Opinião

Admissão imotivada das ações de improbidade administrativa

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2 de abril de 2024, 13h23

As profundas alterações introduzidas na Lei de Improbidade Administrava, com o advento da Lei nº 14.230 de 2021, começam a surtir seus efeitos nos casos concretos levados aos tribunais brasileiros, sendo, talvez, a de maior importância, a abolição da modalidade culposa dos atos de improbidade. Um inquestionável passo à frente do Direito Administrativo Sancionador.

Todavia, não podemos deixar de chamar a atenção para um fenômeno que a vida prática começa a nos evidenciar: uma estranha e indesejada “admissão tácita” das ações de improbidade, que parece guardar pouco (ou mesmo nenhuma) compatibilidade com a nova legislação.

Explica-se: previamente à reforma da legislação, o recebimento da petição inicial era condicionado à abertura de prazo para a apresentação de defesa prévia por parte do requerido, de acordo com o artigo 17, § 7º:

“Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias.”

Tão somente após a apresentação da defesa prévia, que devia se limitar, ao menos em tese, às justificativas para a rejeição imediata da inicial, é que poderia o juízo decidir pelo recebimento, ou não, da ação [1], sempre de maneira fundamentada, por determinação expressa da lei de regência e da jurisprudência firme do Superior Tribunal de Justiça:

[Antiga redação do art. 17, § 8o]

“Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita.” (Grifos nossos)

[Superior Tribunal de Justiça]

1. Esta Corte Superior tem a diretriz de que a decisão de recebimento da inicial da ação de improbidade também deve ser juridicamente fundamentada, não se dispensando a criteriosa identificação da presença de justa causa.

2. A justa causa é o ponto de apoio e mesmo a coluna mestra de qualquer imputação de ilícito, a quem quer que seja. Se assim não fosse, seriam admissíveis as imputações genéricas, abstratas, desfundamentadas, deslastreadas de elementos fáticos ou naturalísticos, ficando as pessoas ao seu alcance, ainda que não se demonstrem atos subjetivos praticados por elas (AgInt no AResp 961.744/RJ, Rel. p/Acórdão Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 3.4.2019).”

(AgInt no AREsp Nº 1309151-RS, Min. Manoel Erhardt, Primeira Turma, DJ 19/10/2021)

Portanto, até o advento da Lei nº 14.230 de 2021, encerrada a fase de apresentação da defesa prévia, cabia à atividade jurisdicional apresentar as razões pelas quais julgava possível a rejeição imediata da inicial ou o seu recebimento, com a consequente ordem de citação do requerido, transformando-o em réu de uma ação de improbidade.

No entanto, como é de amplo conhecimento, a defesa prévia foi extirpada do texto legal, por meio da revogação dos antigos parágrafos 7o e 8o, sob o argumento de que, na prática, as partes apresentavam peças muito similares à própria contestação, impondo ao feito uma ineficaz reiteração de argumentos que apenas servia para retardar o andamento processual.

É o que indica o parecer emitido pelo deputado Federal Carlos Zarattini, quando da tramitação do projeto legislativo na Câmara dos Deputados:

“Foi suprimida a etapa da defesa prévia, prevista na lei vigente, posto que é considerada ineficaz para as partes. Por isso, para que seja dada maior agilidade e presteza ao processo jurisdicional, ao mesmo tempo que mantém o direito à ampla defesa do acusado, é acompanhada da intrínseca necessidade de documentos ou de indícios suficientes da existência do ato de improbidade que instruam a petição inicial, sob pena do seu indeferimento de ofício pelo Magistrado.” [2]

Modificação

Aqui reside o perigoso efeito da modificação do texto legal, jamais pretendido pelo legislador. É que a defesa prévia, apesar de ineficaz em sua essência, fomentava uma dialeticidade preliminar à formação da relação jurídica processual que impunha ao juízo um certo constrangimento, ou, no mínimo, uma propensão para que fundamentasse o recebimento da petição inicial, afinal já se faziam conhecidos boa parte dos argumentos defensivos de quem que poderia vir a se tornar ré da ação.

No entanto, com a extinção da defesa prévia, essa precária relação jurídico-processual formada por autor, Estado-Juiz e requerido, também foi extinta, retirando do juízo o conhecimento da defesa preliminar, e, por consequência, o senso de que teria de superar os argumentos apresentados por ambas as partes para admitir a inicial.

Consequentemente, para um apressado intérprete das novidades legislativas, passaria a ser possível uma mera ordem de “cite-se” no caso concreto, como costumeiramente ocorre nas ações de rito ordinário.

Lamentavelmente, é isto que a vida prática vem demonstrando, não sendo raros os casos em que o ajuizamento da ação de improbidade administrativa é seguido de uma burocrática ordem de “cite-se”, destituída de argumentação, ainda que concisa, capaz de justificar o porquê do recebimento da inicial: daí o motivo para entendemos funcionar este ato como uma indesejada “admissão tácita” das ações de improbidade, em que o juízo, equivocadamente, incute na ordem de citação uma velada admissão de sua forma e da plausibilidade dos argumentos lançados.

