Opinião

A lide como elemento essencial das ações penais condenatórias

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15 de fevereiro de 2024, 19h17

Para que possamos proceder à incursão aos motivos pelos quais se entende estar sempre presente a lide nas ações penais condenatórias, é necessária uma introdução. Vejamo-la.

Carnelutti, de há muito, afirmou ser a lide uma forma de conflito intersubjetivo de interesses, em que há uma pretensão resistida.

Sempre que houver, de um lado, uma pessoa manifestando sua vontade no sentido de ver seu interesse subordinar outro, de outra pessoa, haverá uma pretensão no plano da relação jurídica material.

Se aquele a quem a pretensão é dirigida opõe resistência, surgirá a lide. São, como se percebe, conceitos de teoria geral do Direito.

Quanto ao tema da lide e apenas para fins de compreensão geral do tema, não há controvérsias de que o inadimplemento de uma norma contratual, por exemplo, se constitui numa forma de resistência à pretensão do sujeito que estava numa posição ativa na relação jurídica material e almejava seu o cumprimento, caracterizando-se, assim, a lide.

De fato, quando os contratantes estipulam a obrigação de um sujeito para satisfazer a pretensão de outro, estão consentindo no sentido de que existe um interesse subordinante (que é justamente a pretensão) e um interesse subordinado (que é a obrigação). Eis aí a relação jurídica material base!

Se o sujeito que tem seu interesse subordinado (que tem, portanto, a obrigação) resiste à satisfação do interesse subordinante (i.e., a pretensão), deixando de cumprir o que foi estipulado, surge, como dito, a lide na relação jurídica substancial.

Cláusula compensatória
Agora imaginemos que nesse mesmo negócio jurídico haja a estipulação de uma cláusula penal compensatória prefixando as perdas e danos em caso de inadimplemento.

Na hipótese, pois, de um dos sujeitos não cumprir com sua obrigação, haverá a possibilidade de incidência e aplicação da citada multa (principalmente se não mais houver utilidade na satisfação da obrigação principal).

Nesse cenário, ou seja, no contrato com a previsão da referida multa compensatória, a lide estará presente independentemente da análise acerca da resistência, ou não, no que diz respeito ao pagamento da multa (ou seja, da obrigação acessória).

Dito de outro modo: se o legitimado ativo deduz em juízo a pretensão de cobrar apenas a multa (que se consubstancia nas perdas e danos), haverá interesse-necessidade da tutela jurisdicional porque a resistência no plano da relação jurídica base existiu no exato momento em que não houve o cumprimento da obrigação principal.

O juízo, nesse caso, não poderia extinguir liminarmente o processo sem resolução do mérito com fundamento na ausência de interesse processual, porque houve inadimplemento. Em outro tom: não poderia o juízo exigir que o autor tentasse, antes da proposição da ação, a satisfação voluntária/extrajudicial da multa — justamente por conta do princípio da inafastabilidade da jurisdição (não podendo o poder judiciário se furtar de apreciar alegação de violação ou ameaça a direito).

O que se quer demonstrar com este exemplo é que o ponto de referência para se concluir pela existência, ou não, da lide, não é eventual resistência ao pagamento da multa, mas sim a resistência ao cumprimento da obrigação principal do referido contrato.

Existência de lide nas ações penais condenatórias
Parece-nos não haver fundamento algum para se deixar de aplicar a mesma lógica às ações penais condenatórias.

E, assim sendo, passamos às razões pelas quais entendemos pela existência de lide em todas as ações penais condenatórias, sem exceção. Melhor ainda: da necessária alegação da existência de uma lide (i.e., da imprescindível narrativa, na peça acusatória, de um fato caracterizador de uma lide — que é, na essência, a resistência a uma pretensão principal).

As ações penais condenatórias são, por essência de sua natureza, repressivas. É dizer: elas serão exercidas sempre que a lesão a um bem jurídico já tiver ocorrido — que, no caso, é a violação a uma norma penal incriminadora (ou, no sentido equivalente, a prática de uma infração penal).

