Interesse Público

Negócios processuais e experimentação administrativa

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

14 de setembro de 2023, 9h23

O cidadão comete uma infração de trânsito por ultrapassar a velocidade permitida na via em que trafega. Flagrado por radares, em poucos dias, recebe uma notificação do valor da multa prevista pela Administração Pública. Na própria notificação, o órgão de fiscalização informa o prazo para o recurso administrativo e enuncia: se o cidadão aderir ao sistema eletrônico de notificação, e optar por não apresentar defesa prévia nem recurso, reconhecendo o cometimento da infração, a multa devida será reduzida em 40% do seu valor, desde que quitada até o vencimento do prazo de pagamento (artigo 284, § 1º, da Lei 9503/1997, com redação da Lei 14.440/2022). A hipótese figura um negócio processual administrativo típico, extintivo do processo administrativo instaurado.

Negócios processuais são fatos jurídicos, decorrentes de declaração de vontade de ao menos uma das partes da relação processual, aptos a produzirem efeitos de criação, modificação ou extinção de situação jurídica processual, eventualmente com reflexos na organização e no curso do procedimento ou na estabilização de situação jurídica de direito material. Podem ser produzidos após instaurado o processo ou antes de sua deflagração (v.g. pactos de eleição de foro ou convenção de arbitragem).

Spacca
Com precedência, Fredie Didier sublinhou a natureza de fonte normativa dos negócios processuais, conceituando-os como "o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se confere ao sujeito o poder de regular, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento". [1]

 E acentuou o papel dos negócios processuais no "modelo cooperativo de processo" (artigo 6º, CPC),  em especial diante da cláusula de preferência entabulada nos §§2º e 3º do artigo 3º do CPC: "§2º. O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos", e §3º. "A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial".

No âmbito administrativo, há negócios processuais que exigem pactuação complexa, ou individualizada, a exemplo do "compromisso de ajustamento de conduta", previsto na Lei da Ação Civil Pública (Lei 7347/1985, artigo 5º, §6º) ou o "compromisso de cessação de prática", enunciado na Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011, artigo 85), ou o compromisso de ajustamento de conduta ambiental, disciplinado pela Lei de Infrações Ambientais (Lei 9.605/1998, artigo 79-A). Nesses casos, delimita-se um peculiar e específico conjunto de obrigações em acordo extrajudicial, salvo se o ajuste for celebrado no bojo de uma ação judicial instaurada.

Porém, em todos os casos referidos, a Administração Pública atribui efeitos à manifestação de vontade do particular e ajusta a eficácia de decisões administrativas, atuais ou futuras, ou o desenvolvimento do processo administrativo em causa de forma flexível. Algo radicalmente distinto do modo de proceder da administração pública unilateral ou monológica tradicional. Essa mudança de paradigma, possui normatividade densa o suficiente para assegurar a ampliação do uso de negócios processuais no âmbito da Administração Pública brasileira?

Negócios processuais no processo civil
No processo civil, o desenvolvimento dos negócios processuais foi evidente nos últimos anos.

A partir do CPC de 2015, houve uma ampliação das hipóteses de negócios processuais típicos, nomeadamente — seguindo as lições de Fredie Didier — a eleição negocial do foro (artigo 63); o negócio tácito de que a causa tramite em juízo relativamente incompetente (artigo 65); escolha consensual de mediador, conciliador ou câmara privada de mediação ou conciliação (artigo 168); o calendário processual (artigo 191, CPC); a renúncia ao prazo (artigo 225); o acordo para a suspensão do processo (artigo 313, II); a renúncia tácita à convenção de arbitragem (artigo 337, §6º); o adiamento negociado da audiência (artigo 362, I, CPC); o saneamento consensual (artigo 357, §2º); a convenção sobre ônus da prova (artigo 373, §§3º e 4º); a escolha consensual do perito (artigo 471); desistência da execução ou de medida executiva (artigo 775); a desistência do recurso (artigo 998); a renúncia ao recurso (artigo 999); a aceitação da decisão (artigo 1.000) etc. [2]

Porém, foi sobretudo a partir da previsão de cláusula geral da admissibilidade de negócios processuais atípicos (artigo 190 do CPC), que a doutrina efetivamente despertou para as potencialidades dos negócios processuais. Com a consagração do artigo 190 do CPC, em princípio aplicável ao processo administrativo (ex vi do artigo 15, do CPC), a experimentação procedimental e a identificação das formas de pactuação de negócios processuais prescinde de enunciação legal específica, ampliando a adaptabilidade do instituto.

