Tribunal do Júri

Juiz de garantias: a manutenção do sistema inquisitorial (parte 2)

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

9 de setembro de 2023, 8h00

Na semana passada publicamos a primeira parte do artigo "Juiz de garantias: a manutenção do sistema inquisitorial no Júri", em que opinamos sobre como o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, desvirtuou uma das principais e mais importantes inovações legislativas no caminho de um sistema verdadeiramente acusatório: o juiz de garantias.

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Contudo, faz-se importante analisar a ata de julgamento (uma vez que os votos de cada um dos ministros ainda não foram publicados), para entender mais a fundo a decisão, bem como as consequências para o tribunal do júri.

Primeiramente, as obviedades precisam ser ditas. Não há qualquer fundamento teórico e prático pra afastar o juiz de garantias do procedimento do júri. Constituiu uma escolha legítima do Congresso, que previu expressamente no artigo 3º- C que "a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código".

Para além de uma opção legislativa, a aplicação no julgamento dos crimes de competência do tribunal do júri fazia sentido a partir da interpretação da própria Constituição [1]. O júri é, por si só, uma garantia constitucional do artigo 5º. Ora, ao ser reconhecido como um direito fundamental, seu procedimento se reveste de uma cautela adicional, justamente para evitar que o julgamento popular transcorra de maneira injusta e parcial. Já discutimos diversas vezes como a balança pende para a acusação [2] e, por isso, há necessidade do desenvolvimento de instrumentos de equilíbrio para a defesa.

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O juiz de garantias, principalmente, ao evitar que os elementos do inquérito policial (apenas dos elementos não repetíveis, frise-se), não fossem encaminhados para o juiz da admissibilidade e, principalmente, para os jurados, faria com que as decisões do Conselho de Sentença fossem tomadas com base em provas juridicamente válidas, assegurando a originalidade cognitiva. Em suma, um julgamento de maior qualidade e legitimidade.

Consta na ata de julgamento, mais precisamente no item 10, que os ministros, por unanimidade, atribuíram "interpretação conforme à primeira parte do caput do art. 3º-C do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, para esclarecer que as normas relativas ao juiz das garantias não se aplicam às seguintes situações: a) processos de competência originária dos tribunais, os quais são regidos pela Lei nº 8.038/1990; b) processos de competência do tribunal do júri; c) casos de violência doméstica e familiar; e d) infrações penais de menor potencial ofensivo".

Como já ressaltado, não há qualquer fundamento constitucional para excluir o procedimento do júri (ou mesmo os processos de competência originária dos tribunais e os casos de violência domésticas e familiar) da implementação do juiz de garantias. Por qual razão houve a exclusão? Pessoas acusadas deste crime não merecem que o devido processo legal seja respeitado? Por que um pré-julgamento baseado em uma hipótese acusatória? A presunção de inocência deve ser afastada quando o Estado-acusação escolhe por denunciar por certos crimes?

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O legislador previu a opção pelo sistema acusatório e o juiz de garantias no Livro I (do processo em geral), no Título I (disposições preliminares), justamente como forma de estipular que as modificações devem ser aplicadas para todos os procedimentos. Como dito, não há interpretação conforme para esclarecer exclusões não previstas, seja com base na natureza do crime, seja com base na competência ou em haver procedimentos especiais.

Sabemos que o juiz de garantias não seria a panaceia para proteção contra um sistema inquisitorial. Mas é um dos passos para que, finalmente, o Brasil deixe de ostentar o infeliz título de "único país inquisitorial das Américas". Entretanto, urge um câmbio de mentalidade de todos os envolvidos com o processo penal (juristas, magistrados, promotores, defensores, advogados, delegados, estudantes).

Foram poucos os ministros que citaram o júri no decorrer do julgamento. O ministro Dias Toffoli, afirmou que as regras do juiz das garantias não se aplicam aos processos de competência do Tribunal do Júri, em que o julgamento coletivo, como ocorre nos tribunais, funciona como fator de reforço da imparcialidade. Com o devido respeito, esse reforço da imparcialidade por ser um julgamento coletivo, poderia ser um argumento válido caso a tomada de decisão fosse deliberativa. É uma ideia que já defendemos em algumas oportunidades [3], para que os veredictos tivessem maior qualidade, teriam que ser ponderados em um ambiente democrático e participativo. No entanto, atualmente, a tomada de decisão no júri é feita a partir de votos individuais e sem fundamentação, o que, por certo, exclui o fundamento de coletividade ou mesmo de reforço de imparcialidade.

