Opinião

Termo firmado com quilombolas da reserva Trombetas é marco socioambiental histórico

Autores

  • Dilermando Gomes Alencar

    é procurador federal mestre em Direito pelo IDP e doutorando em Direito pela UnB.

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

28 de abril de 2024, 6h04

Existe um movimento em curso, silencioso e discreto, mas capaz de resolver conflitos históricos e de redefinir os conceitos de preservação e de conservação [1] nas unidades de conservação federais de proteção integral.

Carolina de Melo Franco

E diz respeito ao maior papel dado por lei ao ICMBio: o de gestor socioambiental de espaços territoriais especialmente protegidos. Cuida-se da implementação efetiva do conceito de dupla afetação (ou dupla proteção) entre povos e comunidades tradicionais e as UCs de proteção integral. Concretamente, a dupla afetação materializou-se por meio do Termo de Compromisso nº 02/2022, celebrado entre o ICMBio e a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Alto Trombetas II (ACRQAT), com o objetivo de reconhecer direitos e estabelecer acordo de convivência na área de sobreposição entre a Reserva Biológica [2] Trombetas e o Território Quilombola Alto Trombetas II, com vistas a compatibilização entre as atividades praticadas pela comunidade quilombola e os objetivos da UC [3].

O conflito entre povos e comunidades tradicionais [4] e a proteção especial a UCs de proteção integral reside no fato de que o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) proibiu usos diretos [5] em tais espaços.

Ao contrário dos proprietários privados e posseiros que devem ceder espaço à tutela ambiental [6], resolvendo-se o conflito na justa indenização mediante desapropriação a quem tem domínio ou mediante indenização de benfeitorias a quem tem posse de boa-fé, os povos e comunidades tradicionais mereceram uma tutela especial do constituinte não apenas de sua posse ou de sua propriedade, mas de seus modos de vida e sua pertença a um território. Logo, a solução dada aos proprietários privados comuns não lhes seria aplicável, a não ser que consintam expressamente [7] em serem indenizados ou reassentados.

Impasse e possíveis soluções

Como era de se esperar, os povos e comunidades tradicionais não têm estado dispostos a serem simplesmente indenizados ou reassentados [8]. Querem o gozo da terra de seus antepassados e da qual se reconhecem como parte integrante. Assim, formou-se um impasse para o qual o Snuc não trouxe uma solução expressa, o que decorreria da aparente incompatibilidade entre normas previstas no Texto Constitucional: espaços territoriais especialmente protegidos de um lado (artigo 225, § 1º, III) e povos e comunidades tradicionais de outro (artigos 216, 217 e 231, e o artigo68 do ADCT).

Apesar de a discussão gravitar em torno de conceitos técnico-ambientais (proteção, conservação, diversidade biológica, uso sustentável, entre outros), no plano normativo existe um conflito aparente entre normas constitucionais, de forma que o problema precisa ser resolvido no plano da hermenêutica constitucional. Ou seja, a solução do impasse é uma solução jurídica e não técnica [9].

Spacca

Duas soluções possíveis à sobreposição decorrente da dupla afetação seriam a recategorização da UC e a desafetação da área. Com a recategorização uma UC de proteção integral, que não admite usos diretos, passaria a ser uma UC de uso sustentável e os usos históricos dos povos tradicionais passariam, em tese, a ser possíveis.

A outra solução seria retirar a proteção ambiental especial da área e outorgá-la à comunidade tradicional sobreposta mediante o instituto da desafetação. As duas propostas demandam lei em sentido estrito e, em mais de vinte anos de SNUC, não foram adotadas para este fim. Se as sobreposições entre UCs de proteção integral e povos tradicionais não teve uma solução legal, o conflito sociológico, que impedia a plena gestão pelo ICMBio, clamava por uma resposta estatal.

Histórico e precedentes jurídicos

Como o ICMBio vinha então procedendo ao longo dos anos para gerir o conflito? Estavam sendo firmados termos de compromisso [10] por prazo certo, mas que vinham sendo constantemente prorrogados, a despeito de previsão legal para tanto [11]. Ao invés de resolver a questão e, assim, dar uma resposta concreta aos povos e comunidades tradicionais, o órgão gestor das UCs colocava tais grupos em situação de insegurança jurídica e sem o pleno gozo dos usos históricos a que seus antepassados sempre fruíram. Era preciso, portanto, fazer algo para garantir os direitos dos povos e comunidades tradicionais.

