Território Aduaneiro

Punir, sim, com justiça e proporcionalidade

Autor

  • Fernando Pieri Leonardo

    é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

28 de novembro de 2023, 8h00

Caro(a) leitor(a), antes do tema de hoje, alguns importantes registros da última semana. Primeiro, a celebração das bodas de ametista da Receita Federal do Brasil, que completou, em 20 de novembro, 55 anos de criação [1]. No dia 23 de novembro, celebramos, por aqui, dois anos de publicações semanais da coluna Território Aduaneiro, tendo sido veiculado, na última terça-feira, o nosso centésimo artigo [2]. Inaugurada com o texto conjunto dos autores responsáveis pela coluna, à época, celebrávamos as bodas de ametista da “Lei Aduaneira” [3]. Passados dois anos, no último dia 18, o Decreto-lei no 37/66 já completou seus 57 anos e sem que isso reduza sua relevância, parece-nos que é mais do que necessário aprofundarmos os debates, plurais e legítimos, para a elaboração de um verdadeiro Código Aduaneiro, assim como o possuem os vizinhos do Mercosul [4]. Certamente, um texto de lei, formal e material, em matéria aduaneira, poderia reunir disposições relevantes, de forma sistematizada e organizada, facilitando a sua observância e aplicação. Além desses benefícios, com a sua edição, teríamos oportunidade de um glossário aduaneiro, de atualizar normas, corrigindo alguns pontos necessários e adequar nossa legislação aos tratados internacionais internalizados no Brasil, aos quais estamos plenamente vinculados [5].

Spacca

Dentre os temas que podem ser melhor e mais amplamente ajustados aos tratados internacionais e que se encontram em dissonância com eles, podemos citar as infrações e penalidades aduaneiras. O Decreto-lei no 37/66 é a matriz legal do sistema infracional aduaneiro. As normas sobre a matéria encontram-se no seu Título IV, dentre os artigos 94 a 117. Seu detalhamento sistematizado encontra-se no Regulamento Aduaneiro (RA), no Título VI, artigos 673 a 743. Há ainda vários artigos de leis esparsas sobre as infrações e penalidades aduaneiras, destacando-se os artigos 63 a 80 da Lei no 5.025/66 (infrações nas exportações), o artigo 23 do Decreto-lei no 1.455/76 (hipóteses de dano ao Erário puníveis com pena de perdimento de mercadorias), e os artigos 69 a 76, da Lei no 10.833/2003 (multas para as hipóteses que enuncia e um sistema gradativo de sanções administrativas aplicáveis a intervenientes).

O primeiro aspecto a ser observado é que, por mais tenha o DL no 37/66 sido atualizado por leis posteriores, o artigo 94 e seguintes não sofreram mudanças significativas que alterassem o modelo original. É, portanto, um sistema infracional do período da ditadura militar, pautado por um sistema repressivo despreocupado com direitos e garantias individuais. Essa realidade foi bem fundamentada no artigo escrito por Maurício Dalri Timm do Valle e Diogo Bianchi Fazolo. Do texto dos autores, colhemos: “o princípio da legalidade, foi deliberadamente afastado do sistema aduaneiro. Em seu lugar adotou-se o chamado princípio de autoridade, também referido como princípio de liderança” [6]. É o que se extrai do artigo 94, caput e parágrafo segundo, do DL no 37/66, base normativa para a verificação das infrações e aplicação das penalidades aduaneiras.

