Opinião

Os riscos latentes da concessão irresponsável de crédito consignado por meio do FGTS

Autores

  • Lillian Salgado

    é advogada sócia fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva diretora de Proteção de Dados dos Segurados do INSS do Ieprev membro do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais e conselheira do Fundo Estadual de Direitos Difusos (Fundif).

  • Elen Prates de Souza

    é advogada e diretora executiva do Instituto Defesa Coletiva pós-graduada em Direito do Consumidor e em Direito Processual do Trabalho.

16 de abril de 2024, 15h16

Em 27 de fevereiro, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, manifestou a intenção do governo federal de criar o “consignado do setor privado”. Embora tal normativa ainda não tenha entrado em vigor, estando neste momento em discussão pelo Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o Instituto Defesa Coletiva, o Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor (FNECDC), o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), e os Procons Brasil já expressaram, por meio de nota, o repúdio à intenção da modificação no procedimento de concessão do empréstimo consignado aos trabalhadores e trabalhadoras formais, por meio da integralização das plataformas FGTS digital e E-social.

Nossas preocupações não são apenas jurídicas — em razão da violação à Lei nº 14.181/2021 — mas também, com os impactos potencialmente negativos da medida para a economia brasileira. O endividamento excessivo é uma realidade premente no cenário econômico global e, mais especificamente, no Brasil. Dados do Banco Central evidenciam que a proporção da renda comprometida com dívidas atingiu níveis alarmantes nos últimos anos, indicando uma preocupante vulnerabilidade financeira por parte dos consumidores e consumidoras. Segundo o BC, “a maior parte dos endividados de risco mantém relacionamento com o segmento bancário tradicional, mas as instituições de crédito são as que apresentam, em média, as maiores concentrações de clientes nessa situação em suas carteiras”.

Nesse sentido, a modificação pretendida afronta a Lei nº 14.181 de 2021 (Lei do Superendividamento) que alterou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) inserindo a previsão de garantir a preservação do mínimo existencial, entendido como o conjunto de diretos básicos e essenciais à sobrevivência dos brasileiros e brasileiras, que, infelizmente, sofrem constantes ameaças tanto pelo superendividamento quanto pela diminuição do poder de compra. A medida sugerida pelo governo federal tende a aumentar o risco de endividamento e superendividamento dos brasileiros e brasileiras, haja vista que o crédito fácil pela utilização da plataforma não garantirá a análise do mínimo existencial.

O Mapa [1] da Inadimplência e Negociação de Dívidas no Brasil, produzido pelo Serasa, traz dados que deixam cristalinos os pontos evidenciados neste artigo. Segundo o estudo, só em janeiro de 2024, mais de 72 milhões de brasileiros e brasileiras se encontravam em situação de inadimplência, sendo que em maio de 2021 havia ao menos 60 milhões. O valor total da dívida alcança inacreditáveis R$ 382,8 bilhões de reais, sendo o valor médio de R$ 5.311,96 por pessoa. Em maio de 2021, os valores eram R$ 249,6 bilhões de reais, sendo o valor médio de cada dívida por pessoa de R$ 3.937,98. Para complementar, o setor bancário e as financeiras, somados, representam a maior fatia desse endividamento: 29,37% e 16,76% respectivamente, somando 46,13%.

Riscos

É sabido que existem empresas que possuem acordos com bancos para que seja disponibilizado ao empregado ou empregada o acesso a crédito em condições diferenciadas, permitindo que o desconto seja feito em folha. Essa é uma situação excepcional, pois envolve o empregador na transação, havendo certa camada de segurança. A retirada do intermediário com a implementação do E-consignado certamente aumentará o número de endividados e endividadas conscientes e inconscientes, sem contar o grande risco do aumento de fraudes, já que qualquer empregado ou empregada formal poderá ser surpreendido com empréstimos feitos sem seu consentimento.