Prescreve o artigo 190 do CPC:

"Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade."

A norma é abrangente e estipula limites de emprego e requisitos materiais, porém não restrições procedimentais ou temporais para a admissibilidade de convenções ou negócios processuais. A recusa do juiz é considerada excepcional, porém os negócios processuais não podem limitar direitos de terceiros, fragilizar a situação da parte vulnerável ou criar para as partes direitos processuais inexistentes, que afetem poderes e deveres do juiz ou limitem a publicidade do processo. [3]

Enfatiza Pedro Henrique Nogueira, que a exigência de serem os negócios processuais relativos a "direitos que admitam autocomposição", exige cautela hermenêutica, pois "não se devem confundir os direitos patrimoniais disponíveis, opção conceitual da Lei 9307/96, artigo 1º, para o uso da arbitragem, com os direitos que admitam autocomposição, noção mais abrangente, pois mesmo os direitos indisponíveis podem ser objeto de negociação, e frequentemente o são, quanto ao modo de cumprimento, tal como se passa nos compromissos de ajustamento de conduta". [4]

Em sintonia, refuta Egon Bockmann Moreira as críticas dos que consideram a negociação processual proibida quando incidente sobre ônus, direitos, poderes, bens e serviços extra commercium, ainda que objeto de contratos administrativos. Em tom interrogativo, afirma: "Ora, a tese prova demais: se são bens e serviços extra commercium, como podem ser objeto de contratos? Se são indisponíveis, como se pautar pela combinação do edital com a proposta vencedora? Se possuem essa natureza, como podem ser negados aos servidores públicos — ou ter seu adimplemento parcelado? A bem da verdade, está-se diante de comercialidade diferenciada, pautada pelo direito administrativo econômico e pela disponibilidade dos direitos postos em conflito (o que reforça a viabilidade de sua autocomposição — e da negociação processual em processos administrativos e na jurisdição cível). Uma coisa é a indisponibilidade da função administrativa; outra, completamente diversa, é a disponibilidade condicionada do próprio contrato (e da quantificação monetária do seu objeto)." [5]

O artigo 26 da Lindb
Ao lado de diversas previsões sobre a consensualidade no direito administrativo, algumas de caráter geral e orgânico (como a competência do Advogado-Geral da União para "desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União — artigo 4º, VI, da Lei Complementar 73/1993), um expressivo conjunto de normas especiais foi sendo aprovado para autorizar acordos processuais e convenções perante agências reguladoras, a CVM e o Cade. Juliana Palma denomina essa situação de "modelo de previsão normativa difusa" da atuação administrativa consensual [6]. Não é o caso de novamente enumerar diplomas.

O casuísmo desses enunciados deixava a descoberto entidades relevantes (ex. Ancine, Anvisa e ANA). Alguns autores, com destaque para Fernando Dias Menezes de Almeida, sugeriram que a autorização para celebração de acordos administrativo não estava prejudicada pela lacuna legal na disciplina da atividade negocial nessas entidades, derivando a possibilidade de decidir por acordos administrativos da própria competência para decidir de modo unilateral. Segundo o autor, "está implícita no poder de decidir unilateralmente e de ofício, a opção da Administração por impor a si própria certos condicionantes de sua ação, importando obrigação para com o destinatário da decisão. É lícito que se chegue a essa opção por via consensual de formação da convicção"[7]A possibilidade de acordos decorreria de simples autovinculação.[8]

Diante desse cenário de "regulação difusa" e fragmentária, foi incluído na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro o artigo 26, em princípio destinado a ser "cláusula geral" na matéria, com a seguinte redação:

"Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.
§ 1º O compromisso referido no caput deste artigo:
I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;
II – (VETADO);
III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;
IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.
§ 2º (VETADO)."

