Interesse Público

Experimentação nas parceiras sociais: 25 anos da Lei das OSs

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

26 de outubro de 2023, 9h19

2023 assinala os 25 anos da edição da Lei nº 9.637, de 15/5/1998, conhecida como Lei das Organizações Sociais: modelo inovador de execução indireta de políticas públicas sociais pelo Estado, assentado em credenciamento de entidades sem fins lucrativos segundo figurino previamente definido em lei e posterior (e eventual) celebração de contratos de gestão (espécie de convênio) para gestão de serviços sociais não exclusivos (igualmente designados "serviços públicos sociais" ou "serviços de relevância pública"). 

Entretanto, no Brasil, a data de vigência das leis pode ser enganosa. As normas contidas na Lei 9.637 divulgadas no Diário Oficial da União em 18 de maio de 1998, produziram efeitos desde 9 de outubro de 1997. É desta data a edição da Medida Provisória nº 1591, posteriormente substituída pela Medida Provisória 1.648-6, de 24 de março de 1998, reeditada até ser convertida na Lei Federal nº 9.637/1998. Este fato explica porque diversas leis estaduais e municipais sobre a qualificação de entidades privadas sem fins lucrativos como organizações sociais, muitas vezes tendo o modelo federal como direta inspiração, foram publicadas antes da promulgação da Lei nº 9.637. O modelo das Organizações Sociais completou neste mês de outubro 26 anos.

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Essa dissonância temporal explica também como, sem qualquer vocação para a vidência, proferi palestra e apresentei texto escrito sobre as organizações sociais e as normas da futura Lei Federal 9.637 durante o 2º Congresso Iberoamericano sobre a Reforma do Estado e da Administração Pública, promovido pelo CLAD, na Isla de Margarita (Venezuela), no período de 15 a 18 de outubro de 1997. Este foi o primeiro texto jurídico acadêmico escrito e publicado no Brasil sobre o tema.

O artigo antevia as resistências da doutrina tradicional do direito administrativo brasileiro ao modelo de qualificação das organizações sociais, tendo assumido desde logo um título provocativo: "Reforma Administrativa e Marco Legal das Organizações Sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das Organizações Sociais"[[1]]

Por óbvio, o artigo não foi uma reflexão precipitada divulgada seis dias após a edição da MP 1.591. Na qualidade de consultor jurídico do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado à época, e como um dos responsáveis pela formatação inicial do texto legal, apresentei um esboço preliminar do artigo em uma reunião de trabalho com a assessoria jurídica da Casa Civil da Presidência da República em 1/2/1996. Os "juristas em dúvida", referidos no título, foram inicialmente aqueles que se encontravam na própria intimidade do governo.

A resistência inicial a esse modelo facultativo de realização de parcerias sociais assumia frequentemente conotação política e emocional. Não parecia suficiente para muitos tornar mais rigorosa a certificação das entidades privadas e estruturar as parcerias, adotando nas relações de fomento cautelas ausentes em títulos jurídicos anteriores de creditação de entidades beneficentes, designadamente o título de utilidade pública.

Para muitos a execução direta pelo Poder Público de prestações sociais seria a única modalidade possível de atuação legítima do Estado, pois qualquer outro formato (v.g., execução indireta por particulares ou transferência de recursos aos usuários para aquisição de serviços) constituiria demissão dos deveres impostos ao Estado de atendimento dos deveres constitucionais de garantia de bens sociais.

A Constituição teria adotado um modelo específico de Estado intervencionista na ordem social impermeável ao legislador ordinário, irreformável no plano constitucional e definitivo em termos políticos. Nenhum órgão ou entidade pública de prestação social poderia ser extinto e seus serviços absorvidos e atendidos por organização social ou outro modo de prestação indireta. Na melhor das hipóteses, a prestação de serviços sociais em formato de parceria pelo Estado com as organizações sociais somente seria legítima em caráter excepcional ou subsidiário. A nova qualificação de organizações sociais para esses autores explicitava um grande plano de desmonte do Estado Social no Brasil.

Com o amadurecimento do debate e ampliação do uso do modelo, sobretudo na área de saúde e de cultura, tendo como resultado o aumento da transparência de resultados e custos, a melhoria da eficiência dos serviços, a identificação das diversas formas de controle presentes na Lei, a exploração dos condicionamentos procedimentais, orgânicos e materiais nela previstos, e a adoção generalizada do modelo por gestores dos mais variados partidos políticos, a resistência inicial foi sendo vencida.

O epílogo desta fase ocorreu com o julgamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923/DF, de relatoria original do ministro Ilmar Galvão, sucedido pelo ministro Ayres Britto e com redação do acórdão pelo ministro Luiz Fux, cuja conclusão data de 16/4/2015, após 16 anos de tramitação da ação direta.

O profundo e detalhado voto-condutor do ministro Luiz Fux não deixou dúvidas sobre a compatibilidade do modelo de parceria das organizações sociais com a Constituição.