O presente artigo visa demonstrar o histórico e os precedentes jurídicos emitidos pela Procuradoria Federal Especializada junto ao ICMBio que permitiram uma solução. A primeira oposição à prática até então vigente ocorreu na análise do termo de compromisso celebrado com os pescadores artesanais e tradicionais de sardinha para disciplinar a atividade no Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, UC de proteção integral. É que se apontava a fragilidade de usar o termo de compromisso, com caráter precário e com usos limitados, sem que houvesse uma resposta estatal definitiva [12].

Em um segundo momento, por ocasião da renovação do Termo de Compromisso nº 120/2011, celebrado entre ICMBio e a Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira (Amocreq/CPT), a PFe/ICMBio foi mais incisiva quanto à fragilidade da forma como o tema estava sendo tratado, uma vez que os povos e comunidades tradicionais (e seus usos ancestrais) deveriam ser tratados, inclusive, no plano de manejo da UC.

Havia já nesse momento uma provocação clara e contundente para que o Estado deixasse de invisibilizar povos e comunidades tradicionais, que tinham direito à identidade e ao território. Afora essa provocação à administração pública, foi determinada a elaboração de um estudo jurídico específico e completo sobre o tema [13].

Como resultado desse estudo, foi emitido o Parecer nº 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU [14] aprovado por meio Despacho n. 00635/2021/Gabinete/PFE-ICMBIO/PGF/AGU. O opinativo jurídico propôs uma releitura da Lei nº 9.985/2000, especialmente nas regras relativas ao artigo 42, passando por um filtro constitucional e convencional e interpretação sistemática em relação ao ordenamento jurídico vigente, no sentido de se considerar a possibilidade de manutenção permanente das populações tradicionais inerentes à diversidade biocultural afeta à UC, que precisam e dependem desse espaço necessário e inamovível para a sua identidade ser afirmada.

A partir dessa verdadeira mudança de paradigma, a PFe sugeriu que a Administração deveria buscar a resolução dos conflitos gerados pela implantação de UCs de proteção integral em territórios tradicionais, considerando algumas possibilidades (1) a reavaliação dos termos de compromisso até então celebrados com populações tradicionais inerentes, sob a lógica da transitoriedade (regime de transição), sem que se frustre a confiança legítima depositada nos atos administrativos já praticados; e (2) a conformação no plano de manejo, em zoneamento específico, da gestão e do manejo dos recursos naturais do espaço territorial em regime de dupla afetação.

Avançando nas discussões internas, a PFe/ICMBio se debruçou sobre a dupla afetação entre quilombos e UCs de proteção integral, dando mais especificidade ainda à tese geral lançada no parecer citado. Esse avanço foi materializado por meio do Parecer nº 00115/2021/COMAF/PFE-ICMBIO/PGF/AGU, que concluiu que a Concessão de Direito Real de Uso – CDRU prevista no artigo 7º do Decreto-lei n. 271/1967, com redação atual conferida pela Lei nº 11.481/2007, possui idêntico conteúdo jurídico do título de propriedade quilombola assegurado pelo artigo 68 do ADCT da Constituição e disciplinado pelo artigo 17 do Decreto nº 4.887/2003, o qual transfere a propriedade indivisível e inegociável do território reconhecido às comunidades remanescentes dos quilombos. Assim, a CDRU configura instrumento jurídico adequado à titulação definitiva dos territórios quilombolas Alto Trombetas 1 e Alto Trombetas 2, reconhecidos e declarados de forma sobreposta à Rebio Rio Trombetas e à Floresta Nacional de Saracá-Taquera, formalizando e disciplinando a dupla afetação dos interesses ambientais e territoriais sobre a área.

Com isso, assegurou-se sua especial proteção em prol do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como dos direitos dos remanescentes quilombolas ao território por eles tradicionalmente utilizados para a garantida da reprodução física, social, econômica e cultural da comunidade.

O parecer também consignou que enquanto não for juridicamente possível materializar a CDRU, por alguma razão objetiva alheia à vontade das comunidades quilombolas ou do ICMBio, a exemplo do imóvel a ser concedido não ter sido ainda formalmente incorporado ao patrimônio da autarquia, é juridicamente possível a celebração de termos de compromisso por prazo indeterminado até que se possa celebrar o CDRU como instrumento definitivo da titulação.

Instrumento arrojado

Nesse cenário de expedientes jurídicos, estava arado o campo no qual o ICMBio poderia, concretamente, implementar a dupla afetação. E tal materialização ocorreu no já mencionado Termo de Compromisso nº 02/2022, entre o ICMBio e a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Alto Trombetas II (ACRQAT). Fica evidente que o meio ambiente natural e o cultural poderiam e deveriam ser tratados de forma integrada e harmônica em tais situações.

