Punir, sim, com justiça e proporcionalidade
28 de novembro de 2023, 8h00
Caro(a) leitor(a), antes do tema de hoje, alguns importantes registros da última semana. Primeiro, a celebração das bodas de ametista da Receita Federal do Brasil, que completou, em 20 de novembro, 55 anos de criação [1]. No dia 23 de novembro, celebramos, por aqui, dois anos de publicações semanais da coluna Território Aduaneiro, tendo sido veiculado, na última terça-feira, o nosso centésimo artigo [2]. Inaugurada com o texto conjunto dos autores responsáveis pela coluna, à época, celebrávamos as bodas de ametista da “Lei Aduaneira” [3]. Passados dois anos, no último dia 18, o Decreto-lei no 37/66 já completou seus 57 anos e sem que isso reduza sua relevância, parece-nos que é mais do que necessário aprofundarmos os debates, plurais e legítimos, para a elaboração de um verdadeiro Código Aduaneiro, assim como o possuem os vizinhos do Mercosul [4]. Certamente, um texto de lei, formal e material, em matéria aduaneira, poderia reunir disposições relevantes, de forma sistematizada e organizada, facilitando a sua observância e aplicação. Além desses benefícios, com a sua edição, teríamos oportunidade de um glossário aduaneiro, de atualizar normas, corrigindo alguns pontos necessários e adequar nossa legislação aos tratados internacionais internalizados no Brasil, aos quais estamos plenamente vinculados [5].
Dentre os temas que podem ser melhor e mais amplamente ajustados aos tratados internacionais e que se encontram em dissonância com eles, podemos citar as infrações e penalidades aduaneiras. O Decreto-lei no 37/66 é a matriz legal do sistema infracional aduaneiro. As normas sobre a matéria encontram-se no seu Título IV, dentre os artigos 94 a 117. Seu detalhamento sistematizado encontra-se no Regulamento Aduaneiro (RA), no Título VI, artigos 673 a 743. Há ainda vários artigos de leis esparsas sobre as infrações e penalidades aduaneiras, destacando-se os artigos 63 a 80 da Lei no 5.025/66 (infrações nas exportações), o artigo 23 do Decreto-lei no 1.455/76 (hipóteses de dano ao Erário puníveis com pena de perdimento de mercadorias), e os artigos 69 a 76, da Lei no 10.833/2003 (multas para as hipóteses que enuncia e um sistema gradativo de sanções administrativas aplicáveis a intervenientes).
O primeiro aspecto a ser observado é que, por mais tenha o DL no 37/66 sido atualizado por leis posteriores, o artigo 94 e seguintes não sofreram mudanças significativas que alterassem o modelo original. É, portanto, um sistema infracional do período da ditadura militar, pautado por um sistema repressivo despreocupado com direitos e garantias individuais. Essa realidade foi bem fundamentada no artigo escrito por Maurício Dalri Timm do Valle e Diogo Bianchi Fazolo. Do texto dos autores, colhemos: “o princípio da legalidade, foi deliberadamente afastado do sistema aduaneiro. Em seu lugar adotou-se o chamado princípio de autoridade, também referido como princípio de liderança” [6]. É o que se extrai do artigo 94, caput e parágrafo segundo, do DL no 37/66, base normativa para a verificação das infrações e aplicação das penalidades aduaneiras.
Esse modelo punitivo, consubstanciado especialmente no critério objetivo, tem sido afastado por inúmeras decisões judiciais que, no seu dever de aplicar a Constituição da República, têm anulado aplicações de penalidades aduaneiras por considerarem-nas inconstitucionais, ou ilegais, por não respeitarem a proporcionalidade e por não aferirem e considerarem a culpabilidade da conduta do interveniente. Nesse sentido, vale verificar sobre o tema diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça[7], do TRF [8] e do Carf [9]. Predominam, de forma bastante uníssona, nos julgamentos e votos, especialmente no Poder Judiciário, proferidos por Ministros e Desembargadores, o afastamento das penalidades quando se constata não ter havido dano ao erário, assim entendido o dano ao controle aduaneiro, não se ter deixado de recolher os tributos devidos, ficando evidenciada a vontade do interveniente de reparar o erro e contribuir com a fiscalização aduaneira, além de apresentar um histórico positivo e não se tratar de uma conduta recorrente. Nesse sentido, vale destacar a seguinte lição do ministro Luiz Roberto Barroso, do STF, aplicável à legislação aduaneira, mutatis mutantis: “(…) não se está aqui a tratar de direito penal, mas de todo modo estamos no âmbito do direito sancionador. Genericamente, sempre que o antecedente de uma norma for um comportamento reprovável e o consequente uma punição, é absolutamente indispensável fazer uma análise do elemento subjetivo da conduta ” [10].
Essa a lição também de doutrinadores pátrios [11], não obstante posicionamentos em sentido oposto [12]. Ocorre, contudo, que conduzir uma autuação dessa natureza a litígio, contestando-a na via administrativa e/ou judicial, manterá o crédito constituído em face do interveniente, ainda que com sua exigibilidade suspensa, por muitos anos, podendo-se dizer mais de 20 anos, para se chegar a uma solução definitiva, entre a tramitação na via administrativa e judicial. Essa realidade gera enormes custos para o país, assim como para as empresas que precisam manter os processos com o acompanhamento de profissionais qualificados e essas informações em suas circulares, seja perante acionistas no Brasil e/ou no exterior. Ao fim e ao cabo, o interveniente defende-se com confiança na Justiça, mas com um sentimento de injustiça e de sofrer um ônus desnecessário. Nada saudável para um projeto de parceria, de fomentar o ambiente de negócios, o comércio transfronteiriço legítimo. Mesmo porque, sabidamente, esses fatos, ainda que individuais, reverberam nas associações, sindicatos, entidades de classe, comissões e meios acadêmicos, propagando uma ideia de arbitrariedade, de força desproporcional aplicada indevidamente em face de algum interveniente. Outro ponto: a sistemática punitiva atual, por força das normas cinquentenárias vigentes, contribui para uma litigiosidade desnecessária na relação entre a aduana e o setor privado, certamente não desejada por nenhuma das partes.
