Opinião

Equívocos do legislador civil em relação à prescrição

Autor

  • Marcos Bernardes de Mello

    é professor emérito da Ufal PhD pela PUC-SP MSc. pela FD do Recife (UFPE) professor voluntário na graduação e no mestrado de Direito da Ufal membro da AAL e do IHGAL e autor da trilogia "Teoria do fato jurídico: planos da existência validade e eficácia".

11 de abril de 2024, 19h32

1) Os equívocos dos legisladores nacionais em matéria de prescrição.

(i) O Código de 2016.

O Legislador Civil de 1916 foi parcimonioso em relação à prescrição. Não cometeu o equívoco de pretender defini-la. Limitou-se, embora sem precisão de linguagem, a regulamentá-la.

(ii) O Código de 2002.

O Legislador Civil de 2002 foi afoito. Começou por defini-la, esquecendo que os romanos, com sua secular prudência, já advertiam que omnia definitio periculosa est, lembrando que, se é complexo o objeto, a definição dificilmente abrangerá todos seus possíveis aspectos. Mas, querendo “fazer ciência”, incluiu no texto do Código Civil de 2002 o dispositivo a seguir transcrito:

“Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts.205 e 206.”

Esse enunciado, porém, contém dois graves equívocos ao afirmar que (a) a pretensão nasce da violação do direito e (b) que a prescrição tem o efeito de extingui-la [1]. Por quê?

Conforme mostramos em Teoria do fato jurídico, plano da eficácia, §49.1, 23ª edição, São Paulo, Saraiva jur, 2022, e Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, § 37, fundado nas lições de Pontes de Miranda consubstanciadas nos seis primeiros tomos de seu notável Tratado de Direito Privado (passim), o conteúdo eficacial da relação jurídica, abstratamente, se compõe, em regra, uma vez que há exceções [2], de direitos⮂deveres, pretensões⮂obrigações, ações⮂situações de acionado, exceções⮂situações de exceptuado [3], que assim se desenvolve:

(a.a) O direito, por constituir tão somente uma autorização do sistema jurídico para que seu titular exerça os poderes e faculdades que integram seu conteúdo[4], não tem, em si mesmo, exigibilidade. Por isso é que o dever, que constitui seu correlato eficacial passivo na relação jurídica, é também inexigível. A doutrina germânica ressalta bem a diferença entre dívida e obrigação, donde ensinar Paulo Lôbo que não se pode confundir dívida (dever) com obrigação, porque a primeira antecede e gera a segunda [5].

Direito e dever, portanto, existem in potentia, de modo que não têm exigibilidade.

(a.b) Quando o direito se torna exigível (=pode ser exigido seu cumprimento pelo devedor), não é mais somente direito uma vez que se reveste da pretensão, categoria eficacial que constitui a fase do desenvolvimento do fenômeno da eficácia jurídica em que o direito se torna exigível, transformando-se em obrigação o dever que lhe é correlato. A partir desse momento não há apenas o direito, nem somente o correlato dever, mas pretensão e a correspectiva obrigação.

(a.c) Se, portanto, a obrigação não é adimplida no tempo, na forma e no local, conforme avençados, a pretensão é violada (= não é atendida), nascendo em favor do seu titular a ação, que se caracteriza por tornar impositiva a pretensão. A ação corresponde, assim, à fase de violação da pretensão que a torna impositiva.

A possibilidade de imposição da pretensão pela atividade do seu titular na busca de sua satisfação é que caracteriza a ação, de modo que, como é evidente, constitui um grau maior da pretensão, embora não seja a própria pretensão. A prova disto está em que há pretensões sem ação, como direitos sem pretensão e ação (=direitos mutilados), sendo certo, porém, que a ausência de ação implica haver pretensão que não pode ser imposta.

A exigibilidade existe, porém sem impositividade. É como se a pretensão fosse composta de duas partes – exigibilidade + atuação – e perdesse uma delas – a atuação [6]. As chamadas dívidas de jogo são exemplos de direito subjetivo e pretensão sem ação.  Pode-se pedir o pagamento, mas, não se pode impô-lo.

