Interesse Público

Audiências e consultas: vinculação cognitiva e experimentação administrativa

Autores

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

  • Camila Modesto

    é advogada pesquisadora e mestranda em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

13 de julho de 2023, 9h37

Instrumentos de diálogo e monitoramento, como a audiência pública e a consulta pública, promovem espaços de interação e participação que aproximam indivíduos, empresas e a administração pública. Previstos em caráter geral na Lei nº 9.784/1999, porém percebidos como simples faculdades da administração pública, aceitos como veículos participativos compatíveis com a discricionariedade administrativa procedimental, esses instrumentos podem ir além do caráter democratizante e servir como verdadeiras ferramentas de experimentação administrativa.

Spacca
Experimentar, por natureza, exige o enfrentamento do desconhecido. Na etapa preparatória, comum a qualquer exploração, a obtenção do máximo de informações é essencial para aumentar as chances de sucesso e impedir atuações futuras inconformes e surpresas ao se tatear no escuro. A experimentação depende e é motivada por informações. Como sustentado em coluna anterior, a "experimentação opera em pequena escala e visa a favorecer o aprendizado fatual e incremental, a descoberta das variáveis relevantes e a coleta de informações antes da decisão regulatória geral ou da generalização de práticas bem-sucedidas" [1]. Em síntese, na fase de planejamento da experimentação administrativa deve-se extrair o máximo da informação disponível, avaliar as práticas usuais, ponderar custos e benefícios, considerar o contexto local e a opinião dos usuários para avançar na experimentação. A administração pública é mais do que executar a lei de ofício — exige ouvir, observar, monitorar e planejar mudanças gerais, administrativas ou legislativas, e alterações experimentais ou incrementais, exigentes do aprendizado com os erros e acertos do experimento.

Os instrumentos de diálogo representam exatamente os mecanismos que permitem a administração pública divulgar, captar e processar informações em procedimento dinâmico de troca com privados, sejam eles administrados em geral ou entidades diretamente interessadas no processo. Tanto a consulta pública quanto a audiência pública são previstos na Lei de Processo Administrativo (LPA) — Lei nº 9.784/1999 — como instrumentos de instrução para "manifestação de terceiros" (artigo 31) e para "debates sobre a matéria do processo" (artigo 32), respectivamente. Assim, ambos são espaços de diálogo promovidos por autoridade administrativa para obter informações de pessoas e entidades externas — a consulta pública através de contribuições escritas e a audiência pública por meio de contribuições orais.

Além destas previsões expressas a respeito da audiência pública e da consulta pública, a LPA também permitiu em seu artigo 33 o estabelecimento de "outros meios de participação de administrados, diretamente ou por meio de organizações e associações legalmente reconhecidas". A abertura estabelecida em lei para instrumentos inominados diversos da audiência e da consulta pública, possibilita que a administração pública inove e experimente formas que possam contribuir para seus objetivos [2].

Essa discricionariedade conferida à Administração proporciona múltiplos usos dos instrumentos de diálogo público-privado para trocas de informações, adaptáveis aos objetivos de cada caso. Irene Nohara e Thiago Marrara citam como exemplo de outros meios de participação a realização de "conferências, encontros, enquetes pela Internet, consultas eletrônicas" [3], mas pode-se apontar também a sondagem de mercado e o roadshow.

Portanto, a LPA ao disciplinar o processo administrativo federal de forma geral e aberta, deixa espaço não só para a escolha do instrumento utilizado, como também para a instituição de prazos, procedimentos e coordenação da sua realização [4]. A maleabilidade do procedimento destes instrumentos e a discricionariedade conferida à administração pública, possibilitam o uso estratégico e intencional dos instrumentos a fim de alcançar objetivos específicos.

