão preventiva de réu estrangeiro, sob a relatoria do ex-ministro Nilson Naves, considerou que o risco de fuga deve se basear em elementos concretos, não podendo a mera presunção fundamentar a medida cautelar extrema. Assim, segundo consta no Informativo 411 do STJ: “A Turma concedeu o ‘writ’, considerando injustificável o pressuposto cautelar que se valeu de presunções para assegurar a aplicação da lei penal. Entendeu ainda que, mesmo que se trate de estrangeiro, sem bens, família nem qualquer atividade profissional no país, não há motivo suficiente para impor restrições à liberdade do réu, supondo que ele poderia deixar o distrito da culpa. Ora, o paciente, desde a denúncia, não criou obstáculos, tendo espontaneamente se apresentado à Polícia Federal, depositando, inclusive, seu passaporte à disposição do juízo. Ademais, ausentes os indispensáveis fundamentos ao decreto da prisão preventiva, pois o presumido risco de fuga, a reiteração de conduta criminosa e a gravidade abstrata do fato (transações imobiliárias com dinheiro de tráfico internacional de drogas) por si sós não justificam a cautelar como garantia da ordem pública”.

Em 2017, o já citado posicionamento da 5º Turma no RHC 79.918, ao invés de seguir a linha garantista desse importante precedente que levou em consideração o caráter excepcional da prisão preventiva — dez anos antes das alterações implementadas nesse sentido pelo “pacote anticrime” no Código de Processo Penal, especialmente o artigo 282, §6º —, afrouxou essa natureza de “ultima ratio” do instituto, no caso de réu estrangeiro em trânsito.

Dessa forma, diante do panorama jurisprudencial atual, cabe ao advogado atuando em caso de prisão preventiva de réu estrangeiro em trânsito pelo Brasil demonstrar, em primeiro lugar, que a presunção de que o fato de seu cliente ser estrangeiro — e sem vínculo com o território nacional — implicará automaticamente em “periculum libertatis” não pode, por si só, servir de fundamento para a medida cautelar, pois isso iria de encontro com os precedentes da 6ª Turma do STJ (particularmente, o HC 524.239 RR 2019/0223167-0).

Em segundo lugar, seguindo a lógica da Constituição e do artigo 282, §6º, do Código de Processo Penal, caberá ao advogado demonstrar que a saída mais adequada — leia-se: constitucional — para resolver a questão é justamente a aplicação de alguma das medidas cautelares diversas da prisão. Há várias delas (como a tornozeleira eletrônica e a retenção do passaporte) que podem fazer cessar o pressuposto “risco de fuga” e, ao mesmo tempo, reafirmar o caráter excepcional da prisão preventiva. Tais medidas não só se mostram em plena consonância com o sistema de direitos fundamentais projetado pelo constituinte de 1988, como também são suficientes para erradicar qualquer risco de evasão.

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