Processo Tributário

A reforma tributária e o contencioso administrativo

Autores

  • Ermelinda Marques Muller

    é auditora fiscal da Receita Federal bacharel em Direito contadora mestranda e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

  • Ramon Leandro Freitas Arnoni

    é mestrando e especialista em Direito Tributário pelo Ibet especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal de São Carlos especialista em Direito Público Direito da Seguridade Social Direito Empresarial Direito do Consumidor Ciências Criminais Prevenção e Combate à Corrupção auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo juiz titular do Tribunal de Impostos e Taxas-SP.

17 de março de 2024, 8h00

A reforma tributária aprovada no dia 20 de dezembro de 2023 pelo Congresso em ocupado amplo espaço das discussões jurídico-tributárias. E, em nossa opinião, os temas que têm recebido mais atenção orbitam em torno das alíquotas, da carga tributária efetiva, do período de transição, dos poderes e natureza jurídica do Comitê Gestor, free riders, setores favorecidos com alíquotas diferenciadas, entre outros relacionados com aspectos materiais do IBS e da CBS, ou aspectos políticos da reforma, relegando-se um restrito debate em torno de essencial elemento do ciclo de positivação do crédito tributário: o contencioso administrativo tributário.

Segundo a Emenda à Constituição n° 132, de 2023, caberá à lei complementar a disciplina de tal matéria [1], o que, em nosso sentir, tornará o sistema mais coerente e uniforme, além de conferir maior estabilidade à legislação do contencioso administrativo tributário, que não raras vezes sofre a influência governamental, quando deveria ser tratado sempre sob a visão estatal.

Quanto a esta delegação, vislumbramos uma primeira questão que merece análise, notadamente, no ponto que toca à propalada ofensa ao pacto federativo, uma vez que a competência para a iniciativa da lei complementar coube ao Poder Executivo da União [2], o que retira a competência do poder de legislar sobre o IBS conferido aos outros entes federados (estados, Distrito Federal e municípios).

Outro aspecto que merece discussão diz respeito à previsão do exercício de forma integrada entre os estados, Distrito Federal e municípios, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do IBS, da competência administrativa para decidir o contencioso administrativo [3].

Quanto a este ponto, o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) elaborou estudo no qual propôs, embora sob a perspectiva de um IVA único nacional (não prevaleceu na E.C. 132/2023), a criação de um Conselho de Administração Tributária, com a função de julgamento em primeira e segunda instâncias, além de uma Câmara Superior, com competência para uniformizar decisões divergentes das Câmaras de 2ª instância. [4]

A proposta do CCiF vai ao encontro do Projeto de Lei Complementar nº 381/2014 em trâmite no Senado, anterior, portanto, ao projeto de reforma tributária consolidado pela referida emenda constitucional, e que busca estabelecer normas gerais sobre o processo administrativo fiscal no âmbito das administrações tributárias da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, e que não foge do texto do Projeto de Lei Complementar n° 124/2022 que dispõe sobre normas gerais de prevenção de litígio, consensualidade e processo administrativo, em matéria tributária, elaborado pela comissão de juristas, presidida pela ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça.

Mas não podemos deixar de pontuar que tanto o projeto 381/2014, quanto o projeto 124/2022, foram concebidos fora do conjunto normativo posto pela reforma tributária que previu a CBS e o IBS sob o modelo de IVA-Dual, de maneira que suas disposições necessariamente merecem adaptação.

Sob o aspecto do contencioso administrativo dos estados, municípios e Distrito Federal, a primeira observação que fazemos é no sentido da possibilidade de esvaziamento das atuais estruturas de julgamento estaduais, municipais (nos municípios que as possuem) e do Distrito Federal.

A atribuição de competência de julgamento para IPVA, ITCMD e taxas nos estados e ITBI, IPTU e taxas nos municípios, bem como Distrito Federal, não parece ser suficiente para justificar a manutenção das já instaladas estruturas de julgamentos, algumas quase centenárias, cujo capital material e humano acumulados no decorrer dos anos estão a merecer aproveitamento.

Dentro desse contexto, pensamos que um modelo, nos moldes dos propostos por Fábio Henrique Bordini Cruz, juiz da Câmara Superior e ex-presidente do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, em palestra ministrada no evento de comemoração do 88º aniversário deste tribunal administrativo [5], com 1ª e 2ª instância nas administrações tributárias dos estados, Distrito Federal e municípios e uma Câmara Superior, para solucionar as divergências, poderia ser uma boa alternativa.