Observa-se que cada um dos instrumentos de diálogo pode ser promovido em diferentes espécies, dependendo da sua finalidade e público-alvo. Pode-se identificar consultas públicas ou audiências públicas: (1) técnicas, voltadas para especialistas em determinados assuntos [5]; (2) com a população impactada, visando colher a opinião dos diretamente afetados [6]; (3) com possíveis interessados, buscando escutar players com interesse direto na questão; e (4) livres, abertas a todos.

As informações captadas pelos instrumentos de diálogo citados e sua utilidade prática para administração pública dependerão de escolhas conscientes e intencionais, bem como do procedimento adotado. É preciso saber qual a finalidade visada para identificar a melhor forma de alcançá-la — o que inclui a escolha da espécie de instrumento de diálogo, do momento para sua realização, e do público-alvo. Assim, antes de promover um espaço de diálogo, o gestor público deve se perguntar (1) o que quer descobrir, (2) quem será capaz de proporcionar tal descoberta, (3) qual instrumento possibilitará captura de informações com maior qualidade, e (4) qual o melhor momento para conseguir as informações desejadas.

A resposta de cada uma dessas perguntas impacta o resultado da outra, sendo a identificação da finalidade determinante para as escolhas procedimentais. Assim, sabendo o que se quer descobrir e quem pode fornecer a informação desejada, é possível identificar o melhor instrumento de captura de informações.

Assim como a finalidade, o público-alvo e a espécie de instrumento de diálogo utilizado, o tempo é um fator crucial para a efetividade do processo de captação de informações. Como apontado em artigo anterior, a "coordenação de interesses, informações, recursos e competências no âmbito da Administração Pública pressupõe a programação do tempo de tomada das decisões" [7]. Assim, se o espaço de diálogo ocorrer cedo demais, pode ocorrer ausência de parâmetros seguros e informações confiáveis suficientes para que os participantes tenham noção do proposto e possam contribuir de forma relevante. Já se ocorrer tarde demais, com tudo praticamente encaminhado, pode não haver muito espaço para contribuições e mudanças de rumo. Estabelecer quando é cedo ou tarde demais também dependerá do objetivo e da função da audiência ou da consulta.

Vale destacar que a utilização de instrumentos de diálogo não precisa se limitar a um único momento em uma oportunidade de experimentação — pode ocorrer em diversos momentos do processo [8], inclusive com a mistura de diferentes instrumentos desde que faça sentido no caso específico e colabore para uma finalidade determinada e condizente com as escolhas.

Coletadas as informações que auxiliarão na tomada de decisões durante a experimentação administrativa através de instrumentos de diálogo público-privado, outro ponto importante é o estabelecimento do nível de vinculação da administração pública ao utilizar estes instrumentos.

Pode-se falar em vinculação para a realização em si da audiência pública ou da consulta pública (artigo 10, VI da Lei 11.079/2004), bem como de vinculação para apresentação de resposta fundamentada (artigo 31, §2º e artigo 34 da Lei 9.784/1999), mas a Administração não está vinculada a acatar as contribuições. Assim, o dever de publicidade vai além de meramente informar sobre o objeto do procedimento de diálogo e de divulgar as contribuições e o que ocorreu, sendo necessário prestar respostas e explicar o encaminhamento. O que não significa que a administração pública deva acatar as contribuições recebidas.

Em verdade, os instrumentos de diálogo participativo, como a audiência pública e a consulta pública, não podem ser apenas encenações teatrais administrativas. Criam vinculação cognitiva, pois obrigam o gestor a avaliar e a responder às manifestações apresentadas, ao menos de forma agrupada. Essa é uma decorrência lógica da autovinculação administrativa e deriva do ato de convocação do instrumento de diálogo e monitoramento. Os instrumentos referidos não criam vinculação decisória, mas a ausência de resposta e consideração das manifestações apresentadas pode ensejar a nulidade desses eventos administrativos, o que em alguns casos pode paralisar procedimentos e iniciativas governamentais, quando estes instrumentos participativos sejam de realização obrigatória (vg, artigo 2º, XIII, e artigo 40, § 4º, I, da Lei Federal 10.257/2001).