Esse modelo punitivo, consubstanciado especialmente no critério objetivo, tem sido afastado por inúmeras decisões judiciais que, no seu dever de aplicar a Constituição da República, têm anulado aplicações de penalidades aduaneiras por considerarem-nas inconstitucionais, ou ilegais, por não respeitarem a proporcionalidade e por não aferirem e considerarem a culpabilidade da conduta do interveniente. Nesse sentido, vale verificar sobre o tema diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça[7], do TRF [8] e do Carf [9]. Predominam, de forma bastante uníssona, nos julgamentos e votos, especialmente no Poder Judiciário, proferidos por Ministros e Desembargadores, o afastamento das penalidades quando se constata não ter havido dano ao erário, assim entendido o dano ao controle aduaneiro, não se ter deixado de recolher os tributos devidos, ficando evidenciada a vontade do interveniente de reparar o erro e contribuir com a fiscalização aduaneira, além de apresentar um histórico positivo e não se tratar de uma conduta recorrente. Nesse sentido, vale destacar a seguinte lição do ministro Luiz Roberto Barroso, do STF, aplicável à legislação aduaneira, mutatis mutantis: “(…) não se está aqui a tratar de direito penal, mas de todo modo estamos no âmbito do direito sancionador. Genericamente, sempre que o antecedente de uma norma for um comportamento reprovável e o consequente uma punição, é absolutamente indispensável fazer uma análise do elemento subjetivo da conduta[10].

Essa a lição também de doutrinadores pátrios [11], não obstante posicionamentos em sentido oposto [12]. Ocorre, contudo, que conduzir uma autuação dessa natureza a litígio, contestando-a na via administrativa e/ou judicial, manterá o crédito constituído em face do interveniente, ainda que com sua exigibilidade suspensa, por muitos anos, podendo-se dizer mais de 20 anos, para se chegar a uma solução definitiva, entre a tramitação na via administrativa e judicial. Essa realidade gera enormes custos para o país, assim como para as empresas que precisam manter os processos com o acompanhamento de profissionais qualificados e essas informações em suas circulares, seja perante acionistas no Brasil e/ou no exterior. Ao fim e ao cabo, o interveniente defende-se com confiança na Justiça, mas com um sentimento de injustiça e de sofrer um ônus desnecessário. Nada saudável para um projeto de parceria, de fomentar o ambiente de negócios, o comércio transfronteiriço legítimo. Mesmo porque, sabidamente, esses fatos, ainda que individuais, reverberam nas associações, sindicatos, entidades de classe, comissões e meios acadêmicos, propagando uma ideia de arbitrariedade, de força desproporcional aplicada indevidamente em face de algum interveniente. Outro ponto: a sistemática punitiva atual, por força das normas cinquentenárias vigentes, contribui para uma litigiosidade desnecessária na relação entre a aduana e o setor privado, certamente não desejada por nenhuma das partes.

Por essas razões, exclusivamente, já valeria a revisão do sistema infracional aduaneiro. Mas elas não são todas. Uma outra motivação é de ordem legal, consubstanciada nos tratados internacionais de facilitação comercial e de boas práticas aduaneiras que o Brasil assinou no exterior. Os tratados aos quais nos referimos são, por cronologia de internalização, o AFC, da OMC; a CQR, da OMA e o ATEC, firmado pelo Brasil com os EUA [13]. O país vem se esforçando para modernizar suas normas, seus procedimentos e a relação da Aduana com o Setor Privado e, notadamente nos últimos 15 anos, os avanços são inegáveis. Temos procedimentos e processos indiscutivelmente muito mais aprimorados e eficientes do que antes. É essencial, entretanto, que o tópico das infrações e penalidades seja priorizado e que sejam promovidas as alterações necessárias nos textos legais vigentes a fim de que os dispositivos pertinentes nos referidos tratados possam ser plenamente implementados e respeitados internamente.

Dentre tais dispositivos, há previsões quanto a pessoalidade da pena, culpabilidade da conduta, avaliação do princípio da proporcionalidade e da insignificância, necessidade de adoção de medidas para se evitar o estímulo à aplicação e a cobrança excessiva de penalidades, princípio da motivação da decisões, assegurando-se com isso o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório e denúncia espontânea. Vários dentre eles já são integralmente observados pelas normas vigentes. Veja-se, ad exemplum, a denúncia espontânea, preconizada pelo AFC/OMC (artigo 6.3.6) e pelo Atec (Anexo I, art. 15.7). Igualmente, a questão das decisões fundamentadas e o devido processo legal (AFC/OMC, art. 6.3.5 e Atec, Anexo I, art. 15.6). Não podemos dizer o mesmo em relação à culpabilidade e à proporcionalidade.

