Interesse Público

Inconstitucionalidade incentivada em matéria tributária: o curioso caso de Cairu

Autores

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

  • Michelle Fontenelle

    é mestra em Ciências Jurídico-Internacionais (Universidade de Lisboa) pós-graduada em Direito Constitucional (Universidade de Salamanca) e assessora jurídica no Tribunal de Justiça da Bahia.

27 de abril de 2023, 8h00

O município de Cairu, na Bahia, cujo destino mais conhecido é Morro de São Paulo, ao longo dos últimos 17 anos editou seis leis instituidoras de um mesmo tributo inconstitucional [1], sob nomenclaturas diversas, com o objetivo de exigir dos turistas o pagamento de imposição pecuniária obrigatória pelo fato de ingressarem na localidade, sem qualquer contraprestação efetiva e destinação precisa e específica dos recursos arrecadados. Essas imposições tributárias são recolhidas no cais de acesso ao Morro de São Paulo, sem controle individual, sem registro contábil formal, e não são sequer destacadas na prestação de contas do município de Cairu ao TCM-BA [2].

Spacca
O Ministério Público da Bahia, no período de 2010 a 2020, ajuizou em face de leis de Cairu quatro ações diretas de inconstitucionalidade [3], sendo que em todos os casos o TJ-BA reconheceu a ocorrência de tentativa pelo município de fraude à jurisdição constitucional, pelo uso de revogações estratégicas das normas atacadas e reedição imediata de atos normativos com o mesmo teor viciado. No momento, as ADIs 8025381-58.2020.805.0000 e 0025644-37.2017.8.05.0000 tiveram o julgamento suspenso para que se complete o quórum para a pronúncia de inconstitucionalidade, atualmente com a maioria de votos favorável [4].

O caso de Cairu é curioso porque coloca em destaque fragilidades do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade e sugere formas alternativas e inovadoras de superá-las. Se o julgamento das ações for concluído pelo Tribunal de Justiça da Bahia, e vencer as inumeráveis tentativas de obstrução do município, pode servir como um importante referencial no país para o problema das leis de inconstitucionalidade incentivada e recorrente.

Inconstitucionalidade incentivada
Define-se "inconstitucionalidade incentivada" como a infração normativa à Constituição presumivelmente útil e vantajosa para o ente legiferante, independentemente do futuro pronunciamento da nulidade do ato inquinado de inconstitucional. Embora o problema não seja exclusivo da área tributária, neste domínio é particularmente relevante.

Diante das circunstâncias fáticas que envolvem exações tributárias inconstitucionais, como a taxa de ingresso em Cairu, ao analisar riscos o gestor pode considerar vantajoso editar o ato normativo mesmo que manifestamente contrário à Constituição, visto que enquanto tramita uma representação de inconstitucionalidade o ente tributante continuará a arrecadar até a decisão de mérito [5]. Ele pode buscar prolongar o julgamento do processo, revogar e novamente editar atos normativos equivalentes, e mesmo quando o tribunal declarar a inconstitucionalidade poderá o ente político pleitear alguma modalidade de modulação de efeitos, caso não fique explícita a sua má-fé processual e material. Se forma alguma de obstrução à jurisdição funcionar, e a inconstitucionalidade for decretada sem ressalvas, poucos serão os contribuintes dispostos a postular em juízo pela repetição individual do indébito, pois os sujeitos passivos são turistas, nacionais e estrangeiros, que estiveram no local de modo esporádico, e recolheram um valor irrisório em comparação aos custos de uma ação. Serão vítimas que não terão provavelmente qualquer prova do pagamento da exação e sem elementos para evitar o enriquecimento sem causa consumado do ente tributante. Acrescente-se, ainda, à equação, a ilegitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública em matéria tributária, conforme jurisprudência reiterada do STJ e do STF [6].

Este cenário evidencia a fragilidade do sistema brasileiro na defesa do cidadão contra a instituição de tributos inconstitucionais de cobrança pontual. O caso de Cairu, por suas peculiaridades, demonstra que a mera declaração de inconstitucionalidade não é suficiente para proteger os direitos fundamentais dos contribuintes. Nesses casos especiais, que ultrapassam o padrão de normalidade por sua reiteração no tempo e incerteza quanto à abrangência dos sujeitos lesados, deve a corte conferir à decisão caráter dissuasório e pedagógico apto a inibir o legislador a novas condutas abusivas e à reiteração da inconstitucionalidade apenas para fins arrecadatórios.