Trata-se de uma conclusão lógica, haja vista que a existência do consignado feito pelo INSS [2] jamais impediu que esse tipo de assédio financeiro acontecesse com idosos aposentados [3]. Inclusive, está em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 4.089/2023 [4] que prevê multas aos bancos nesse sentido, uma vez que há fragilidades do sistema de concessão de crédito consignado. Da mesma forma, a insegurança no sistema de concessão do crédito consignado é tão latente que o Instituto Defesa Coletiva ajuizou uma ação civil pública para que o sistema de concessão de empréstimos consignados do INSS [5] fosse alterado, a fim de que todos os benefícios previdenciários permaneçam bloqueados para empréstimo consignado, ficando a cargo do segurado desbloquear seu benefício. Tal medida, sem dúvida é uma alternativa de segurança, mas ainda não se sabe como será a implementação do consignado aos trabalhadores e trabalhadoras formais. Acredita-se que, para atender aos anseios dos grandes players do mercado a concessão do crédito consignado aos trabalhadores formais nascerá na modalidade opt-out [6], onde todos os consumidores estarão aptos a vulnerabilidade do sistema do crédito consignado.

Spacca

Imperioso destacar que, no Brasil, fraudes de consignado acontecem em números assustadores [7]: a cada dez minutos, um brasileiro ou brasileira é vítima do golpe do empréstimo consignado, de acordo com os números divulgados pelo Disque 100, do governo federal. Só nos cinco primeiros meses de 2023 foram mais de 15 mil denúncias de violações financeiras ou materiais contra idosos; 73% a mais do que no mesmo período de 2022 [8]. De acordo com o boletim Sindec e boletim Proconsumidor, publicações da Secretaria Nacional do Consumidor, durante o ano de 2023 o crédito consignado ficou em 2ª lugar nos assuntos mais demandados, com 104.998 reclamações. Os bancos, por sua vez estão em primeiro lugar geral dos assuntos mais demandados [9].

Benefício para quem?

Nesse sentido, o argumento de que a medida do FGTS Digital facilita o crédito ao consumidor ou consumidora, na verdade, somente beneficia as instituições financeiras, que tomam proveito da vulnerabilidade das pessoas e das taxas de juros elevadas. Via de consequência, a retirada do saque do FGTS Aniversário não traz nenhum benefício ao consumidor ou consumidora. Na prática, a implementação do E-consignado acaba substituindo o FGTS Aniversário, o que transforma o recurso em um instrumento que beneficia a instituição financeira em detrimento do trabalhador, desvirtuando o caráter social do FGTS.

O FGTS foi criado, em 1966, para proteger o trabalhador e a trabalhadora demitida sem justa causa, compensando em parte a retirada da estabilidade comum à época. Na realidade, a implementação do E-Consignado representa novo retrocesso, já que há grande risco de uso do recurso de forma imprudente e até mesmo criminosa. Logo, é inconcebível que um recurso criado para proteger o trabalhador formal acabe por prejudicá-lo, gerando novos endividamentos, sendo totalmente sucumbida a sua função social. Essa desvirtualização do FGTS – direito constitucionalmente garantido pelo art. 7º, III, da CR/88 – revela um preocupante caminho tomado pela economia do país, já que os trabalhadores e trabalhadoras, teoricamente, precisam colocar em xeque um recurso tão valioso para suprir as necessidades básicas do dia a dia.

Vale ressaltar ainda, o caráter social do FGTS para financiamento imobiliário. Dados [10] da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário (Abecip) apontam que financiamentos imobiliários feitos com recursos do FGTS cresceram 59% em 2023, atingindo novo recorde, combinados com o programa Minha Casa Minha Vida. Logo, é contraditório e incoerente que o E-Consignado prejudique políticas públicas do próprio governo federal.

É inconcebível que essas operações sejam substituídas por empréstimos consignados, que não possuem nenhuma função social. O Fundo de Garantia tem um lugar de aconchego no imaginário da população brasileira, pois historicamente contribui para a realização de sonhos como a aquisição da casa própria. Destaca-se aqui que o problema não é como o trabalhador ou trabalhadora utilizará o recurso, mas sim as consequências que esta medida trará a médio e longo prazo para toda a sociedade.

Retrocesso

A liberação do consignado no FGTS constitui verdadeiro retrocesso que pode ser comparado aos feudos da era medieval, onde os trabalhadores entregavam parte de sua produção em troca de proteção e segurança. No caso do empréstimo consignado, os trabalhadores e trabalhadoras acessam parte do seu fundo de garantia em troca de recursos financeiros imediatos, comprometendo parte de seu salário futuro. Assim como nos feudos, essa transação pode garantir a satisfação de uma necessidade momentânea, mas certamente também resultará em uma dependência perniciosa com os bancos e em uma perda de autonomia financeira.