A decisão proclamou a constitucionalidade integral da Lei 9637/98, empregando o instituto da interpretação conforme em seis tópicos "para fins pedagógicos" e para fixar a compreensão da indispensabilidade da adoção de procedimentos impessoais, objetivos e públicos: na (1) qualificação das entidades como organizações sociais; (2) na celebração do contrato de gestão; (3) na hipótese de dispensa de licitação para contratações de serviços prevista no artigo 24, XXIV, da Lei 8.666/93 e na outorga da permissão de uso de bem público; (4) na contratação de bens e serviços pelas entidades privadas com terceiros, com recursos públicos, (5) na seleção de pessoal pelas entidades qualificadas, e para (6) afastar qualquer interpretação que restrinja o exercício do controle externo pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas da União da aplicação de verbas públicas.

A adoção da interpretação conforme nestes seis aspectos destacados importava na prática na proclamação da procedência parcial da ação direta de inconstitucionalidade, embora norma alguma da lei tenha sido invalidada ou proclamada inconstitucional.

A análise detalhada dessa relevantíssima decisão realizei em dois estudos acadêmicos publicados no livro "Organizações Sociais após a decisão do STF na ADI nº 1.923/2015", livro escrito em coautoria com o próprio ministro Luiz Fux e Huberto Falcão Martins (Belo Horizonte, Ed. Fórum, 2017, 277p)

Hoje assisto com contentamento que entre os 40 melhores hospitais do país que possuem atendimento 100% financiado pelo SUS e Acreditação de nível 3 (excelência) emitido pela ONA (Organização Nacional de Acreditação) ou com certificação de qualidade plena internacional um número significativo é administrado segundo o modelo da Organizações Sociais.

Esse ranqueamento, segundo divulgado pelos organizadores, considerou entre os critérios a avaliação dos usuários disponíveis no Google Business, o tempo de certificação de cada instituição e o cálculo de eficiência (produção hospitalar em relação aos recursos financeiros empregados), este último medido em parceria com a Escola de Economia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Participou da formulação da ordem de classificação o Ibross, Opas/OMS, IES e ONA, com a colaboração da professora e pesquisadora Mariana Carreira, da FGV-Saúde, estando disponível para consulta desde 2022.[[2]]

Este mês de outubro marca também a volta do debate público sobre as medidas de aperfeiçoamento e fortalecimento do modelo das organizações sociais. Dois seminários importantes serão realizados: o primeiro, promovido pela FGV-Eaesp, nos dias 30 de outubro e 1 de novembro, em São Paulo, reunirá estudiosos do tema no auditório da FGV e fará uma homenagem ao professor Bresser Pereira, ex-ministro de Estado da Administração e Reforma do Estado e idealizador maior do modelo das Organizações Sociais;[[3]] o segundo, em Brasília, na sede do TCU, com a participação do Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde), do IRB (Instituto Rui Barbosa) e do Ibross (Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde), concentrará debates nos dias 7 e 8 de novembro sobre o tema o "Chamamento Público e Qualificação das OSS para o Fortalecimento do SUS".[[4]]

Participarei do primeiro evento com diversas sugestões de aperfeiçoamento do modelo, que deve permitir a experimentação e adequação a situações peculiares, com as devidas cautelas, porém também considerando as flexibilidades necessárias e a evolução da jurisprudência dos tribunais superiores.

A diferença marcante do modelo das organizações sociais para modelos anteriores de fomento a entidades do terceiro setor foi o grau de parametrização do fomento (muito mais detalhado quanto aos resultados a serem obtidos e as formas de sua apuração no modelo das OS’s) e a amplitude das exigências quanto à composição e divisão de competências dos órgãos internos da entidade fomentada (muito mais exigente), estabelecendo um sistema de governança interna inédito, como pré-condição para o deferimento do título, cujo objetivo é estruturar adequadamente as parcerias a serem firmadas e permitir o preciso controle do uso de recursos públicos. Fomento social é atividade estatal legítima, cujos resultados atendem ao interesse público quando programada de forma consistente em termos processuais, normativos, materiais e orgânicos.[[5]]

No passado, o fomento social era dominado pelas ideias de unilateralidade e liberalidade do Poder Público. As contrapartidas devidas pelas entidades fomentadas eram inespecíficas, caracterizando o incentivo público verdadeira doação pública ou favor oficial, quase sempre sem controle posterior detalhado da aplicação efetiva dos recursos concedidos. E os vínculos de parcerias considerados acordos precários, sem consistência para criar autênticas obrigações recíprocas. Porém, nos últimos vinte e seis anos, por toda parte, as relações de fomento e as parcerias sociais passaram a ser cada vez mais parametrizadas, especificar prazos, indicadores de desempenho, metas a cumprir, custos a respeitar, procedimentos decisórios a atender, exigindo-se detalhadas e cada vem mais abrangentes prestações de contas do particular pelo bom uso dos recursos públicos transferidos ou das vantagens tributárias concedidas.

O fomento passou a exigir vínculos bilaterais ou multilaterais consistentes (contratos de gestão, termos de parceria, convênios mais específicos) e controle de resultados auditado pela administração ou por terceiros independentes. São testemunhas da segunda etapa deste processo de relacionamento as leis criadoras dos títulos de organização social (no plano federal, Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1998) e de organização da sociedade civil de interesse público (Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999).