A edição sucessiva de atos normativos sabidamente incompatíveis com o ordenamento constitucional pelo ente político, sem observância de pressupostos institucionais mínimos, incentivada simplesmente pelo proveito econômico auferido durante a vigência do tributo, precisa ter resposta efetiva do Judiciário, compatível com a excepcionalidade e a gravidade da situação de inconstitucionalidade recorrente. A título de exemplo, o município de Cairu já arrecadou, nos dois primeiros meses de 2023, mais de R$ 1,6 milhão, referente a um total de 73.840 turistas/contribuintes [7].

Nas últimas duas ações propostas contra a exação de Cairu, o Ministério Público requereu, além da declaração de inconstitucionalidade das normas, a transferência global do valor apurado ao Fundo de Turismo do Estado da Bahia. O pedido de transferência dos valores arrecadados pode parecer, em leitura superficial, impróprio no controle concentrado de inconstitucionalidade, em virtude do caráter objetivo da fiscalização abstrata de normas. Entretanto, em situações especiais e para atingir a finalidade da jurisdição constitucional, é necessário adotar providências atípicas e inovar para manter a higidez da ordem constitucional, como tem feito o STF, inclusive com a adoção de decisões manipulativas de efeitos aditivos [8].

Em direito constitucional, como em outros domínios, situações excepcionais exigem medidas corretivas excepcionais, pois a realidade jurídica (law in action) com frequência revela a inadequação de abordagens ortodoxas para casos que ultrapassam as hipóteses típicas disciplinadas pelo legislador e analisadas pela doutrina (law in the book). Sem atenção à dimensão pragmática, o direito reduz-se a modalidade de discurso paranoico, autista e cerimonial, que antes dissimula do que resolve conflitos reais de poder ou protege o cidadão da lesão a direitos fundamentais.

Essa constatação tem orientado os tribunais brasileiros, sobretudo em sede de controle concentrado de constitucionalidade de normas, a superarem precedentes ordinários em casos excepcionais quando a própria eficácia das decisões da corte é desafiada ou posta à prova.

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, admite a continuidade de processos de controle de constitucionalidade em face de leis revogadas, quando estas revogações — com nítido objetivo de bloquear a ação dos tribunais — revelam abuso processual e tentativa de escapar do julgamento da corte ao serem realizadas para edição de novas leis idênticas ou semelhantes aos da norma atacada. Nesses casos excepcionais, ao invés de extinguir os processos sem julgamento do mérito por perda de objeto (situação normal), a matéria constitucional de fundo é enfrentada e a decisão passa a regular as consequências da inconstitucionalidade durante o período de vigência das normas guerreadas [9].

Em situações especiais, ainda mais graves, a corte proferiu declaração de "estado de coisas inconstitucional", determinando uma série de medidas executivas para correção de graves infrações à Constituição (v.g, ADPF 347 MC/DF, relator ministro Marco Aurélio, 9/9/2015, relativa ao sistema penitenciário brasileiro, que definiu, entre as "providências estruturais" adotadas, a determinação à União para a liberação de verbas do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), e a abster-se de realizar novos contingenciamentos), ou realizou "interpretação conforme" para manter vigentes medidas previstas na Lei 13.979/2020, referente ao enfrentamento da Covid-19, mesmo após vencido o prazo de 31/12/2020, data de expiração do Decreto Legislativo 6/2020, que decretou a calamidade pública, tendo em conta os princípios da prevenção e da precaução, que devem reger as decisões em matéria de saúde pública (ADI 6.625 MC-Ref, relator ministro Ricardo Lewandowski, 8/3/2021). Velhos mantras de autocontenção perdem vigência em situações excepcionais e diante de comportamentos de entes políticos que podem ensejar a inocuidade ou desmoralização da própria Justiça Constitucional.