A avaliação sobre a repercussão das contribuições no plano decisório cabe ao gestor, que pode optar por um rumo a seguir mesmo que ocorra maioria de contribuições em sentido oposto. Nesse caso, há ônus maior para explicação da decisão contrária. Por óbvio, no caso de a decisão ser alinhada com as contribuições recebidas, essas, naturalmente, acabam reforçando e servindo de justificativa parcial para a decisão, diminuindo o ônus argumentativo e explicativo da Administração.

No documento "Avaliação da participação na elaboração de políticas públicas" da OCDE, colhe-se:

"El propósito más frecuente es el de respetar la información, la consulta y la implicación de los ciudadanos? La respuesta es no. Es tan relevante evaluar el proceso de control y monitorización como el de aprendizaje y el de obtención de apoyo para las decisiones" [9].

A apresentação das respostas da administração pública deve ser cuidadosa com o conteúdo da justificação, bem como adotar formas acessíveis. A comunicação é um aspecto extremamente relevante dos mecanismos de diálogo público-privado tanto em momento prévio de apresentação de informações pela administração para os participantes, quanto em momento final com o retorno e encaminhamento dos resultados. As respostas podem ser politicamente sensíveis, de forma que uma boa comunicação, com respostas completas e bem fundamentadas, bem como a escolha de momento oportuno para a divulgação dos resultados, pode fazer toda a diferença na sua consequência para o projeto. Portanto, deve-se contar com estratégia de comunicação — o que implica também saber com quem se está dialogando, que informações se quer passar, e qual o objetivo visado.

Dadas as considerações apresentadas, entende-se que a utilização de instrumentos de diálogo em processos administrativos consiste em processo de troca de informações e aprendizado mútuo, porém possui repercussões administrativas relevantes. Aqueles que participam aprendem sobre o projeto, a política pública envolvida e as intenções da administração pública, enquanto esta aprende sobre a recepção do que apresentou, a opinião dos participantes, a existência de interesses envolvidos, tendo a oportunidade e a obrigação de considerar as manifestações recebidas.

Audiências e consultas públicas municiam processos de experimentação administrativa e podem servir de base para instrumentos diversos com propósitos semelhantes, mais ajustados ao contexto, que igualmente obrigam a administração a lhes conferir consistência e resposta. Eles auxiliam a administração pública a compreender os interesses em jogo, os interessados e contrainteressados, elementos essenciais para que se possa testar práticas experimentais, inovadoras e em regime de monitoramento. Sabe-se que a lei não pode conter toda a ação administrativa e entender a administração pública como agente capaz de inovar impõe à função administrativa a necessidade de experimentar como atividade diária comum e não só como resposta à momentos de crise [10]. Experimentar não é lançar precedentes, protocolos e práticas estabelecidas pela janela. Experimentação e inovação podem partir de chão sólido e estável e nem sempre há necessidade de reinventar a roda.

Os instrumentos de diálogo previstos na LPA são exemplos de processos administrativos que podem ser utilizados como ferramentas experimentais na gestão pública. A identificação do potencial uso desses mecanismos obriga também a reconhecer um grau mínimo de vinculação cognitiva que deles deriva. Resta à administração pública assumir que no seu interior cabem inovações criativas na teoria e na prática da gestão [11], porém também a responsabilidade de preservar a integridade e a relevância social dessas iniciativas, respondendo ao cidadão que aceita ao seu convite para opinar e avaliar políticas e iniciativas públicas em processos administrativos participativos.

 


[1] MODESTO, Paulo. Direito administrativo da experimentação: uma introdução. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-14/interesse-publico-direito-administrativo-experimentacao-introducao

[2] Destaco mais uma vez a importância da autonomia legislativa dos entes da federação no processo administrativo. Como destaquei em artigo anterior: "Preservada a autonomia legislativa poderão as unidades subnacionais inovar na matéria administrativa, sem amarras centralistas, exercitando o papel também de "laboratórios de experimentação" em matéria processual administrativa, respeitados os princípios constitucionais obrigatórios". MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao.