Os dispositivos 3.39 da CQR/OMA, 6.3.3 do AFC/OMC, assim como o 15.4 do ATEC, com respeito a opiniões contrárias[14], não só preconizam a proporcionalidade, como para chegar até ela, pugnam pela necessária avaliação da conduta do agente. Nas lições de Juan Cotter, “la premisa debe ser que no existe sanción sin culpa [15]. Não obstante a complexidade do tema, a leitura dos textos dos referido diplomas internacionais incorporados ao direito pátrio preconizam, a cada norma, a promoção de um comércio legítimo, o fortalecimento de parceria entre a Aduana e os intervenientes, a simplificação, a previsibilidade, a gestão dos riscos aduaneiros, premiando condutas sem, em nenhum momento, reduzir, ou alijar, do Estado o seu poder-dever de fiscalizar, acompanhar e promover o necessário e indisputável controle aduaneiro, que visa, em última análise, o interesse nacional [16].

O que se quer promover é o comércio transfronteiriço legítimo, com o cumprimento das normas aduaneiras, com o equilíbrio entre a fiscalização e a facilitação comercial. Se esse objetivo essencial for cumprido, ainda que ocorra uma infração formal, escusável e plenamente corrigível, sem dano ao controle aduaneiro, não devem ser aplicadas penalidades, no máximo, advertências. Configuram-se aí os erros menores, ou erros escusáveis, assim definidos pelo artigo 15.4, do Atec. Admitir-se a aplicação de uma multa sob critério objetivo, nesses casos, onera as atividades, preconizando uma aduana repressora e punitiva, ao invés de indutora e didática, como tem se revelado com grande sucesso em outros temas, como nos programas de compliance — OEA, PNMA e Remessa Conforme —, assim como no exercício do diálogo e da parceria na estruturação do Portal Único de Comércio Exterior e nos Colfacs.

Não basta, no caso, reconhecermos a complexidade da matéria e a necessidade de melhorar o sistema, se não iniciarmos ações concretas nesse sentido. Um ponto de partida poderia ser o próprio sub-sistema do artigo 76, da Lei no 10.833/03, que traz uma gradação nas sanções administrativas aplicáveis aos intervenientes, iniciando com advertência, depois a suspensão de direitos e até a cassação, levando-se em consideração vários critérios definidos no parágrafo 4º do mesmo artigo. Uma outra premissa seria reconhecer e conjugar o perfil dos intervenientes OEA e Remessa Conforme com essas necessárias e urgentes alterações. Esses já comprovaram sua boa-fé, investimentos e a escolha pelo cumprimento das normas aduaneiras. Nada mais razoável que lhes ser reconhecido direito à correção de eventuais indícios de infrações, antes de penalizá-los, por exemplo, com aplicação de multas. Induvidoso que estamos diante de uma necessária quebra de paradigma, assim como aquela iniciada em 2014 com o Programa OEA que, além de hodiernamente reconhecida e louvada como exitosa, inspira os programas Sintonia e Confia para os tributos internos. A sociedade brasileira não é a mesma daquela que existia em 1966, longe disso. Nesse percurso de 57 anos muitas coisas aconteceram e é necessário refletir isso nas normas relacionadas às infrações e penalidades aduaneiras.


[1] Por ocasião dessa importante data, merece aplausos a realização do I Congresso de Direito Tributário e Aduaneiro da Receita Federal do Brasil, promovido pela instituição e realizado na última semana, com a participação de representantes de diversos setores públicos e também do setor privado. Foi realizado em formato híbrido; presencialmente no Auditório do Conselho da Justiça Federal, em Brasília, e transmitido ao vivo, estando disponível, no canal do YouTube da Receita Federal ( link )

[2] De autoria de Fernanda Kotzias, sob o título: “Garantias no Comércio Exterior: há alternativas ao depósito em dinheiro?” Disponível em: link .