Taxa de conservação exige controle e pressupostos rigorosos
Em tese, no Brasil, é possível a cobrança de taxa destinada à fiscalização ambiental em razão do exercício do poder de polícia, a fim de custear a sobrecarga da estrutura municipal decorrente do trânsito e permanência dos visitantes, especialmente nos períodos de alta estação [10]. Contudo, é imperioso que isso seja feito de maneira regular, com sazonalidade, controle rigoroso da destinação específica dos valores arrecadados e utilização de parâmetros de unidade de atuação mensurável. A taxa, independentemente do nome adotado, de turismo ou ambiental, exige "uma correlação mais estreita (nexo sinalagmático) entre quem beneficia da despesa pública e quem suporta o encargo financeiro" [11]. A taxa não é legítima quando simplesmente invoca uma prestação eventual e presumida do ente político, não se vincula a um fundo ou a determinada despesa real, e é imposta sem qualquer parâmetro de individualização ou divisibilidade, de forma desproporcional e com infração ao princípio da igualdade. O poder de instituir taxas não pode assentar em meras presunções, nem incidir sobre a simples conduta de ir e vir individual, sem referibilidade a uma contraprestação concreta ofertada pelo ente tributante, pois não se destina a financiar despesas gerais do ente político. As taxas não podem utilizar a base de cálculo que é própria dos impostos (Artigo 145, §2º, da CF).

Essa exigência de retributividade e individualização, inerente às taxas, impõe uma correlação entre os custos reais dos serviços mantidos e a graduação financeira do tributo. Como ensina Fernando Scaff, "através de impostos se arrecada para o amplo custeio da máquina estatal; através de taxas se arrecada para o custeio daquela específica atividade estatal. Logo, para a cobrança de taxas há de haver uma relação de razoável equivalência financeira entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte sujeito àquela fiscalização ou prestação de serviços. Caso isso não ocorra, haverá confisco (artigo 150, IV, CF), em face de desproporcionalidade entre a cobrança e o custeio pretendido. Isso é assente há anos na jurisprudência do STF, do STJ e de vários tribunais estaduais e federais. Nesse sentido, ver, por todos, o RE 554951, relator ministro Dias Toffoli e a ADI-MC-QO 2551, relatada pelo ministro Celso de Mello." [12].

A natureza constraprestacional e compulsória das taxas, tributo sinalagmático (na feliz expressão de Edvaldo Brito) [13], afasta a legitimidade de taxas que não correspondam a serviços específicos e divisíveis ou que remetam ao exercício meramente presumido do poder de polícia. Elas serão legítimas quando integralmente revertam para o financiamento dos serviços a que se destinam, sejam controladas e apuradas com segurança e individualidade, viabilizem fiscalizações efetivas, sem quebra de isonomia e segundo parâmetros de mensuração que permitam identificar razoável equilíbrio entre o custo da atuação estatal específica e a graduação financeira do tributo. E nada disso parece presente nas taxas (ora denominadas impropriamente de "preço") de ingresso no sítio turístico do Morro de São Paulo, no município de Cairu.

Destaque-se que na ADI 5.489 (Dje 11/3/2021), da relatoria do ministro Roberto Barroso, o Supremo Tribunal Federal à unanimidade fixou como tese de julgamento com eficácia de repercussão geral a seguinte ementa:

"Viola o princípio da capacidade contributiva, na dimensão do custo/benefício, a instituição de taxa de polícia ambiental que exceda flagrante e desproporcionalmente os custos da atividade estatal de fiscalização".

Da abstrativização do concreto à concretização do abstrato
Há muito tempo as decisões na jurisdição constitucional deixaram de ser simplesmente declaratórias e binárias. Hoje respondem ao contexto e, com notável frequência, afirmam a inconstitucionalidade com modulações, adotam soluções aditivas, constroem regimes normativos provisórios e compromissos de interpretação conforme que redefinem decisões do legislador. A jurisdição constitucional recusa-se a permanecer platônica e ajusta-se ao que acontece no plano da vida social.

É certo que tudo isso é especialmente visível nos casos excepcionais, pois situações graves e de afronta à jurisdição constitucional exigem medidas de resposta eficazes e sintonizadas com a realidade concreta. Em muitos casos a prática dos tribunais é dual: soluções recorrentes e padronizadas são adotadas para os casos ordinários e medidas criativas e responsivas são implementadas para as situações excepcionais, em um mesmo e específico domínio, sugerindo contradição superficial que uma análise mais detida desmonta.

O controle da constitucionalidade oscila em um duplo movimento: a abstrativização do controle incidental e concreto e a concretização do controle concentrado e principal. O primeiro movimento do pêndulo é muito estudado; o segundo, ainda insuficientemente refletido.

Audiências públicas e perícias nos processos objetivos, modulação de efeitos e análise de acordos em sede de ações diretas, são portas que o sistema jurídico abriu para que os fatos penetrem com força no controle concentrado de inconstitucionalidade. O curioso caso de Cairu é uma oportunidade para que se reflita como os fatos também devem repercutir nas técnicas e no alcance das decisões, de modo a inibir inconstitucionalidades recorrentes e incentivadas, afastando o risco de desmoralização social da jurisdição constitucional por inocuidade ou irrelevância.