Uniformização jurisprudencial

Uma outra proposta seria uma estrutura com a concentração do julgamento final — Instância Especial — tanto do IBS como da CBS no Conselho Administrativo de Recursos Fiscal, com participação dos estados, DF e municípios nas primeiras e segundas instâncias.

Este modelo, pensamos, pode permitir uma desejável uniformização jurisprudencial no âmbito administrativo, todavia, pode acarretar alguns problemas, como: acúmulo de processos devido ao volume, em um único órgão, das demandas já existentes das decorrentes dos dois novos tributos; questão política, ao passo que restaria à União, por meio da Receita Federal, decidir sobre o IBS, o que demandaria uma extensa negociação federativa.

Outra opção seria a concentração de todas as instâncias no Comitê Gestor do IBS, com participação de representantes da União. As vantagens desse modelo seria a gestão centralizada do contencioso, uniformidade de procedimentos e desejável uniformização jurisprudencial.

Porém, a exemplo do primeiro modelo, vislumbramos possíveis questões de ordem política com a participação da União em julgamento de tributo de competência de estados, Distrito Federal e municípios, com participação restrita desses entes federativos, além de custos orçamentários envolvidos para implantação e manutenção de estrutura de duas ou três instâncias de julgamento concentradas em um único órgão.

Um terceiro modelo possível seria a manutenção das primeiras e segundas instâncias nos estados, Distrito Federal e municípios, com uma Câmara Superior de uniformização no Comitê Gestor do IBS, com procedimentos, impugnação, recursos e prazos uniformizados em Lei Complementar de caráter nacional. As vantagens deste modelo seriam a redução do custo de implantação e a uniformização jurisprudencial com vinculação das decisões do conselho às instâncias inferiores.

Contudo, assim como nos modelos anteriores, há que se avaliar alguns entraves, como a criação de um sistema nacional de peticionamento e tramitação, possível crescimento de volume de processos, considerando que, em tese, a instância de uniformização receberia processos de todos os entes federativos.

Um quarto modelo dentre aqueles que vislumbramos possíveis seria de concentração de todas as instâncias nos estados, Distrito Federal e municípios com procedimentos, impugnação, recursos e prazos uniformizados em lei complementar nacional. As vantagens seriam econômicas, ao eliminar o custo de implantação e manutenção do contencioso no comitê gestor, e política ante a manutenção das competências atuais dos entes subnacionais.

Porém, não se pode olvidar de uma questão de ordem legislativa, já que esse quarto modelo iria em sentido contrário ao proposto no artigo 156-B, inciso III, da emenda constitucional aprovada.[6]

Instância única no Comitê Gestor

Como solução, pensamos na criação de uma instância única no Comitê Gestor, com competência para julgar as matérias de interesse dos estados, Distrito Federal e municípios em caráter de uniformização jurisprudencial e vinculante às demais instâncias, deixando aos referidos entes federados as instâncias ordinárias e até especiais, sem prejuízo da necessária uniformização legislativa a ser implementada pela lei complementar nacional reguladora, seja nos moldes do projeto 381/2014 seja no do projeto 124/2022, ou algum outro a ser apresentado, conforme proposto no terceiro modelo aventado.

Com isso, preserva-se, inclusive, a proximidade do órgão de julgamento ordinário (instâncias ordinárias) com o elemento probatório e os agentes envolvidos: auditores fiscais estaduais, municipais, do Distrito Federal e os contribuintes jurisdicionados.

Quanto à composição, nossa experiência leva a crer que o modelo paritário  ainda é o ideal, muito embora o relatório final de pesquisa diagnóstico do contencioso tributário administrativo pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), Ministério da Economia, Receita Federal e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) tenha concluído que a melhor forma de nomeação para o contencioso administrativo seja por concurso público — 56,6% dos entrevistados — e a indicação paritária tenha sido a segunda escolha — 24,8% da preferência dos entrevistados. [7]

Acreditamos que a troca de experiências profissionais e pontos de vista entre representantes da administração fazendária e dos contribuintes enriquece o debate jurídico tributário, o que contribuiu para decisões mais equânimes e socialmente aceitáveis.

Quanto aos julgadores servidores que comporão o órgão de julgamento do Comitê Gestor do IBS, estes deverão, obrigatoriamente, nos termos do artigo 156-B, § 2º, inciso VI, [8] ser das carreiras da administração tributária e das procuradorias dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, o que, de certa forma, garante o aproveitamento dos quadros de julgadores das estruturas já existentes cujo conhecimento técnico é valioso e indispensável para o exercício da atribuição de julgador.

