Opinião

Possível crime de abuso de autoridade em curso contra o padre Júlio Lancellotti

Autor

  • André Jorgetto

    é advogado graduado em Direito pelo Largo São Francisco da Universidade de São Paulo (FD/USP) graduando em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Letras e Ciências Humanas da mesma instituição (FFLCH/USP).

4 de janeiro de 2024, 18h23

A notícia de que padre Júlio Lancellotti pode ser alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito  da Câmara dos Vereadores do município de São Paulo é estarrecedora.

Padre Júlio é personalidade notória na defesa dos direitos humanos e das pessoas em situação de rua, atuante pela Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. De acordo com a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), uma pastoral é uma “ação da Igreja Católica no mundo ou o conjunto de atividades pelas quais a Igreja realiza a sua missão de continuar a ação de Jesus Cristo junto a diferentes grupos e realidades”. Nos seus mais de 40 anos na luta, recebeu até apoio do papa Francisco, o Sumo Pontífice, que declarou ser padre Júlio um “mensageiro de Deus”.

Rovena Rosa/Agência Brasil

Em 6/12/2023, o vereador Rubinho Nunes (União Brasil), um dos cofundadores do Movimento Brasil Livre (MBL) e autodeclarado “cristão”, protocolou um pedido para instaurar uma CPI para investigar agentes, entidades e ONGs que fazem trabalho social com pessoas em situação de rua e dependentes químicos. Até hoje, 4/1/2024, há 23 assinaturas, cujo número pode vir a reduzir.

A CPI é uma comissão composta por membros do Poder Legislativo, à qual a Constituição Federal (CF, artigo 58, §3º) confere poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, ou seja, investiga-se como se estivesse no bojo do Poder Judiciário (com amplos poderes, como a quebra de sigilo e determinando condução coercitiva de testemunhas, por exemplo) e visa a apuração de “fato determinado” e opera por “prazo certo” — expressões da Constituição.

Por seu turno, um inquérito é um processo administrativo preparatório da ação penal visando apurar duas coisas: a prática de uma infração penal (materialidade) e a identificação do agente (autoria).

Em resumo: a CPI é um órgão colegiado composto por membros do Poder Legislativo dotado de amplos poderes instrutórios visando a apuração de uma infração penal e de seu autor.

Trata-se de um poder muito importante e essencial para as democracias contemporâneas. De acordo com o portal Nexo, um levantamento do Parlamento Europeu de 2010 aponta que a maioria dos países do bloco tem previsão legal para a comissões de inquérito.

Portanto, uma CPI é um instrumento muito caro à sociedade democrática, não podendo seu uso ser indiscriminado e flutuar ao sabor das circunstâncias, destoando do interesse público. Não se ignora que é um ato político “lato sensu”, mas deve ter um lastro minimamente concreto.

Nesse sentido, à parte a crueldade de uma CPI como essa (prejudicar uma população mais do que castigada à exaustão), a motivação e o viés que se instala na possível investigação, tornam antijurídica a atuação do Órgão. É possível conjecturar que o padre Júlio se encontra na mira justamente para a CPI ser instrumentalizada nas redes sociais e ser manejada para estimular as bases eleitorais no coliseu contemporâneo das redes sociais, com seus recortes e “lacrações” e funcionamento histriônico. Inexistem quaisquer indícios de que Padre Júlio tenha praticado qualquer conduta criminosa apta a colocá-lo no centro de um inquérito. Contudo, o mesmo não se pode dizer do membro do Poder Legislativo municipal, conforme conteúdo veiculado pelo próprio.

Das redes sociais do próprio proponente (Instagram e X, ex-Twitter), verifica-se a motivação exclusivamente política (ainda mais ganhando fôlego em ano eleitoral) tem um alvo determinado, um CPF, representante da corrente progressista e defensora dos direitos humanos, que é a pessoa do Padre Júlio, cuja caricatura o autor colocou nos ombros um rato e fez constar na batina o símbolo do comunismo (a foice e o martelo), agenciando na imagem as representações piegas que compõem o imaginário da ultra-direita brasileira, buscando replicar em solo do Poder Legislativo o delírio cultivado pelos algoritmos das plataformas.

Trata-se da clássica figura jurídica do abuso. O abuso constitui um exercício de um direito objetivamente fora dos limites causando prejuízo a terceiros e possui suas expressões nos diferentes ramos do direito, como no direito civil e no direito comercial, não ficando de fora o âmbito do direito penal.

A Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade, em seu artigo 2º, inciso II coloca expressamente como sujeito ativo do crime os membros do Poder Legislativo. Por sua vez, a conduta em curso pode se subsumir ao descrito no artigo 30 da mesma lei:

Art. 30.  Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Nesse sentido, a franca ausência de justa causa para sustentar uma investigação criminal contra o Padre Júlio (cuja inocência é sabida nos termos legais) a instauração de uma CPI nitidamente motivada para este fim é uma conduta possível de ser subsumida ao tipo penal acima.

Ante à declarada motivação persecutória e cujo mau exercício evoca o nefasto das ditaduras, a assinatura do requerimento de instauração de uma CPI tão infame pode configurar o que o tipo penal concebeu como “dar início à persecução administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”. Trata-se, assim, de um crime possivelmente já consumado na forma do Código Penal, artigo 14, inciso I:

Art. 14 – Diz-se o crime:
I – consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;

 Ante aos fatos já praticados no iter criminis em questão, é possível seus agentes recorrerem à desistência voluntária e ao arrependimento eficaz, no sentido de impedir a produção do resultado (i.e., a perseguição sem justa causa de uma pessoa sabidamente inocente), interrompendo o abuso em andamento.

Em termos concretos, é possível conjecturar que a eficácia dependeria do arquivamento do requerimento da CPI pela ausência do quórum mínimo de 1/3 (um terço) dos  membros da Câmara (Regimento Interno, artigo 91).

Nessa hipótese, restaria a aferição da responsabilidade do vereador requerente, passível de ser enquadrada na modalidade tentada do CP, artigo 14, inciso II e parágrafo único:

Art. 14 – Diz-se o crime:
II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.
Parágrafo único – Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.

Em caso de eventual confirmação da conduta criminosa incorrida por parlamentar nessa hipótese em comento, a lei coloca como efeitos da condenação criminal não apenas a indenização, a perda do mandato e sua inabilitação pelo período que pode ir de um a cinco anos (artigo 4º, incisos I a III).

Por fim, convém lembrar que vereadores não possuem foro por prerrogativa de função (que no Poder Municipal, a Constituição se limitou aos prefeitos e não é passível de extensão aos demais membros, conforme reconheceu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 6.842).

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ITEM 4 DA AL. D DO INC. III DO ART. 123 DA CONSTITUIÇÃO DO PIAUÍ. EXTENSÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO PARA VICE-PREFEITO E VEREADORES. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS DA SIMETRIA, ISONOMIA E DO JUIZ NATURAL. PRECEDENTES. PROPOSTA DE CONVERSÃO DO JULGAMENTO DA CAUTELAR EM JULGAMENTO DE MÉRITO. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA COM EFEITOS EX NUNC. 1.Processo devidamente instruído. Matéria pacificada no Supremo Tribunal Federal. Proposta de conversão da apreciação da medida cautelar em julgamento de mérito. 2. A jurisprudência prevalecente neste Supremo Tribunal é contrária à extensão discricionária do rol de autoridades detentoras do foro por prerrogativa de função, em afronta aos princípios constitucionais da simetria, da isonomia e do juiz natural. 3. É cabível a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, considerada as três décadas de vigência da norma, agora impugnada, válida desde a promulgação da Constituição da Piauí, em 5.10.1989, na vigência da qual a jurisprudência deste Supremo Tribunal oscilou sobre a matéria. Justificativa para preservação das situações jurídicas até aqui consolidadas. r. Procedência da ação direta de inconstitucionalidade para declarar inconstitucional, com efeitos ex nunc, a expressão “Vice-Prefeitos e Vereadores” constantes da al. d do inc. III do art. 123 da Constituição do Piauí.
(ADI 6842, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 21-06-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-128  DIVULG 29-06-2021  PUBLIC 30-06-2021)

Ademais, a Lei dos Crimes de Abuso de Autoridade determinou serem os crimes ali previstos de ação penal pública incondicionada (artigo 3º), admitindo a ação penal privada após seis meses do esgotamento do prazo para o Ministério Público oferecer a denúncia (§§1º e 2º).

Seria salutar para a democracia e para o bom funcionamento das instituições — no qual se inserem a não banalização da instituição da CPI e a proibição do abuso de autoridade como indicativo da consolidação do Estado democrático de Direito — a interrupção de práticas como esta através de penas não encarceradoras, donde surgem especialmente as sanções de perda do mandato e de inabilitação como suficientes, proporcionais e adequadas.

Importante ressaltar que a instauração de uma CPI como esta ocorre a menos de um ano da grave efeméride dos atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, mostrando que o espectro do fascismo continua assombrando o Brasil e que, nas eleições que se avizinham, será energizado pelas redes sociais cujos algoritmos (assim como alguns usuários) não possuem balizas legais, éticas ou morais, exigindo no dia de hoje uma resposta institucional à altura, sob pena de todos sucumbirmos.

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