 


[1] Lei n. 211/2006, Lei Complementar n. 341/11, Lei Complementar n. 387/12, Lei Complementar n. 515/17, Lei n. 586/19 e Lei n. 654/22.

[3] ADI n. 001274029.2010.8.05.0000, ADI n. 0001946-07.2014.8.05.0000, ADI n. 0025644-37.2017.8.05.0000 e ADI n. 8025381-58.2020.805.0000.

[4] O julgamento foi corretamente suspenso a fim de aguardar-se o comparecimento e votação dos Desembargadores ausentes e não impedidos para o julgamento da causa, com vistas a que se atinja o quórum de proclamação da inconstitucionalidade, conforme determina norma expressa do Regimento Interno do TJBA (Art. 83, §3º). Normas semelhantes estão previstas no Regimento Interno do STF (Art. 173, parágrafo único) e de praticamente todos os Tribunais de Justiça do país. No STJ, em incidente de inconstitucionalidade, procede-se de igual modo (Art. 199, §3º). A suspensão do julgamento não garante que a votação alcance a maioria absoluta de votos convergentes, porém é necessária havendo juízes licenciados ou ausentes em número que possa influir no resultado do julgamento. Inviável a convergência, considera-se o ato impugnado constitucional, mas a decisão não produzirá efeitos vinculantes ou erga omnes.

[5]E mesmo com o deferimento da liminar, o ente municipal pode editar novo ato inconstitucional com dupla finalidade: i) alegar a perda superveniente do objeto da ação originária, fraudando a jurisdição constitucional; ii) manter a arrecadação de forma ininterrupta.

[6] V.g, ARE 694294 RG, Rel. Min. Luiz Fux, 25.04.2013, DJe 16.5.2013. Tema 645 – Repercussão Geral. No STJ, no julgamento recente do EREsp 1428611, apesar dos votos divergentes dos Min. Regina Helena Costa e Min. Herman Benjamin, o STJ manteve o entendimento da ilegitimidade ativa do Ministério Público para deduzir, em ação civil pública, pretensão relativa à matéria tributária.

[7] Cf. site oficial do município: https://www.tupadigital.com.br

[8] Em recente decisão, o min. André Mendonça deferiu liminar na ADI 7059, suspendendo não só os efeitos da norma atacada, mas “para fins de empregar decisão manipulativa de efeitos aditivos ao art. 1º. da Lei Complementar 459, de 8 de outubro de 2021, do Estado de Pernambuco, até o julgamento definitivo desta ação direta de inconstitucionalidade, de modo que a Administração Tributária pernambucana garanta a restituição do IPVA cobrado em excesso ao período no qual o automóvel não esteve ligado à sua jurisdição territorial, conforme assentado na ADI 4612, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe 17.08.2020.”

[90] A jurisprudência do STF é firme no sentido de que a revogação da norma impugnada de forma estratégica, durante o julgamento da ação, com preservação de efeitos ou a aprovação sucessiva de norma idêntica ou de efeitos equivalentes, equivale a fraude processual e tentativa de burla à jurisdição, situação que autoriza a continuidade do julgamento do mérito para alcançar todo o conjunto normativo inconstitucional, sem prejudicialidade da ação direta. Nesse sentido, v.g., a ADI 3306, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 07.06.2011; ADI nº 3232, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 3.10.2008; ADI 951 ED, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 20-06-2017; ADI 4356/CE, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 12.5.2011; ADI 4545, Rel. Rosa Weber, DJe 06-04-2020.

[10] Cf. ARE-AgR 1.160.175; RE 416601; AI 638.092-AgR, ARE-AgR 738944/MG

[11] MORGADO, Ricardo. A Tributação Turística Municipal: o caso do Município de Lisboa. Lisboa: Almedina, 2018, p.28.

[12] SCAFF, Fernando Facury. O STF e a irrazoável equivalência financeira das taxas de fiscalização, Conjur, 19/10/2020, link

[13] BRITO, Edvaldo. Direito Tributário e Constituição: estudos e pareceres. São Paulo: Atlas, 2016, p. 32 e 34.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

  • é mestra em Ciências Jurídico-Internacionais (Universidade de Lisboa), pós-graduada em Direito Constitucional (Universidade de Salamanca) e assessora jurídica no Tribunal de Justiça da Bahia.

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