Espera-se que a litigiosidade em matéria tributária com a criação da CBS e do IBS (IVA-Dual), com normas uniformes, nos termos do artigo 149-B [9], seja diminuída, notadamente em razão da possível e desejável eliminação da guerra fiscal entre estados e entre municípios, um dos objetivos da reforma.

Como é cediço, a implantação do IBS será gradual, com início em 2026 [10] e previsão de extinção total dos impostos estaduais e municipais em 2033 [11], de maneira que a estrutura de julgamento atual deve prevalecer inalterada por pelo menos mais uma década e meia, tempo mais que suficiente, pensamos, para as necessárias adaptações administrativas e legislativas que possam melhorar a atual estrutura de julgamento.

 


[1] Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (…)

§ 5º Lei complementar disporá sobre: (…)

VII – o processo administrativo fiscal do imposto;

[2]Art. 61 CF/88. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

Art. 18. O Poder Executivo deverá encaminhar ao Congresso Nacional: I – em até 90 (noventa) dias após a promulgação desta Emenda Constitucional, projeto de lei que reforme a tributação da renda, acompanhado das correspondentes estimativas e estudos de impactos orçamentários e financeiros; II – em até 180 (cento e oitenta) dias após a promulgação desta Emenda Constitucional, os projetos de lei referidos nesta Emenda Constitucional; III – em até 90 (noventa) dias após a promulgação desta Emenda Constitucional, projeto de lei que reforme a tributação da folha de salários. Parágrafo único. Eventual arrecadação adicional da União decorrente da aprovação da medida de que trata o inciso I do caput deste artigo poderá ser considerada como fonte de compensação para redução da tributação incidente sobre a folha de pagamentos e sobre o consumo de bens e serviços.

[3]Art. 156-B CF/88 Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, nos termos e limites estabelecidos nesta Constituição e em lei complementar, as seguintes competências administrativas relativas ao imposto de que trata o art. 156-A: I – editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto;

II – arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito

Federal e Municípios; III – decidir o contencioso administrativo.

[4]Santi, Eurico Marcos Diniz de, Machado, Nelson [coordenadores]. Imposto sobre bens e serviços / Centro de Cidadania Fiscal: estatuto, PEC45, PEC Brasil solidário, PEC 110, notas técnicas e visão 2023. São Paulo: Editora Max Limonad, 2023. p. 387.

[5]Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=xyuBtHv0ldw>. Acesso em 07. nov. 2023.

[6]Art. 156-B. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, nos termos e limites estabelecidos nesta Constituição e em lei complementar, as seguintes competências administrativas relativas ao imposto de que trata o art. 156-A: III – decidir o contencioso administrativo.

[7] Relatório Final de Pesquisa Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/diagnostico-do-contencioso-tributario-administrativo Acesso em: 24. jul. 2023.

[8]Art. 156-B (…) § 2º (…) VI – as competências exclusivas das carreiras da administração tributária e das procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão exercidas, no Comitê Gestor e na representação deste, por servidores das referidas carreiras;

[9]Art. 149-B. Os tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, observarão as mesmas regras em relação a: I – fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos; II – imunidades; III – regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; IV – regras de não cumulatividade e de creditamento. Parágrafo único. Os tributos de que trata o caput observarão as imunidades previstas no art. 150, VI, não se aplicando a ambos os tributos o disposto no art. 195, § 7º.

[10] Art. 125. Em 2026, o imposto previsto no art. 156-A será cobrado à alíquota estadual de 0,1% (um décimo por cento), e a contribuição prevista no art. 195, V, ambos da Constituição Federal, será cobrada à alíquota de 0,9% (nove décimos por cento).

[11] Art. 129. Ficam extintos, a partir de 2033, os impostos previstos nos arts. 155, II, e 156, III, da Constituição Federal.

Autores

  • é auditora fiscal da Receita Federal, bacharel em Direito, contadora, mestranda e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

  • é mestrando e especialista em Direito Tributário pelo Ibet, especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal de São Carlos, especialista em Direito Público, Direito da Seguridade Social, Direito Empresarial, Direito do Consumidor, Ciências Criminais, Prevenção e Combate à Corrupção, auditor fiscal da Receita Estadual de São Paulo, juiz titular do Tribunal de Impostos e Taxas-SP.

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