Aos poucos o fomento e as parcerias público-sociais passaram a colocar em evidência uma nova ordem de complexos desafios: o aperfeiçoamento dos indicadores de qualidade dos serviços oferecidos, a métrica adequada para avaliar soluções exclusivamente locais, o desenvolvimento de indicadores de avaliação do grau de retorno do investimento financeiro em projeto sociais (Social Return on InvestmentSROI), a sustentabilidade de parcerias em períodos de escassez de recursos, o planejamento da sucessão em parcerias de longo prazo, as formas de controle e participação das comunidades beneficiadas na definição do modo e da extensão das prestações, a definição das melhores práticas de governança para o funcionamento dos conselhos e diretorias de associações e fundações, a gestão de riscos nos projetos, a atuação de "empresas sociais" no mercado, adoção de metodologias de "balanced scorecard" para organizações não lucrativas, problemas de fusão de entidades e articulação de projetos em rede e, na base de tudo isso, o grau de aplicação do direito público a pessoas privadas sem fins lucrativos exercentes de atividades de relevância pública (conceito que insistentemente emprego há 20 anos, calçado em duas expressas disposições constitucionais, v.g. artigo 197 e 129, II, da CF).

A celebração das parcerias sociais cada vez mais abrangentes, além de exigir a observância rigorosa do princípio da igualdade e da impessoalidade no fomento, também alçou ao primeiro plano problemas relacionados ao fim das parcerias, a desmobilização de estruturas envolvidas com serviços vitais para a realização de direitos fundamentais, aspectos relacionados à continuidade dos serviços, a afetação das comunidades envolvidas e eventuais situações de assimetria de informação entre as partes no vínculo.

Não é incomum que a Administração Pública ora figure como agente que instabiliza vínculos de parceria (ao promover atrasos no repasses de recursos ao parceiro privado, ao exercer controles abusivos, ao impor exigências burocráticas não acordadas previamente, entre outras práticas) ora figure como refém de vínculos de parcerias firmados (porquanto incapacitada para dar continuidade, por si ou por outra entidade privada acreditada, aos serviços essenciais realizados depois de longo tempo por entidade privada parceira).

As parcerias são relações jurídicas administrativas multipolares, que envolvem e afetam uma multiplicidade de atores diretamente (Administração Pública, usuários, organizações em rede e fornecedores, entre outros). Esses agentes devem partilhar controles e responsabilidades. A dinâmica das relações de colaboração no setor social, portanto, deve ocupar cada vez mais a centralidade na pesquisa das formas de prestação de serviços sociais e menos o estudo — até aqui predominante — da caracterização das estruturas orgânicas do terceiro setor diretamente envolvidas nas parcerias público-sociais, como sobressai na Lei 13.019/2014, alterada pela Lei 13.204/2015.[[6]]

Não valorizar as parcerias sociais, cuja evolução nos últimos anos é patente, sob as vestes de qualquer espécie de ideologia de direita ou de esquerda, é desperdiçar energias sociais ativas da cidadania e inviabilizar projetos equitativos de atendimento aos mais carentes. É momento de ir além, consolidar e desenvolver as potencialidades da densa jurisprudência formada nos últimos 26 anos sobre o título das organizações sociais, continuar a tarefa de coibir o mau uso do modelo e aperfeiçoar a governança dessa experiência de parceria sem burocratizar e inibir as suas potencialidades de inovação e aplicação.

 


[1] Cf. Revista de Informação Legislativa, vol. 34, n.º 136, pp. 315-331, Out/Dez, 1997, Senado Federal, Brasília, disponível http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/314; Revista de Direito Administrativo (RDA), FGV, n.º 210, Out/Dez,1997, disponível em https://doi.org/10.12660/rda.v210.1997.47096  O texto também foi publicado como capítulo de dois livros coletivos: MEREGE, Luiz Carlos (coord) e BARBOSA, Maria Nazaré Lins (org.). Terceiro Setor: reflexão sobre o marco legal. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1998. ISBN – 85-225-0262-5; PETRRUCCI, Vera; SCHWARZ, Letícia. Administração Pública Gerencial: A Reforma de 1995: Ensaios Sobre A Reforma Administrativa Brasileira no Limiar do Século XXI. Brasília, Editora Universidade de Brasília, ENAP, 1999. ISBN: 85-230-0544-7.

[5] Ver MODESTO, Paulo. As Organizações Sociais no Brasil após a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1923, de 2015, especialmente pp. 103 a 108. In: DANTAS, Miguel Calmon.; MODESTO, Paulo; LIMA, Raimundo Márcio Ribeiro; MOTA, Raquel Gonçalves. Estado Social, Constituição e Pobreza: estudos de doutoramento I. Coimbra, Ed. Instituto Jurídico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, jul. 2016, 268p., DOI 10.14195/978-989-26-1427-4, disponível em  https://ucdigitalis.uc.pt/pombalina/item/56834

[6] Ver, sobre o tema, por todos: MOTTA, Fabrício; MÂNICA, Fernando Borges; OLIVEIRA, Rafael Arruda. Parcerias com o Terceiro Setor: as inovações da Lei. 13.019/14. 2ª. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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