Spacca

A ação, portanto, é atribuição de impositividade à pretensão, segundo dispuser a norma jurídica, que tanto pode ser exercida através da atuação pessoal do seu titular (exercício extrajudicial da ação), como forçadamente, inclusive pela expropriação de bens do devedor, o que somente é possível por meio de remédios jurídicos processuais (= “ação” processual).

(a.d) A evidência do equívoco do Legislador, sob esse aspecto, resulta ainda da norma do próprio Código Civil a seguir transcrita, que emprega corretamente o vocábulo ação, conflitando com a incorreção do art. 189:

“Art. 200. Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado em juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva.”  

(b) Acrescente-se, finalmente, que o outro equívoco consistente na afirmativa de que a prescrição extingue a pretensão se funda em duas razões inquestionáveis:

(b.i) a primeira, seu inconteste conflito com a norma do artigo 882 do próprio Código que dispõe, textualmente:

“Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível.”

A irrepetibilidade do pagamento de dívida prescrita, tenha ou não o pagador ciência da prescrição, deixa claro que o adimplemento foi bom, precisamente porque o credor tinha direito de receber o que lhe era devido (=prestação); apenas não o podia exigir ou impor.

Na realidade, nem a pretensão, nem a ação, se extinguem pela prescrição que, apenas, têm encoberta suas eficácias, retornando o direito a ser inexigível, apesar de continuar a existir. Parece evidente, entretanto, que a pretensão (como o direito), apesar de não puder ser exercida, também permanece viva, conforme se pode concluir dessa irrepetibilidade da prestação prescrita.

Por outro lado, se considerarmos que o adimplemento da prestação constitui o cumprimento da obrigação (não do dever), forçoso é reconhecer que essa obrigação também continua a existir encoberta, como a pretensão.

(b.ii) a segunda, leva em consideração a circunstância de que a prescrição é renunciável, mas, somente depois de consumada (Código Civil, artigo 191), sendo certo que a renúncia restaura toda a eficácia que foi por ela encoberta. Ora, se a prescrição extinguisse a eficácia do fato jurídico, como seriam restaurados os efeitos prescritos, se não mais existiriam?

Essa disposição do artigo 189, em face de sua inconsistência em razão de seu conflito com a realidade, não pode prevalecer, devendo ser considerada não escrita.

(iii) A proposta da comissão revisora

A ilustre comissão de brilhantes juristas nomeada pelo senhor presidente do Senado para rever o Código — que apenas completou 20 anos de existência [7] — para corrigir a aberração jurídica do atual artigo 189, propôs a seguinte redação:

“Art.189. A pretensão se extingue pela prescrição nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”

Essa proposta, embora melhore sensivelmente o texto do Código, volta a cometer o equívoco de afirmar a extinção da pretensão pela prescrição e comete outro que consiste na omissão da referência à prescrição da ação que constitui, sem dúvida, o objeto litigioso do processo civil, conforme mostramos em artigo intitulado “Da ação como objeto litigioso no processo civil”, in As reformas do Código de Processo Civil e a Teoria Quinária: homenagem a Pontes de Miranda nos 30 anos de seu falecimento,  coordenado por Eduardo J. da Fonseca Costa, L.E. Ribeiro Mourão e Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, Salvador, Juspodium, 2010.

Ao que parece, ao elaborarem esse enunciado, não lembraram, os ilustres autores da sugestão, de que a pretensão não é imponível por si só, mas é necessário que esteja revestida pela ação de direito material.

Como regra geral, desde que o Estado instituiu para si o monopólio da distribuição da justiça aboliu, quase completamente, o emprego da justiça de mão própria (autotutela dos direitos), vedando ao particular o poder, que antes tinha, de imposição forçada da ação por qualquer meio, em especial pela expropriação de bens do devedor para satisfação do seu crédito, como também nos casos de substituir-se ao devedor nas hipóteses de recusa em adimplir obrigação de fazer ou não fazer, e.g.

Em contrapartida, o Estado assumiu o dever de resolver os conflitos que se estabelecerem entre os súditos, realizando o direito objetivo incidente (fim imediato) e, buscando a pacificação social (fim mediato), outorgou às pessoas o direito de invocar a jurisdição estatal sempre que necessário para satisfação de seu direito violado.

Sem ação não há impositividade do direito, nem, portanto, possibilidade de exercício do direito quando há inadimplemento renitente, mesmo que haja exigibilidade (=pretensão). A só pretensão sem a ação de direito material não permite o exercício da pretensão à tutela jurisdicional. Como, então, não prescrever a ação?