Trata-se de enunciado com bons propósitos, mas de redação parcialmente claudicante: a) irregularidades simples, erros formais não invalidantes, deveriam ser corrigidos unilateralmente pela autoridade administrativa, dispensadas exigências formais burocratizantes; b) o propósito de sanar situação de incerteza jurídica não deveria estar condicionado a juízo material igualmente inseguro, assinalado em conceito jurídico indeterminado ("razões de relevante interesse público"); c) a incerteza quanto à expedição de licença (ato vinculado) convoca a incidência da prescrição, porém a incerteza ou situação contenciosa em matéria de autorização (ato discricionário) foi omitida do preceito, sem qualquer justificativa. Fora isso, exige-se oitiva formal do órgão jurídico de consultoria (às vezes inexistente em pequenos municípios) e eventual convocação de consulta pública — requisitos procedimentais que podem servir para invalidar ou ao menos estimular a litigiosidade em relação aos acordos celebrados.

Melhor seria uma regulação simples, exigente de motivação, ou ainda de disciplina regulamentar específica para as diferentes situações administrativas (entre outras, licenciamento, sancionamento, autorização, fiscalização, concurso ou condicionamento).

Efetivamente, os negócios jurídicos processuais não foram originalmente previstos na Lei 9.784/1999, lei geral do processo administrativo da União. Entretanto, atualmente tramita no Congresso projeto de lei para estabelecer cláusula geral expressa e autorizativa dos negócios jurídicos processuais na Lei 9784/1999. Qual o teor dessa proposta? Em que medida ela inova o processo administrativo consoante as normas vigentes, sobretudo o artigo 26 da Lindb? O enunciado normativo sugerido simplifica ou burocratiza a celebração de negócios processuais pela Administração Pública?

Artigo 25-A do Anteprojeto de Lei para a reforma da Lei 9784/99 possui a seguinte redação:

"Art. 25-A. Os órgãos e entidades podem, em consenso com o administrado, celebrar negócio jurídico processual administrativo que estipule mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da situação concreta, antes ou durante o processo.
§ 1° O negócio jurídico processual administrativo deverá ser celebrado após a manifestação do órgão jurídico, observados os princípios previstos no artigo 2° desta Lei.
§ 2° As partes podem, consensualmente, fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.
§ 3° O calendário vincula as partes, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais, devidamente justificados.
§ 4° Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato processual, cujas datas tiverem sido designadas no calendário."

O texto proposto enfatiza o tema da calendarização dos atos do processo administrativo, mas possui redação superior em precisão ao artigo 26 da Lindb. Refere tanto a órgão quanto a entidades como sujeitos processuais ativos dos negócios processuais; explicita a viabilidade de adotar-se flexibilidade procedimental adaptada a situações concretas, o que favorece a experimentação administrativa e soluções de incertezas de forma adaptativa e contextual; explicita a vinculação das partes à convenção firmada e ainda dispensa intimações formais para prática de ato processual abrangido pelo calendário processual acordado. À semelhança do artigo 190 do CPC, sintetiza preceito simples e objetivo, que se ajusta a diferentes situações, sem invocação de conceitos jurídicos indeterminados ou cláusulas de expressiva carga valorativa.

Segundo Flávio Amaral Garcia, o enunciado do artigo 25-A do anteprojeto foi diretamente inspirado no artigo 190 do CPC, com pretensão de funcionar como norma transversal aplicável aos diferentes processos administrativos, tendo por pressuposto: "(i) o reconhecimento de que nem sempre o procedimento previsto em lei é o que melhor atende às especificidades de uma determinada situação concreta; (ii) a confiança do legislador de que a Administração Pública, enquanto parte no processo administrativo, também é capaz de negociar mudanças no procedimento que melhor atendam o interesse público; (iii) a percepção de que, sendo as questões cada vez mais complexas e sofisticadas, impõe-se atribuir maior flexibilidade e autonomia decisória para os gestores públicos, com vistas a otimizar a eficiência e a celeridade; (iv) a expansão do consenso também para as negociações endoprocedimentais." [9].