[3] NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago. Processo administrativo: Lei nº 9.784/99 comentada. São Paulo: Atlas, 2009. p. 244.

[4] Como apresentado em artigo anterior: "Por óbvio, preservada a autonomia administrativa da própria União, cabe a ela disciplinar o processo administrativo federal, mas não legislar sobre prazos, procedimentos, coordenação orgânica, recursos administrativos ou legitimados para o processo administrativo com eficácia nacional abrangente, de modo a alcançar as demais unidades da Federação". MODESTO, Paulo. Federalismo administrativo, processo e experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, dez. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-08/interesse-publico-federalismo-administrativo-processo-experimentacao.

[5] A título de exemplo, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo realizou audiência pública especializada voltada para a comunidade cientifica durante o processo de licitação do projeto de concessão do Zoológico de São Paulo e do Jardim Botânico (https://www.infraestruturameioambiente.sp.gov.br/2020/04/sima-convoca-comunidade-cientifica-para-audiencia-sobre-concessao-do-zoo-e-botanico/).

[6] A título de exemplo, a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo realizou audiência pública com objetivo de "apresentar o projeto de concessão e receber contribuições das comunidades locais" durante o processo de licitação do projeto de concessão do Parque Estadual Turístico Alto Ribeira – PETAR.

[7] MODESTO, Paulo. O silêncio administrativo como técnica de experimentação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, São Paulo, jan. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-27/interesse-publico-silencio-administrativo-tecnica-experimentacao.

[8] O Relatório de Pesquisa "Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal" produzido pelo Ipea cita dentre as soluções de aperfeiçoamento a realização de audiências em mais de um momento: "A partir da análise das dimensões expostas, é possível elaborar algumas sugestões para o aperfeiçoamento das APs como espaços participativos de interação entre Estado e sociedade. Em primeiro lugar, a ocorrência de audiências em apenas um momento do processo decisório de Belo Monte prejudicou a efetiva participação no caso aqui estudado. Como mencionado, as audiências ocorridas seguiram a legislação, que prevê audiências no âmbito do processo de licenciamento ambiental no momento anterior à emissão da LP com o objetivo de discutir o EIA-Rima. Entretanto, a limitação da ocorrência de audiências em um momento específico para discutir projetos tão polêmicos e complexos, como é o caso de Belo Monte, gera dois problemas: de um lado, a sociedade reivindica uma participação ao longo de todo o processo decisório; e, de outro, técnicos do Ibama afirmam que muitas informações importantes são definidas em período posterior à aprovação da LP". IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Potencial de Efetividade das Audiências Públicas do Governo Federal. Relatório de Pesquisa. Brasília, 2013. p. 120.

[9] Evaluación de la participación pública en la elaboración de políticas públicas [Texto impreso] I traducción de María José Burgos. _l.a ed.- Madrid: Instituto Nacional de Administración Pública: Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económico (OCDE), 2008 -142 p.; 24 Cffi- (Estudios y Documentos).

[10] UNGER, Roberto Mangabeira. A constituição do experimentalismo democrático. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 257, p. 57-72, 2011. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/8584

[11] "La gestión pública debe reconocerse como el principal ámbito de innovaciones creativas en la teoría y la práctica de la Gestión". González, José Juan Sánchez. Gestión Pública y Governance. Instituto de Administración Pública del Estado de México. Ioluca, México, 2002. Mariana Mazucatto em seu texto "O Estado empreendedor", por igual, demonstrou o papel central do Estado para diversos desenvolvimentos tecnológicos, de inovação e pesquisa. Cf. MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor. São Paulo: Portfolio Penguin, 2014.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

  • é advogada, pesquisadora e mestranda em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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