Acrescente-se que há hipóteses, como a existência de pacto de non petendo, em que, embora vencida a obrigação, mesmo havendo pretensão, essa não pode ser imposta pela ausência de ação. Diante disso, se a pretensão não está reforçada pela ação, não tem como ser exercida.

Quando ainda desenvolvia suas atividades, remeti à ilustre Comissão sugestões para a reforma do Código, propondo para esse artigo 189 a seguinte redação:

“Art.189. Violada a pretensão, nasce para o titular a ação,   as quais perdem sua exigibilidade pela prescrição nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”

Ao que parece, não foi aceita.

 

* O artigo faz parte da iniciativa Observatório da Reforma do Código Civil, do Instituto do Direito Privado (IDiP). Para sugestões de temas e autores, escrevam para os diretores Elena Gomes ([email protected]), Fabio Martins ([email protected]) e Julio Neves ([email protected]).

 


[1] Alguns autores (veja-se, por exemplo, Martins Filho, Ives Gandra e Silva, Chistine Oliveira Peter da, Prescrição e decadência, in O novo código Civil: homenagem ao Prof. Miguel Reale, Coord. Franciulli Netto, Domingos, Mendes, Gilmar Ferreira, e Martins Filho, Ives Gandra, 2ª Ed., p.165, São Paulo, LTr, 2005) têm sustentado que a disposição do art. 189 do Código Civil teria criado um novo conceito de prescrição, modificando aquele cristalizado pela ciência. Tal atitude resulta da concepção do positivismo de que a ciência se deve moldar à lei, e não o contrário, o que apenas é relativamente verdadeira.

Neste caso, como se demonstrou, a lei foi formulada tecnicamente equivocada, contrariando a razão e a lógica, de modo que não pode prevalecer, por ser inconsistente. Aliás, tudo leva à crer que houve um equívoco, talvez por falta de avaliação de todas as implicações sobre a verdade fáctica, convicção essa que se consolida diante do conteúdo do art. 200, adiante literalmente referido, que emprega corretamente o vocábulo ação.

[2] Os denominados direitos mutilados, que são desprovidos de pretensão e ou ação.

[3] Mello, Marcos Bernardes de, Teoria do fato jurídico, plano da existência, §49.1, 23ª ed., e Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, 12ª ed., São Paulo, Saraivajur, 2022, respectivamente.

[4] Além dessas categorias que são reconhecidas pela melhor doutrina, existem no conteúdo dos direitos há deveres e nos deveres direitos, que, por integrarem, materialmente, essas espécies a liberdade de denominar deveres ínsitos nos direitos e direitos ínsitos nos deveres. Vide, A dupla face dos e dos deveres: uma revisão conceitual, in Direito civil: futuros possíveis, Coor. Marcos Ehrhardt Junior, Belo Horizonte, Forum, 2022.

[5] Direito civil: obrigações, 2.3., 10ª ed., São Paulo, Saraiva, 2021.

[6]  Segundo Pontes de Miranda “De ordinário, a pretensão contém a ação, que é exigência + atividade para satisfação.” Tratado de Direito Privado, t. V, p. 460, e Tratado das Ações, t. I, p. 47.

[7] Nunca fiz segredo sobre minha opinião negativa sobre o Código em vigor. Sua qualidade nunca fez justiça à cultura jurídica nacional, apesar de participarem de sua elaboração juristas de grande quilate. Além disso, para sua aprovação final a Câmara Federal cometeu a inconstitucionalidade formal de modificar o processo legislativo com a adoção da Resolução nº 1/2000. Essa inconstitucionalidade foi reconhecida pela maioria dos membros do Pleno do Conselho Federal da OAB, decidindo proposta por mim formulada, que decidiu por formular representação ao STF, decisão que nunca foi cumprida pela Diretoria.

Autores

  • é professor emérito da Ufal, PhD em Direito do Estado (PUC/SP), MSc em Direito Público (UFPE), professor (coluntário) de conceitos jurídicos fundamentais no curso de Mestrado da FDA (Ufal) e professor (voluntário) de Teoria Geral do Direito Civil na FDA (Ufal).

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