Frise-se, nesse contexto, que toda norma penal incriminadora, que obrigatoriamente terá como fonte a lei em sentido estrito (princípio da reserva legal), contém nela uma obrigação (como, v.g., a de não matar, não furtar, não roubar, de prestar socorro etc.).

Se existe uma obrigação, existe, lado outro, uma pretensão, que é justamente o interesse subordinante do Estado de ver a norma cumprida.

Se formos analisar a norma contida na descrição do preceito primário (i.e., obrigação principal) do artigo 121 do Código Penal, para ficarmos num único exemplo, verificaremos que há ali o dever de não matar alguém e há, também, pois, a pretensão do Estado de que as pessoas não se matem.

É essa a pretensão! A pretensão principal é a de que não haja homicídios. Quando alguém viola a norma e mata outra pessoa, o que fez, com essa conduta, foi justamente resistir à pretensão do Estado, que era titular do interesse subordinante de que não houvesse morte.

Ora, ao inadimplir a norma penal incriminadora, o que fez o sujeito ativo da infração foi constituir a lide, porquanto, como dito, resistiu à pretensão o Estado, lesando o bem jurídico tutelado.

O legitimado ativo (que, nesse caso de homicídio, é, de regra, o Ministério Público) pode postular em juízo a imposição da sanção penal, ainda que a pena pudesse eventualmente ser aplicada sem o processo jurisdicional.

Afinal de contas, o que se analisa para se verificar a existência, ou não, da lide, não é a resistência ao cumprimento da sanção, mas sim a resistência ao cumprimento da norma principal (que, in casu, era a de não matar).

Os debates acerca do tema partem da premissa de que a pretensão do Estado seria a punitiva, ou seja, a pretensão acessória (porque a principal não é a de punir, mas sim aquela que tem relação com a obrigação contida no preceito primário do tipo penal).

E não vislumbramos por que deva ser assim. Não deve ser assim porque, como exposto, existe outra pretensão, anterior à pretensão punitiva, que é o interesse primeiro do Estado, a de que a norma seja cumprida. Tanto existe essa pretensão principal, que não é a punitiva, que pode o Estado fiscalizar o seu cumprimento, exatamente porque é um interesse já declarado subordinante (o que é feito pelos órgãos de segurança pública quando, por exemplo, fazem ronda ostensiva em vias públicas).

Resistência do réu em cumprir a obrigação principal
O que ocorre com as ações penais condenatórias é que, além de sempre existir a lide na relação jurídica material, há um plus, que é justamente o fato de que a sanção imprescinde do processo. Mas isso não deve ser o norte para se avaliar se a relação é litigiosa.

O parâmetro, como se sustentou, deve ser a resistência à satisfação da pretensão principal e não da obrigação acessória (seja ela a multa do contrato ou a sanção da norma penal incriminadora).

Deve-se, com isso, pensamos, abandonar o clássico critério pretensão punitiva vs direito à liberdade para se aferir a existência de lide no processo penal (ora: a resistência foi no plano material, logicamente antes da análise de eventual resistência no terreno processual, portanto).

Insista-se: ainda que não haja resistência alguma do réu quanto à pretensão punitiva, ainda assim haverá necessariamente a alegação de uma lide, uma vez que é essa exatamente a causa de pedir da ação penal — a violação a uma norma penal incriminadora.

Diante disso, não vislumbramos a ocorrência de ações penais condenatórias sem que haja a alegação da parte autora de uma lide, independentemente da análise acerca de eventual aceitação, ou não, do réu em cumprir a pena.

Isso é irrelevante para a questão. Se o fato narrado na denúncia (e/ou na queixa-crime) deve ser, necessariamente, a violação a uma norma penal incriminadora, então o que houve, na relação jurídica material, foi a resistência do réu em cumprir a obrigação principal (de não matar, por exemplo) — daí a lide!

É, pois, da essência das ações penais condenatórias a existência da alegação de uma lide.

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