No âmbito da administração pública, negócios processuais são mais do que apenas a consagração do pluralismo das formas de atuação. Servem também a propósitos administrativos diretos, não apenas para a aceleração do procedimento ou o seu desenvolvimento seguro e ordenado.

Os negócios jurídicos processuais podem servir para propósitos de experimentação administrativa, para aperfeiçoar a instrução de complexos processos de investimento e desenvolvimento de políticas públicas, para abreviar a arrecadação de recursos de infrações administrativas ou tributárias, reduzir incerteza jurídica e moderar a litigiosidade que paralisa investidores privados e gestores públicos.

Exigem a adoção de cautelas especiais, publicidade reforçada, vigilância contra a sua contaminação por interesses secundários ou meramente arrecadatórios e disciplina procedimental adequada.

Os negócios processuais constituem um passo além da mera participação dialógica do cidadão no processo administrativo. Os negócios administrativos nunca seguem a lógica da pura consensualidade privada. Estarão sempre vinculados à realização da função administrativa e submetidos ao ethos que a acompanha. Como enfatiza Sérvulo Correia, constata-se hoje não apenas "o alargamento do intervencionismo econômico do Estado", como também "a procura de um novo estilo de administração, mais marcado pela participação dos particulares e por uma maior procura do consenso, flexibilização e particularização das decisões" [10]. Porém, como sublinha Jorge Alves Correia, "o sucesso da participação-negociação exige uma especial racionalidade argumentativa,  pois só esta promove um diálogo frutífero entre as partes".

"Para isso é necessário dotar os agentes administrativos de competências (skills) em 'negociação'. Sem essa formação específica, os agentes administrativos retraem-se e não irão negociar. Não basta, portanto, alterar ou inovar a lei: é preciso também 'ensinar' a mudança cultural e a nova dinâmica pressupostas nas reformas legislativas." [11] Que essas advertências sejam ouvidas, pois avaliações de impacto normativo são componentes essenciais em qualquer programa sério de reforma e experimentação administrativa.


[1] DIDIER JR, FREDIE. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais. Salvador: JusPODIVM, 2018, p. 25.

[2] Idem, p. 22.

[3] Cf. Enunciados 36 e 37 da Enfam – Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Deve-se, por óbvio, atender as exigências do Código Civil para a formulação de negócios jurídicos: serem celebrados por pessoas capazes, possuírem objeto lícito e observarem forma prevista ou não proibida por lei (arts. 104, 166 e 167, Código Civil).

[4] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Jurídicos Processuais. 2ª. Ed. Salvador: Juspodium, 217, p. 234.

[5]  MOREIRA, Egon Bockmann. Processo administrativo: princípios constitucionais e a lei 9.784/1999 (com especial atenção à LINDB). 6ª.ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 65

[6] PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e acordo na Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 235.

[7] MENEZES DE ALMEIDA, Fernando Dias. Contrato administrativo. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 302.

[8] Sobre autovinculação bilateral, cf. MODESTO, Paulo. Autovinculação da Administração Pública. REDE,  24 – out./nov/dez de 2010, Salvador. Disponível em https://www.academia.edu/1035236

[9] GARCIA, Flávio Amaral. O negócio jurídico processual administrativo. Disponível em https://pge.rj.gov.br/imprensa/noticias/2022/11/flavio-amaral-garcia-o-negocio-juridico-processual-administrativo

[10] CORREIA, Sérvulo. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos. Coimbra: Almedina, 1987, p. 343.

[11] CORREIA, Jorge Alves.  Contrato e Poder Administrativo: o problema do contrato sobre o exercício de poderes públicos. Coimbra: Gestlegal, 2017, p. 545-546.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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