Os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia, mencionaram o Tribunal do Júri apenas para excluir o procedimento da esfera de proteção do juiz de garantias.

Entretanto, o ministro Cristiano Zanin, por sua vez, explicitou que "para os processos afetos ao Tribunal do Júri, à Justiça Eleitoral, casos de violência contra a mulher e, ainda, na Justiça Militar, a lei não fez qualquer distinção, a não ser prevendo expressamente que o juiz de garantias incidiria em todas as infrações penais e também nos juizados. Então, onde não há, a meu ver, uma distinção na lei, eu entendo que não poderíamos, com máximo respeito, fazê-lo aqui neste julgamento".

De maneira certeira, o ministro Nunes Marques complementou: "Quanto ao Tribunal do Júri, foi aventado também como um dos órgãos jurisdicionais que não deve ser precedido pelo juiz de garantias. Com a devida vênia, eu entendo que não há razão para essa exclusão. No ponto, acompanho o iminente Min. Cristiano Zanin, no sentido de que embora seja certo que a matéria de fato no júri fica a cargo do Conselho de Sentença, e não do juiz togado, a verdade é que o juiz da pronúncia estará sujeito às mesmas influências psicológicas decorrentes do viés de confirmação que o legislador quis evitar, caso participe de toda a fase investigatória. Acresce que aos crimes dolosos contra a vida, são cominadas as penas mais altas do ordenamento jurídico, seria paradoxal, penso eu, que nos processos por crimes com penas menores, houvesse mais garantias para o réu do que em processos por crimes maiores. Outro ponto importante, também, a se observar, é que os crimes contra a vida normalmente vêm intrincados com crimes conexos, por exemplo, o porte ilegal de arma, o tráfico de drogas, entre outros. Isso, na prática, pode gerar conflitos de competência entre juízes de garantia e juízes de varas privativas do júri, com prejuízo para a apuração dos crimes. Por fim, observo que o crime de latrocínio, durante a investigação, é confundido com os crimes contra a vida, e vice-versa, conforme esta Corte firmou na Súmula 603, que cabe ao juiz singular julgar o latrocínio, isso também poderia ser uma fonte permanente de conflito de competência com danos para a persecução penal. Por essas razões, ao meu juízo, os crimes de competência do Tribunal do Júri devem estar sob a jurisdição do juizado de garantias, isso tornará mais simples a compreensão desses juizados".

De qualquer modo, na ata de julgamento da sessão, infelizmente, constou o afastamento do juiz de garantias por unanimidade.

Assim como ocorreu em diversos momentos históricos, esperamos que essa decisão seja revista, não apenas em respeito ao devido processo legislativo, mas, principalmente, em homenagem aos direitos fundamentais que exigem que os acusados sejam julgados por órgãos imparciais e com base na prova judicializada.

Por último, lembramos que "o Estado Democrático de Direito exige que o tribunal do júri seja compreendido a partir de um sistema acusatório ou adversarial, em respeito absoluto e intransigente aos direitos constitucionais fundamentais e convencionais" [4]. O juiz de garantias era um importante elemento neste sentido.

 


[1] Recomendamos a leitura do artigo: "MAYA, André Machado. A importância do juiz de garantias para o Tribunal do Júri no Brasil. In Estudos em Homenagem aos 200 anos do Tribunal do Júri no Brasil. Rodrigo Faucz e Daniel Avelar (Org.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022."

[2] SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: Incompatibilidade com o Sistema Acusatório. In Desafiando a Inquisição: Ideias e Propostas para a Reforma Processual Penal no Brasil. CEJA: Santiago, 2017. pp. 237-250. Obra disponível em: https://bit.ly/3evcInw.

[4] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz. "O Tribunal do Júri na Constituição". In Direito Constitucional Brasileiro: Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Coord. Clemerson Merlis Clève. Coordenacao. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 598.

Autores

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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