Por óbvio, essa não é a interpretação correta das alterações legais, especialmente quando se tem em conta que a nova legislação foi concebida com o entendimento de que havia de se colocar uma trava mais rigorosa sobre o uso das ações de improbidade pelos seus legitimados ativos. Perceba-se que, apesar das revogações apresentadas, a Lei nº 14.230 de 2021 introduziu severas exigências para o recebimento da inicial, verbis:

“§ 6º A petição inicial observará o seguinte:

I – deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada;

II – será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente, inclusive as disposições constantes dos arts. 77 e 80 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

[…] § 6º-B A petição inicial será rejeitada nos casos do art. 330 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), bem como quando não preenchidos os requisitos a que se referem os incisos I e II do § 6º deste artigo, ou ainda quando manifestamente inexistente o ato de improbidade imputado.

Se a petição inicial estiver em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a citação dos requeridos para que a contestem no prazo comum de 30 (trinta) dias, iniciado o prazo na forma do art. 231 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).”

É dizer: segundo o rito estabelecido, a ação de improbidade administrativa deve vir acompanhada da individualização das condutas dos requeridos e de indícios suficientes dos fatos e do dolo imputado, sob pena de rejeição da inicial, de acordo com o §6º-B.

Nova realidade

Diante desta nova realidade, parece de todo indevido que, ao se deparar com a inicial, possa o juízo simplesmente ordenar a citação do(s) réu(s), com todas as consequências negativas advindas de tal ato, sem que se demonstre que (i) as condutas foram devidamente individualizadas, (ii) que os indícios dos fatos encontram-se aparentemente demonstrados e (iii) que há o mínimo sinal de dolo na conduta sob exame.

Se a legislação afirma só ser possível o ato de citação quando “a petição inicial estiver em devida forma”, é tarefa do juízo apresentar as razões que o levaram a concluir pela aparente conformidade da ação aos anseios legais, e não relegar ao imputado, já na qualidade de réu, a missão de apresentar extensa preliminar defensiva quanto à necessidade de se rejeitar a inicial.

Sempre foi esse, aliás, o espírito legislativo que guiou as alterações da lei de improbidade, também tendo se ocupado o parecer emitido pelo Deputado Federal Carlos Zarattini em reforçar a ideia de que a petição inicial deve ser recebida de maneira fundamentada:

“Na esteira do que se faz em relação à indisponibilidade dos bens, imprescindível a fundamentação concreta e suficiente da decisão judicial que determinar o início do processo, inclusive com a positivação de causas de absolvição sumária, quando o juiz perceber, inequivocamente, a inexistência de justa causa para o prosseguimento da ação, por exemplo.” [3]

É essa filtragem que permitirá a jurisdição, dentro de um cenário ideal, se dedicar às ações de improbidade administrativa verdadeiramente lastreadas em provas sólidas e argumentos que não representem mera especulação.

Ganha a acusação porque alcançará o julgamento do mérito, ganha a defesa porque saberá exatamente os termos e os fatos dos quais deverá se defender [4] e ganha a jurisdição porque não se verá inserida em eternas discussões a respeito de vícios processuais, que tanto contribuem para a demora na prestação jurisdicional.

Portanto, não há razão para se acreditar que a nova legislação tenha pretendido acabar com a necessidade de fundamentação do ato de recebimento da inicial das ações de improbidade, muito menos que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quanto à necessidade de o juízo identificar a justa causa tenha sido superada, razão pela qual caberá ao réu — infelizmente já nesta qualidade —, alertar para a nulidade desta admissão tácita da inicial, por afronta à interpretação conjunta dos 6º, I e II, § 6º-B e § 7º, do artigo 17, da LIA, ao artigo 93, IX, da CRFB e ao artigo 489, § 1º, do CPC.

 

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[1] Como regra, as ações de improbidade deviam seguir esse rito, muito embora se reconheça que a ausência de defesa prévia não implicava nulidade absoluta, mas apenas nulidade relativa, segundo sedimentada jurisprudência do STJ. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 1.008.632 – RS

[2] Parecer proferido pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, nos autos do Projeto de Lei n. 10.887 de 2018, datado de 16/06/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2184458. Acesso em 15 de março de 2024. Pág. 11.

[3] Op. cit. Pág. 13.

[4] São precisas as lições de Luigi Ferrajoli sobre o tema: “Ao mesmo tempo, enquanto assegura o controle da legalidade e do nexo entre convencimento e provas, a motivação carrega também o valor ‘endoprocessual’ de garantia de defesa e o valor ‘extraprocessual’ de garantia de publicidade. E pode ser, portanto considerado o principal parâmetro tanto de legitimação interna ou jurídica quanto da externa ou democrática da função judiciária.” Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.Págs. 497-498

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