Opinião

Mecanismos de ambientes hipersociais como práticas sujeitas ao CDC

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30 de novembro de 2023, 17h19

Até meados do século 20 o ato de fumar cigarros era relacionado ao sucesso, glamour e maturidade. Não havia informação sobre os riscos e malefícios trazidos pelo consumo desse produto, o que resultou em gerações de pessoas sofrendo com diversos tipos de câncer e outras doenças.

Somente no final do século, mais precisamente na década de 1990, foi implementada no Brasil uma política legal de antitabagismo, que acabou prestando informação adequada sobre os danos à saúde provocados pelo consumo de cigarros, restringiu meios de publicidade e impôs a inserção de alertas de malefícios em imagens e textos, expostos na embalagem do produto.

Reprodução/Instagram

O resultado foi positivo. Segundo pesquisa realizada pelo IBGE em parceria com a Fiocruz [1], a implementação da legislação antitabagista reduziu sensivelmente o consumo de cigarros no Brasil. Estima-se que, entre 1998 e 2008, foram evitadas aproximadamente 420 mil mortes pelo consumo de cigarro [2].

No entanto, enquanto sociedade, parece que estamos repetindo com outro mecanismo potencialmente viciante, o mesmo erro cometido até décadas atrás com o cigarro.

Os diversos aplicativos denominados popularmente de “redes sociais” se utilizam, tal qual fazia a indústria tabagista no mundo inteiro, de diversas estratégias visando manter os usuários presos às telas dos smartphones e de mídias similares pelo maior espaço de tempo possível.

Isto ocorre porque esses ambientes hipersociais aparecem como “gratuitos”, mas são regiamente pagos pelos usuários através da coleta de seus dados pessoais, hábitos de consumo e atenção prestada aos anunciantes de produtos e serviços.

A partir dessa lógica de estruturação dos ambientes hipersociais, foram criadas estratégias como a tela de rolagem infinita ou infinite scroll (que mescla conteúdos de interesse do usuário com anúncios pagos), botões de “like” e de reação emocional (emojis), filtros de tela, dentre outros.

Aparentemente, tal como aconteceu com o cigarro, nossa sociedade tem glamourizado ou, no mínimo, tolerado de forma ilimitada e descuidada, o uso dessas estratégias que podem ser danosas à saúde mental dos indivíduos e também ao próprio convívio familiar e social.

Nesse contexto, assim como o vício em nicotina foi induzido dolosamente pela indústria com auxílio da propaganda (que unia a imagem do cigarro até mesmo com a prática de esportes), o mesmo parece ocorrer hoje, de forma bem mais sofisticada, com a indução do consumidor ao vício em dopamina e serotonina endógenas, por parte das empresas que promovem os ambientes hipersociais, apesar deste aspecto ainda ser alvo de acaloradas discussões acadêmicas.

Como mencionado acima, a estratégia de viciar usuários não parece ser casual. Isto, aliás, já foi relatado por diversos programadores que atuaram diretamente no desenvolvimento desses softwares, como dito acima. A título exemplificativo, segue trecho de entrevista de um programador para a BBC de Londres:

“É como se eles estivessem tomando cocaína comportamental e apenas borrifando por toda a sua interface e isso é o que faz você voltar e voltar”, disse Aza Raskin, ex-funcionária da Mozilla e da Jawbone.

“Por trás de cada tela do seu telefone, geralmente há literalmente mil engenheiros que trabalharam nessa coisa para tentar torná-la o máximo viciante”, acrescentou [3].

Por essas razões, personalidades bem informadas como Steve Jobs e Bill Gates, entre outros magnatas e ícones do Vale do Silício, limitaram o acesso de seus filhos a essas mídias:

“Os pioneiros tinham isso claro desde o início. Bill Gates, criador da Microsoft, limitou o tempo de tela de seus filhos. ‘Não temos telefones na mesa quando estamos comendo e só lhes demos celulares quando completaram 14 anos”, disse ele em 2017. “Em casa, limitamos o uso de tecnologia para nossos filhos’, explicou Steve Jobs, criador da Apple, em uma entrevista ao The New York Times em 2010, na qual disse que proibia os filhos de usarem o recém-criado iPad. ‘Na escala entre doces e crack, isso está mais próximo do crack’, declarou Chris Anderson, ex-diretor da revista Wired, bíblia da cultura digital, também ao The New York Times” [4].

A base para essa tomada de decisão a respeito do cuidado com os filhos não é apenas empírica, encontra base científica. Nesse sentido, um estudo realizado pela Universidade de Ottawa no Canadá, com 4.500 crianças e publicado na revista científica Lancet Child & Adolescent Health, atingiu a seguinte conclusão:

As conclusões, publicadas na The Lancet Child & Adolescent Health, são muito claras: quanto mais recomendações individuais meninos e meninas cumprirem, melhores serão suas habilidades. Mas há um tema que se destaca dos demais: o tempo gasto em dispositivos é aquele que tem uma relação mais forte com a maturação intelectual. ‘Descobrimos que mais de duas horas de tempo recreativo com telas estão associadas a um pior desenvolvimento cognitivo em crianças’, concluem os pesquisadores da Universidade de Ottawa. Além disso, em razão desse achado, eles recomendam que pediatras, pais, educadores e políticos promovam uma ‘limitação do tempo de tela recreativa e priorizem rotinas de sono saudáveis durante a infância e a adolescência'” [5].