É crucial que políticas governamentais busquem o equilíbrio entre o estímulo à economia e a proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores e trabalhadoras, evitando assim o agravamento do superendividamento e seus impactos nocivos à estabilidade econômica do país. Do contrário, a exclusão social será estimulada, o que não coaduna com as políticas de Estado nem de Governo, tampouco com os fundamentos e objetivos da república.

Cabe relembrar, nesse contexto, que todo o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor criticou anteriormente a Medida Provisória nº 1106, de 2022, convertida na Lei nº 14431 de 2022 que almejava a ampliação da margem de crédito consignado aos segurados do RGPS e que autorizava a realização de empréstimos e financiamentos mediante crédito consignado para beneficiários do Benefício de Prestação Continuada. No decorrer dos anos recentes, parece que há incessantes propostas que visam somente aos interesses das instituições financeiras, sob pretexto de serem benéficas aos consumidores. Resta comprovado que não são, pois apenas potencializam o endividamento, enquanto as referidas instituições lucram crescentemente.

Para onde aponta o interesse público? Certamente não tem sido para a defesa dos consumidores e consumidoras, trabalhadores e trabalhadoras. Isso se concretiza em medidas como o E-consignado e a MP nº 1106/22, que refletem a negligência com as demandas mais básicas da população, criando uma verdadeira crise de governança e de representatividade política, autorizando a transferência de recursos dos menos favorecidos em direção aos mais abastados, um resultado totalmente teratológico.

 


[1] https://www.serasa.com.br/limpa-nome-online/blog/mapa-da-inadimplencia-e-renogociacao-de-dividas-no-brasil/

[2] https://veja.abril.com.br/brasil/golpe-do-consignado-e-risco-cada-vez-maior-para-aposentados-pelo-inss

[3]https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=27366#:~:text=Esta%20pr%C3%A1tica%2C%20irregular%2C%20consiste%20em,)%2C%20em%20geral%20pessoas%20idosas.

[4]https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/10/11/multa-para-banco-que-fizer-consignado-sem-autorizacao-do-beneficiario-avanca#:~:text=Multa%20para%20banco%20que%20fizer%20consignado%20sem%20autoriza%C3%A7%C3%A3o%20do%20benefici%C3%A1rio%20avan%C3%A7a,-Compartilhe%20este%20conte%C3%BAdo&text=A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Direitos%20Humanos,ou%20de%20benefici%C3%A1rio%20do%20INSS.

[5] 0802150-02.2022.4.05.8300

[6]a) bloqueio de todos os benefícios previdenciários para contratações de empréstimos consignados, podendo o desbloqueio ser realizado pelo titular do benefício, a qualquer momento, através do aplicativo “Meu INSS” ou através da Central 135 (o que implicará, destarte, uma inversão da sistemática atual, em que os benefícios não têm quaisquer bloqueios para contratações de empréstimos, salvo quando bloqueados pelos seus titulares através do aplicativo), restando mantida, para os benefícios novos, a sistemática prevista no artigo 1º, §§ 1º e 2º, da Instrução Normativa nº 28/2008, do INSS, devendo os desbloqueios, também nestes casos, depois do decurso do prazo de 90 dias ali estabelecido, serem realizados pelo titular do benefício apenas através do aplicativo “Meu INSS” ou através da Central 135;” – Trecho da decisão proferida nos autos da ACP nº 0802150-02.2022.4.05.8300, exarada pela Juíza Joana Carolina Lins Pereira, da 12ª Vara da Seção Judiciária de Pernambuco.

[7]https://www.otempo.com.br/economia/a-cada-10-minutos-um-brasileiro-e-vitima-do-golpe-do-emprestimo-consignado-1.3257654

[8] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/07/03/numero-de-golpes-contra-pessoas-idosas-cresce-mais-de-70percent-em-2023.ghtml

[9] https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/11.03.2024PDFBoletim_ProConsumidor_Sindec_2023_final_compressed1.pdf

[10] https://veja.abril.com.br/economia/com-minha-casa-minha-vida-financiamento-imobiliario-pelo-fgts-cresce-59

Autores

  • é advogada e presidente do Comitê Técnico do Instituto Defesa Coletiva, sócia fundadora do escritório Lillian Salgado Sociedade de Advogados, diretora de Proteção de Dados dos Segurados do INSS do Ieprev, membro do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais e especialista em Ações Coletivas.

  • é advogada e diretora executiva do Instituto Defesa Coletiva, pós-graduada em Direito do Consumidor e em Direito Processual do Trabalho.

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