Reparação histórica

'Aplicação da lista para mulheres em SP é exemplo positivo para tribunais'

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15 de abril de 2024, 15h47

Na semana passada, a primeira mulher a ser alçada ao cargo de desembargadora com base na resolução 525/2023 do Conselho Nacional de Justiça tomou posse no Tribunal de Justiça de São Paulo. A magistrada Maria de Fátima dos Santos Gomes foi promovida por merecimento na segunda instância com base em uma lista exclusivamente para mulheres.

Renata Gil, juíza e conselheira do CNJ

A magistrada Renata Gil, responsável pelo Comitê de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário do Conselho Nacional de Justiça, conversou com a revista eletrônica Consultor Jurídico sobre a aplicação da medida nos tribunais brasileiros e a promoção da desembargadora.

A iniciativa de aprovar a exigência no CNJ nasceu nesse mesmo comitê, na gestão anterior.  O primeiro edital a ser promulgado causou barulho no cenário jurídico paulista. Um grupo de 20 juízes homens argumentou que a medida era desnecessária porque, segundo eles, no TJ-SP nunca houve desigualdade.

Renata Gil acredita que o processo aplicado pelo Tribunal foi um exemplo do cumprimento da resolução, que deve inspirar outros tribunais do país. Para ela, a ascensão de Maria de Fátima gera reparação histórica.

ConJur — Qual é o significado da nomeação da desembargadora Maria de Fátima no Tribunal de Justiça de São Paulo?
Renata Gil — Primeiro, significa o cumprimento da normativa do CNJ. Isso tem uma significância muito grande para o restante dos tribunais do país. A nomeação de Maria de Fátima é uma reparação histórica, porque no passado as mulheres eram impedidas de entrar no tribunal devido ao preconceito estrutural. Elas eram reprovadas, desencorajadas de fazer as provas. Maria de Fátima representa todas essas mulheres que não chegaram e as que precisam chegar na segunda instância. Eu liguei para ela e disse: “Você tem uma responsabilidade gigante. Que você tenha consciência de que você é uma virada histórica no seu tribunal e no Brasil.”

ConJur — A senhora acredita que, como aconteceu em São Paulo, haverá resistência à implementação da resolução do CNJ em outros tribunais?
Renata Gil — São Paulo não é um caso à parte. No Brasil, ainda há um preconceito estrutural com relação à participação das mulheres, não é uma questão localizada. Eu tenho certeza de que essa resistência vai acontecer em outros estados, mas também tenho convicção de que, por São Paulo ser um tribunal muito grande, um tribunal que é espelho para o Brasil, isso vai acabar gerar uma onda positiva para os outros tribunais, que vão entender que, se São Paulo cumpriu a resolução, eles também têm que cumprir.

Conjur — A motivação desses grupos que resistem às políticas de incentivo à participação feminina é não querer mulheres ocupando espaços nos Tribunais? Ou os juízes acreditam que estão sendo injustiçados?
Renata Gil — É um misto de tudo. Quando se tem um preconceito estrutural na sociedade, as pessoas não percebem que elas têm esse tipo de comportamento em muitas situações.

São Paulo tem uma característica especial com relação a todos os outros tribunais de que eles sempre promoveram a antiguidade. A política afirmativa rompe paradigmas. Ela é praticada exatamente porque a sociedade não consegue, sozinha, fazer a virada. Então, para mudar é preciso ajuda de entidades, de decisões judiciais.

Isso tem a ver com a falta de percepção de que a sociedade vive um novo momento. Em São Paulo, eles estavam acostumados a um outro critério. Também é uma mudança de costume para aquela Corte. É tudo muito natural dentro desse processo de aplicação de uma política afirmativa.

Conjur — Falando sobre políticas afirmativas, o protocolo para julgamento na perspectiva de gênero já foi adotado pelos tribunais?
Renata Gil — Ele ainda não está sendo aplicado, precisa ser mais amplamente divulgado para os tribunais. É outra mudança de cultura para a qual o CNJ vai colaborar com os tribunais. É preciso passar a dar maior valor à palavra da vítima de um crime contra mulher quando ele acontece entre quatro paredes.

Toda mudança legislativa depende de um apoio institucional para ser absorvida. O Conselho Nacional de Justiça tem o papel não só de editar a lei, mas de transformá-la em uma política efetiva. Meu trabalho é exatamente o de mostrar o protocolo.

O próprio Conselho Nacional de Justiça aplicou pela primeira vez o protocolo recentemente, logo depois a posse dos novos conselheiros. Ele foi adotado no caso de um juiz que foi julgado por ter agredido a esposa, e o julgamento deu muito valor à palavra da vítima. O juiz foi afastado das suas funções. Foi a primeira vez que esse protocolo, que é mais antigo, foi aplicado no CNJ. Então, é necessário um tempo para que a instituição absorva a nova regra.

Conjur — E o que falta para o protocolo de perspectiva de gênero ser absorvido pelos tribunais?
Renata Gil — Falta conhecimento. O CNJ vai fazer visitas aos tribunais, aos fóruns. Por exemplo, a respeito da resolução sobre o assédio. De 6 a 10 de maio, todos os tribunais do país têm que fazer seminários, têm que discutir assédio internamente, começar a ter contato com a matéria, entender quais são os canais de denúncia. A mesma coisa no protocolo de perspectiva de gênero, o CNJ vai fazer um trabalho de conscientização, dizer quais são as regras, porque às vezes a pessoa vê a aprovação da resolução, mas não sabe o conteúdo. Então, é preciso que haja o trabalho educativo também.

Conjur — Como responsável pelo comitê de incentivo à participação institucional feminina no judiciário, já há outras medidas relacionadas às mulheres em vista para este mandato?
Renata Gil — A primeira medida é que estamos pedindo a todos os tribunais para informarem ao Conselho sobre os editais para promoção de juízas e juízes que serão expedidos. Estamos elaborando formulários para saber como eles estão aplicando a resolução. As respostas vão ser recebidas com visitas in loco, para ouvir os juízes e juízas da localidade, para saber se de alguma forma a regra está sendo burlada, se não há pedido para que as mulheres desistam de concorrer. O grupo que está atuando, e que é coordenado por mim, vai aos tribunais até que tenhamos uma aplicação da nossa resolução sem nenhuma restrição, sem nenhuma barreira, essa é a nossa missão.

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