O juramento como início da garantia ne bis in idem
21 de outubro de 2023, 8h00
Na Idade Média, os juramentos eram formas predominantes de manter a ordem social. Eles estavam relacionados a praticamente todos os aspectos da sociedade: nas áreas rurais, nas universidades, nas promessas de fidelidade, em ambientes comerciais e nos tribunais [1].
Considerando especialmente o tribunal, o ato de realizar um juramento durante um julgamento vai além das simples palavras proferidas pelos jurados após a leitura de algumas linhas feita por um juiz, conforme determinação da lei em diversos sistemas judiciais.
A presença de uma autoridade, no caso, o juiz, e a gravidade do assunto ampliam a importância desse ato, tornando-o essencial. Neste contexto, citamos o caso United States v. Turrietta em que o tribunal fez uma importante observação: "Se os jurados se tornam mais confiáveis ao prestar o juramento é uma questão que não se pode afirmar, mas o cenário por trás de tal juramento é inquestionável, já que um jurado, impressionado pela seriedade de uma acusação e sob juramento, é mais provável que esteja atento ao julgamento e, portanto, maior a chance de desempenhar adequadamente sua função" [3].
A prestação do compromisso inicia formalmente o julgamento, cumprindo duas cruciais funções constitucionais: 1. início da garantia contra o risco do ne bis in idem ou double jeopardy e 2. promessa dos jurados em emitir um veredicto com base exclusiva na prova [6]. Diz-se "com base exclusiva na prova", pois nas raízes da prática do sistema jurídico do common law, o juramento tem como pretensão garantir ao acusado a salvaguarda contra ser processado duas vezes pelo mesmo fato, e, por isso, os jurados assumem um compromisso solene de basear seu veredicto exclusivamente nas provas produzidas e apresentadas em plenário, já que a prova está diretamente ligada à formação racional da decisão e, consequentemente, à imparcialidade do julgamento.
Esta "fórmula" consiste em considerar o juramento prestado, as provas apresentadas e o standard da dúvida razoável nos casos criminais, pois é dita fórmula que estabelece um passo significativo em direção à racionalidade do veredicto, uma vez que ele deve estar sustentado pelas provas apresentadas. Assim, se a acusação tentar anular o julgamento devido a evidências fracas, o "double jeopardy" impede o acusador de apelar contra o veredicto e sujeitar o acusado a um novo julgamento, de acordo com o princípio que proíbe a dupla punição ou risco pelo mesmo fato [8].
É no juramento que começa a correr o único risco a que o acusado se verá submetido e, por isso, o julgamento deve ter um fim [9]. O compromisso serve, também, para que os integrantes do conselho de sentença não condenem se não houver solidez nas provas — além da dúvida razoável —, mas não absolvam o acusado, caso o considerem culpado. Isto protegerá, como já dito, um direito fundamental que é a imparcialidade (contida na Sexta Emenda), porque alguns jurados podem vir predispostos a partir de algum tipo de tendência, mas prestar o juramento minimiza o efeito da parcialidade [10].
Ademais, é a através da fórmula do juramento que se garantirá um passo importante que conduz à racionalidade e imparcialidade do veredicto [11], pois o standard probatório deverá se sustentar naquelas provas produzidas no julgamento. Caso ocorra a violação desse juramento, o veredicto resultante pode ser considerado parcial e, consequentemente, inconstitucional [12].
Para além do ne bis in idem, o juramento se vincula também à garantia da prova e da publicidade do julgamento. Tomemos como exemplo o juramento realizado na Argentina: "¿Prometeis en vuestra calidad de jurados, en nombre del Pueblo, examinar y juzgar con imparcialidad y máxima atención la causa, dando en su caso el veredicto según vuestro leal saber y entender, de acuerdo a la prueba producida y observando la Constitución de la Nación y de la Provincia y las leyes vigentes?" [13]. Nota-se que a base do juramento é a prova, o que confere uma maior racionalidade.
Este momento se relaciona diretamente com as instruções aos jurados [14], pois após prestarem juramento, o Tribunal explica aos membros do júri que não podem discutir o caso com ninguém, nem acompanhar as notícias sobre o julgamento nos meios de comunicação: "Cada uno de ustedes tiene que estar absolutamente seguro de que sus decisiones sobre los hechos se basarán únicamente en la evidencia que se escuchará y se presentará en esta sala" [15].
O contexto do cenário nacional ganha outros contornos. Mas, torna-se interessante observamos outros sistemas processuais para um avanço normativo e estrutural. No nosso ordenamento o juramento está disciplinado no artigo 472, CPP com a seguinte redação: "Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça".