[3] De autoria de Rosaldo Trevisan, Liziane Meira, Fernanda Kotzias, Leonardo Branco e Fernando Pieri, disponível em: link

[4] Código Aduaneiro Argentino, Lei no 22.415/1981, Código Aduaneiro Uruguaio, Lei no 19.276/2014 e Código Aduaneiro Paraguaio, Lei no 2.422/2004.

[5] “Uma vez incorporados ao direito interno, os tratados passam a contar com força de lei ordinária federal, ressalvados os tratados que versam sobre direitos humanos, os quais passam a ter natureza supralegal ou até mesmo constitucional, caso observem o procedimento previsto no art. 5o, § 3o, da CF/88. Como tais, aos tratados se aplicam os mesmos critérios de solução de conflito de normas, como o da cronologia (norma posterior revoga a anterior) e da especialidade (norma especial prevalece sobre a genérica) (Precedentes: ADI no 1.480/DF-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 18/5/01; ARE no 766.618/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 25/5/17, DJe de 13/11/17).” ADC no 49/ DF, Relator Min. Dias Tofolli.

[6] FAZOLO, Diogo Bianchi; VALLE, Maurício Dalri Timm do. Reforma aduaneira no Brasil: necessidade de harmonização das normas de direito aduaneiro sancionador. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, ano 6, n. 11, p. 29-46. Assunción: 2018.

[7] REsp nº 1.142.402-SP; REsp nº 1.137.331-SP, AREsp nº 693.859-DF, REsp nº 1.307.212-BA; REsp nº 1.159.602-SP; REsp nº 1.141.162-SP; Ag nº 1.160.816-SP; REsp nº 577.056-AL.

[8] Apel. Cível no 0010441-84.2017.4.02.5001; Data: 11/05/2018 – TRF da 2ª R.,  6ª Turma Especializada, por unanimidade, Relator Desembargador Federal Reis Friede. Apel. Cível no 5016027-27.2015.4.04.7201/SC, Data: 23/08/2016, TRF da 4ª R., 2ªT, por unanimidade, Relatora Desembargadora Federal Cláudia Maria Dadico.

[9] Acórdão nº 3401-008.036; Proc. nº 11968.000225/2006-58. Acórdão nº 3003-000.583; Proc. nº 13895.000049/2006-81.

[10] Agravo Regimental no Agravo de Instrumento no 727.872/RS.

[11] SEHN, Solon. Comentário ao Regulamento Aduaneiro: Infrações e Penalidades. São Paulo: Aduaneiras, 2019, p. 38.

[12] FERNANDES, Rodrigo Mineiro. Introdução ao Direito Aduaneiro. São Paulo: Intelecto, 2018, p. 125-126.

[13] Sobre o tema escrevemos artigo publicado em obra coletiva: LEONARDO, Fernando Pieri. Direito Aduaneiro Sancionador à luz do AFC/OMC, da CQR/OMA e do ATEC, in PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves e REIS, Raquel Segalla, coord. Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 164-186.

[14] Arnaldo Diefenthaeler Dornelles, Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil e Conselheiro do CARF, tem posição divergente, em alguns pontos, quanto ao exposto. Participamos em conjunto de painel  sobre o tema no I Congresso de Direito Tributário e Aduaneiro da RFB. As apresentações estão disponíveis a partir de 6h e 39min no vídeo disponível no youtube da RFB (link)

[15] COTTER, Juan Patrício. La responsabilidade en matéria infraccional. CARRERO, Gérman Pardo, Director. Derecho Aduanero – Tomo II. Bogotá: Tirant lo Blanch, 2020, p. 773.

[16] Sobre controle aduaneiro não como um fim em si mesmo, mas como instrumento para atingir o interesse nacional: BATISTA JUNIOR, Onofre Alves e FLORIANO, Daniela. Reflexões sobre autonomia do Direito Aduaneiro e seus princípios informadores. In: BATISTA JUNIOR, Onofre Alves e SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Aduaneiro e Direito Tributário Aduaneiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022, p. 17-58.

Autores

  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

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