Na mesma linha, a American Psychological Association (APA), no artigo “What do we really know about kids and screens?” já de 2020, diz:

A investigação, no entanto, revelou evidências que apoiam a limitação do tempo de tela para bebés e crianças pequenas. Um estudo longitudinal com 2.441 mães e crianças, liderado pela psicóloga Sheri Madigan, PhD, da Universidade de Calgary, descobriu que mais tempo por semana gasto em telas aos 24 e 36 meses de idade estava associado a um pior desempenho em testes de triagem comportamentais, cognitivas e sociais. desenvolvimento aos 36 meses (Jama Pediatrics , Vol. 173, No. 3, 2019 ). A associação oposta (desenvolvimento pior levando a mais tempo de tela) não foi observada, sugerindo que a ligação não era uma questão de os pais se apoiarem no tempo de tela para lidar com uma criança desafiadora. Em vez disso, o tempo excessivo de tela parecia preceder as dificuldades de desenvolvimento [6].

Obviamente, a análise não pode ser tão superficial e o artigo traz vários pontos que devem ser considerados, inclusive o pouco tempo de estudos para conclusões definitivas sobre esse tema.

A Sociedade Brasileira de Pediatria, por sua vez, em recomendação do mesmo ano (2020), apontou que excesso de tecnologia, ou mais especificamente, de telas para bebês, crianças e adolescentes pode culminar nos seguintes problemas: dependência digital e uso problemático das mídias interativas; problemas de saúde mental: irritabilidade, ansiedade e depressão; transtornos do déficit de atenção e hiperatividade; transtornos do sono; transtornos de alimentação: sobrepeso/obesidade e anorexia/bulimia; sedentarismo e falta da prática de exercícios; bullying & cyberbullying; transtornos da imagem corporal e da autoestima; riscos da sexualidade, nudez, sexting, sextorsão, abuso sexual, estupro virtual; comportamentos autolesivos, indução e riscos de suicídio; aumento da violência, abusos e fatalidades; problemas visuais, miopia e síndrome visual do computador; problemas auditivos e Pair (perda auditiva induzida pelo ruído); transtornos posturais e músculo-esqueléticos; uso de nicotina, vaping, bebidas alcoólicas, maconha, anabolizantes e outras drogas [7].

Não devem ser desconsiderados, ainda, os estudos nos Estados Unidos e na Europa que associam o aumento de caso de suicídios de jovens e adolescentes, principalmente do sexo feminino, ao surgimento e popularização das redes sociais.

Neste ponto do desenvolvimento de ideias ora proposto, já é possível perguntar: a) é saudável e adequado permitir que uma criança com menos de dois anos de idade permaneça mais de três horas diárias diante de uma tela de smartphone ou mídia similar? b) é saudável e adequado que uma criança com menos de dois anos idade tenha seu próprio dispositivo de mídia digital e possa fazer uso livre? c) não parece evidente que a exposição excessiva a cérebros de crianças de tenra idade, tenha potencial para gerar alterações danosas ao desenvolvimento cognitivo? d) será possível atribuir essa responsabilidade exclusivamente aos pais das crianças, sendo que diversos dos produtos de mídia são desenvolvidos especificamente para esse público infantil, como jogos, desenhos e outros softwares de interação?

A partir das respostas a esses questionamentos e outros, deve-se pensar na possibilidade de adoção de providências preventivas e corretivas, inclusive por parte das instituições de Estado. Este é o tema que será tratado a seguir.

Ao que tudo indica, o uso inadequado dessas estratégias de mídia não está recebendo a atenção devida das instituições e órgãos responsáveis. Não há sequer uma campanha de esclarecimento da população ou o fornecimento de informações claras e adequadas a respeito dos potenciais danos causados, seja para usuários adultos, seja para os infantis.

A China, por exemplo, desde o ano de 2018 vem restringindo o acesso de crianças e adolescentes a jogos e redes sociais. O aplicativo TikTok somente pode ser usado por adolescentes de 12 a 16 anos de idade, pelo prazo máximo diário de 40 minutos, restrição essa viabilizada por um filtro do próprio aplicativo. No caso de jogos online, o usuário menor de idade, devidamente identificado, não poderá continuar jogando por período superior a 1h30 [8].

 Além disso, com base em estudos científicos de Universidades Chinesas e do apoio buscado através de uma consulta pública iniciada no mês de agosto de 2023, está sendo proposta a implementação de restrições de acesso à internet, escalonada por faixas etárias, com o objetivo de se evitar danos na formação das novas gerações.