Alvo de projeto de lei que busca uma pequena alteração na redação desse artigo, o PLS 156/2009 (agora na Câmara sob o número 8045/2010) propõe que os jurados decidam o caso de acordo com a "prova dos autos", buscando uma maior racionalidade. Diante disso, e sem mudar o sistema da liberdade de convencimento, os jurados seriam livres para, dentre as provas apresentadas em plenário, decidir por qual delas há a formação dos seus convencimentos, rechaçando, portanto, vieses e preconceitos. Levando em consideração a natureza intrínseca do júri e do sistema acusatório, bem como a busca de maior racionalidade decisória, seria mais adequado se os jurados se comprometessem a emitir um veredicto com base na prova produzida ao longo da dinâmica processual [16], ao invés "do acordo com as suas consciências".
[1] WIEBE, Virgil, Oath Martyrs (September 22, 2011). U of St. Thomas Legal Studies Research Paper No. 11-28, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1932505 Acesso em 15 set. 2023
[2] People v. Pribble, 249 N.W.2d 363, 366 (Mich. Ct. App. 1976).
[3] Neste caso específico, o julgamento foi conduzido sem que o juiz tivesse tomado o juramento dos membros do júri. Tendo sido proferido um veredicto de culpabilidade, o advogado da parte acusada, de maneira estratégica, optou por abordar essa questão somente na apelação, argumentando que a Sexta Emenda da Constituição assegura a imparcialidade em um julgamento por jurados, já que o juramento é um componente essencial da imparcialidade do veredicto. O Tribunal rejeitou o pedido de defesa e manteve a condenação, alegando que o advogado intencionalmente omitiu a falta de juramento até que fosse estrategicamente vantajoso demonstrá-la. United States v. Turrietta, 696 F.3d 972, 973 (10th Cir. 2012).
[4] O caso Crist v. Bretz envolve um aspecto constitucional dessa garantia contra ser colocado duas vezes em risco. Em regra, essa garantia se inicia quando os jurados são selecionados e prestam compromisso, pois aí marca-se a proteção ao acusado, conforme dispõe a quinta emenda dos Estados Unidos. Crist v. Bretz, 437 U.S. 28 (1978).
[5] CRUZ, Rogério Schietti. Proibição da dupla persecução penal. São Paulo: Editora JusPodium, 2023.
[6] HARFUCH, Andrés. El veredicto del jurado. Ad-Hoc, Buenos Aires, 2019.
[7] THAMAN, Stephen C. "The Nullification of the Russian Jury: Lessons for Jury-Inspired Reform in Eurasia and beyond". Cornell International Law Journal: Vol. 40: Iss. 2, Article 3. (2007). Disponível em: <http://scholarship.law.cornell.edu/cilj/vol40/iss2/3> Acesso em 22 set. 2023.
[8] THAMAN. Op cit.
[9] HARFUCH. El veredicto… 2019.
[10] KNUDSEN, Kathleen M. (2016). "The Juror's Sacred Oath: Is There a Constitutional Right to a Properly Sworn Jury?". Touro Law Review: Vol. 32: No. 3, Article 4. Disponível em: https://digitalcommons.tourolaw.edu/lawreview/vol32/iss3/4/ Acesso em: 25 set. 2023.
[11] United States v. Turrietta, 696 F.3d 972, 973 (10th Cir. 2012)
[12] HARFUCH, Andrés. El juicio por jurados en la provincia de Buenos Aires: Ley provincial 14.543 anotada y comentada. El modelo de jurado clásico. Ad-Hoc, Buenos Aires, 2013.
[13] Art. 342 bis da Ley 14.543 de Buenos Aires.
[14] Por diversas vezes ressaltamos nesta coluna a importância das instruções e a necessidade de sua implementação no brasil em As instruções aos jurados no cenário da América Latina e OEA , Tribunal do Júri: as instruções e o aperfeiçoamento dos julgamentos e As instruções e a simbiose entre a jurisdição togada e a leiga no Tribunal do Júri.
[15] BINDER, Alberto; HARFUCH, Andrés (Directores). El juicio por jurados en la jurisprudencia nacional e internacional. Sentencias comentadas y opiniones académicas del common law, del civil law y de la Corte Europea de Derechos Humanos. Buenos Aires, Ad-Hoc, 2016 (Colección Juicio por Jurados y Participación Ciudadana nº 5 "a").
[16] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, 2a. ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
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