Desde a publicação do Snuc não se via um instrumento tão arrojado e capaz de dar concretude à CDB no que se refere à tutela da sociodiversidade como o Termo de Compromisso nº 02/2022. Este instrumento materializou o respeito aos usos diretos históricos das comunidades quilombolas, a exemplo do manejo de quelônios, da caça para subsistência e do respeito aos cultos e locais sagrados dentro da UC.

Os quilombolas que vivem na UC são também os responsáveis por manterem a integridade da diversidade biológica lá existente. Pelo termo firmado, os quilombolas não mais precisarão sair da UC, consagrando um meio efetivo de lhes viabilizar a existência em seus modos centenários. Não se pode esquecer que a Constituição de 1988 inseriu o capítulo sobre o meio ambiente no título dos direitos sociais, de forma que a proteção ecológica não deve se dar à revelia das populações que por tanto tempo habitaram e ajudaram a manter a qualidade ambiental do território.

A expectativa é que tal composição administrativa possa pôr fim a inúmeros processos judiciais e questionamentos administrativos, pacificando um tema tão delicado e sensível, seja na perspectiva da proteção ambiental quanto da efetividade de direitos humanos. Deve nortear, aliás, não apenas a atuação do ICMBio, mas igualmente dos demais entes políticos (estados, Distrito Federal e municípios) nos quais há, igualmente, sobreposição de UCs e povos e comunidades tradicionais.

Daí se considerar que as balizas jurídicas firmadas e prévias à celebração do Termo de Compromisso nº 02/2022 constituem o passo mais ousado dado na efetividade dos direitos e interesses dos povos e comunidades tradicionais dentro das áreas ambientalmente protegidas. Isso significa que esse termo de compromisso de usos múltiplos é um marco jurídico histórico para efetividade de direitos socioambientais, podendo ser firmado com qualquer povo ou comunidade tradicional.

 

 


[1] Os conceitos de conservação da natureza e de preservação encontram-se no art. 2º, II e V, do SNUC, respectivamente.

[2] O art. 10 do Snuc dispõe que a reserva biológica tem como objetivo a preservação integral da biota e demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos naturais.

[3] A discussão foi travada no Processo Administrativo nº 02174.000006/2014-24.

[4] De acordo com o art. 3º, I do Decreto 6.040/2007, povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

[5] O Snuc mconceitua, no art. 2º, VI proteção integral como a manutenção dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais.

[6] ARE 999951 AgR, Relator(a): MARCO AURÉLIO, 1ª Turma, julgado em 01-08-2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-225 DIVULG 02-10-2017 PUBLIC 03-10-2017, que reafirma tese plenária fixada no MS 25.284, relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17-06-2010, DJe-149 DIVULG 12-08-2010 PUBLIC 13-08-2010 EMENT VOL-02410-02 PP-00298.

[7] Art. 42 do Snuc.

[8] A noção de pertença e de território foi muito bem explorada na ADI 3239, relator(a): CEZAR PELUSO, Relator(a) p/ Acórdão: ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 08-02-2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-019 DIVULG 31-01-2019 PUBLIC 01-02-2019

[9] Confirma tal entendimento a tese firmada pelo STF no PET 388, conhecido como Raposa do Sol, no qual se firmou a tese de que seria possível a tripla afetação da área (terra indígena, UC e zona de fronteira)

[10] Ver CAPÍTULO IX DO REASSENTAMENTO DAS POPULAÇÕES TRADICIONAIS no Decreto n. 4.340/2002.

[11] A IN 26/2012/ICMBio traz previsão de prorrogação, mas esta não tem lastro nem no Decreto 4.340/2002, tampouco no SNUC.

[12] A ressalva deu-se pela então chefia da PFe ICMBio por meio do Despacho nº 00676/2020/Gabinete/PFE-ICMBIO/PGF/AGU exarado no processo administrativo de n. 02070.009924/2019-91.

[13] Foi designado o procurador federal Frederico Rios para elaboração de estudo jurídico específico sobre o tema.

[14] O Parecer nº 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU foi um marco porque: a) não havia tese jurídica anterior defendendo que os planos de manejo poderiam servir para acomodar as realidades de populações tradicionais; b) antes do Parecer n. 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU não havia tese jurídica que justificasse a celebração de instrumentos sem prazo com as populações tradicionais; c) o Parecer n. 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU rompeu com a posição da PFe de validar sucessivas prorrogações de TCs por compreender que tal prática violava a lei; d) o Parecern. 00175/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/PGF/AGU foi a (uma das) manifestação pioneira da AGU a exercer o controle de convencionalidade, ou seja, deixar de aplicar lei ou aplicá-la em parte em razão de conflito com convenção subscrita pelo Brasil.

Autores

  • é procurador federal, mestre em Direito pelo IDP e doutorando em Direito pela UnB.

  • é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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