Nos EUA, a preocupação com os impactos negativos das redes sociais sobre crianças e adolescentes está crescendo, inclusive com intervenção direta do poder público. Atualmente, dezenas de estados norte-americanos estão processando a Meta (dona do Facebook e do Instagram) por entenderem que suas plataformas de redes sociais prejudicam a saúde física e mental de crianças, jovens e adolescentes, induzindo-os conscientemente ao uso viciante de mídias sociais [9][10].

Na Finlândia, há muitos anos, educação digital é matéria lecionada nas escolas infantis [11].

Em termos práticos o que se percebe é que as Big Techs, que estão por trás dos aplicativos de redes sociais e dos ambientes hipersociais em geral, não sofrem quaisquer restrições no Brasil, não está sendo prestada informação clara e adequada sobre os riscos da utilização excessiva ou para crianças de tenra idade, tampouco atendidas outras prescrições previstas no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), como será visto mais detidamente a seguir.

Não podemos esquecer, neste momento, que o Código de Defesa do Consumidor é de 1990 e, portanto, não continha previsão expressa de sua aplicabilidade a ambientes virtuais ou hipersociais. Na realidade, não havia sequer internet disponível ao grande público brasileiro no ano de 1990.

Todavia, da leitura dos artigos 2º e 3º do Código Consumerista, resta evidente que o internauta é consumidor e que as Big Techs são fornecedoras de serviços e produtos, de modo que a aplicabilidade da Lei a esse tipo de relação jurídica é inequívoca.

Aliás, a questão da aplicabilidade há muito que foi submetida ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, que entendeu positivamente pela responsabilidade desses fornecedores no ambiente virtual [12], mesmo que o serviço seja grátis ao destinatário final, pois existe remuneração indireta por sua participação.

Desta forma, dispõem os artigos 6º, inciso III e 31 do CDC e artigo 1º, inciso I do Decreto 7.962/2013 que é obrigação do fornecedor prestar informações claras e adequadas ao consumidor, bem como no artigo 63 do CDC que omitir dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade e periculosidade de produtos ou serviços constitui crime contra as relações de consumo. Além disso, o artigo 68 da mesma lei prevê que também constitui crime contra as relações de consumo fazer publicidade que sabe ser prejudicial à saúde ou segurança do consumidor.

Diante da potencial nocividade de algumas das práticas abordadas nesse breve articulado, tem-se que o Estado não pode e não deve omitir-se no dever de obrigar os fornecedores a prestar informações claras e adequadas, bem como  a ressarcir e prover rede de apoio na hipótese de danos individuais ou difusos, sob pena de vulneração de princípios Constitucionais como o da Proteção da Dignidade da Pessoa Humana (artigo 1º, inciso III), o da Proteção do Consumidor (artigo 5º, inciso XXXII e artigo 170, inciso V) e também o Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente (artigo 227).

Cabe, portanto, ao Ministério Público e aos Órgãos de Defesa do Consumidor, uma atuação no sentido de serem realizados estudos visando impor aos aplicativos que fazem uso de estratégias potencialmente nocivas, a adoção de medidas concretas como a implementação de temporizadores de uso, filtros para crianças e adolescentes, acompanhamento contínuo dos pais na utilização dessas aplicações digitais, dentre outras medidas preventivas ou reparatórias administrativas ou judiciais.


[1] “O que realmente sabemos sobre crianças e telas?”


[1] Políticas de controle do tabaco reduziram o número de fumantes, mostram pesquisas recentes (fiocruz.br)

[2] Em 20 anos, leis antifumo reduziram o tabagismo no Brasil pela metade | CEPAD (ufes.br)

[3] Aplicativos de mídia social são “deliberadamente” viciantes para usuários – BBC News.

[4] Os gurus digitais criam os filhos sem telas | Noticias | EL PAÍS Brasil (elpais.com)

[5] Abusar das telas afeta a inteligência das crianças | Ciência | EL PAÍS Brasil (elpais.com)

[7] https://www.apa.org/monitor/2020/04/cover-kids-screens#:~:text=AAP%20calls%20for%20no%20screen,of%20screen%20time%20per%20day.

[8] https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbp-atualiza-recomendacoes-sobre-saude-de-criancas-e-adolescentes-na-era-digital/

[9] China propõe leis rígidas para tirar celular de crianças (uol.com.br)

[10] https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/10/24/mais-de-40-estados-nos-eua-processam-meta-por-prejudicar-a-saude-de-menores.ghtml

[11] https://www.theguardian.com/technology/2023/oct/24/instagram-lawsuit-meta-sued-teen-mental-health-us

[12] https://www.nytimes.com/2023/01/10/world/europe/finland-misinformation-classes.html

[13] STJ – REsp: 1316921 RJ 2011/0307909-6, relator: ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 26/06/2012, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: DJe 29/06/2012.

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