Por essas razões, exclusivamente, já valeria a revisão do sistema infracional aduaneiro. Mas elas não são todas. Uma outra motivação é de ordem legal, consubstanciada nos tratados internacionais de facilitação comercial e de boas práticas aduaneiras que o Brasil assinou no exterior. Os tratados aos quais nos referimos são, por cronologia de internalização, o AFC, da OMC; a CQR, da OMA e o ATEC, firmado pelo Brasil com os EUA [13]. O país vem se esforçando para modernizar suas normas, seus procedimentos e a relação da Aduana com o Setor Privado e, notadamente nos últimos 15 anos, os avanços são inegáveis. Temos procedimentos e processos indiscutivelmente muito mais aprimorados e eficientes do que antes. É essencial, entretanto, que o tópico das infrações e penalidades seja priorizado e que sejam promovidas as alterações necessárias nos textos legais vigentes a fim de que os dispositivos pertinentes nos referidos tratados possam ser plenamente implementados e respeitados internamente.
Dentre tais dispositivos, há previsões quanto a pessoalidade da pena, culpabilidade da conduta, avaliação do princípio da proporcionalidade e da insignificância, necessidade de adoção de medidas para se evitar o estímulo à aplicação e a cobrança excessiva de penalidades, princípio da motivação da decisões, assegurando-se com isso o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório e denúncia espontânea. Vários dentre eles já são integralmente observados pelas normas vigentes. Veja-se, ad exemplum, a denúncia espontânea, preconizada pelo AFC/OMC (artigo 6.3.6) e pelo Atec (Anexo I, art. 15.7). Igualmente, a questão das decisões fundamentadas e o devido processo legal (AFC/OMC, art. 6.3.5 e Atec, Anexo I, art. 15.6). Não podemos dizer o mesmo em relação à culpabilidade e à proporcionalidade.
Os dispositivos 3.39 da CQR/OMA, 6.3.3 do AFC/OMC, assim como o 15.4 do ATEC, com respeito a opiniões contrárias[14], não só preconizam a proporcionalidade, como para chegar até ela, pugnam pela necessária avaliação da conduta do agente. Nas lições de Juan Cotter, “la premisa debe ser que no existe sanción sin culpa [15]”. Não obstante a complexidade do tema, a leitura dos textos dos referido diplomas internacionais incorporados ao direito pátrio preconizam, a cada norma, a promoção de um comércio legítimo, o fortalecimento de parceria entre a Aduana e os intervenientes, a simplificação, a previsibilidade, a gestão dos riscos aduaneiros, premiando condutas sem, em nenhum momento, reduzir, ou alijar, do Estado o seu poder-dever de fiscalizar, acompanhar e promover o necessário e indisputável controle aduaneiro, que visa, em última análise, o interesse nacional [16].
O que se quer promover é o comércio transfronteiriço legítimo, com o cumprimento das normas aduaneiras, com o equilíbrio entre a fiscalização e a facilitação comercial. Se esse objetivo essencial for cumprido, ainda que ocorra uma infração formal, escusável e plenamente corrigível, sem dano ao controle aduaneiro, não devem ser aplicadas penalidades, no máximo, advertências. Configuram-se aí os erros menores, ou erros escusáveis, assim definidos pelo artigo 15.4, do Atec. Admitir-se a aplicação de uma multa sob critério objetivo, nesses casos, onera as atividades, preconizando uma aduana repressora e punitiva, ao invés de indutora e didática, como tem se revelado com grande sucesso em outros temas, como nos programas de compliance — OEA, PNMA e Remessa Conforme —, assim como no exercício do diálogo e da parceria na estruturação do Portal Único de Comércio Exterior e nos Colfacs.
Não basta, no caso, reconhecermos a complexidade da matéria e a necessidade de melhorar o sistema, se não iniciarmos ações concretas nesse sentido. Um ponto de partida poderia ser o próprio sub-sistema do artigo 76, da Lei no 10.833/03, que traz uma gradação nas sanções administrativas aplicáveis aos intervenientes, iniciando com advertência, depois a suspensão de direitos e até a cassação, levando-se em consideração vários critérios definidos no parágrafo 4º do mesmo artigo. Uma outra premissa seria reconhecer e conjugar o perfil dos intervenientes OEA e Remessa Conforme com essas necessárias e urgentes alterações. Esses já comprovaram sua boa-fé, investimentos e a escolha pelo cumprimento das normas aduaneiras. Nada mais razoável que lhes ser reconhecido direito à correção de eventuais indícios de infrações, antes de penalizá-los, por exemplo, com aplicação de multas. Induvidoso que estamos diante de uma necessária quebra de paradigma, assim como aquela iniciada em 2014 com o Programa OEA que, além de hodiernamente reconhecida e louvada como exitosa, inspira os programas Sintonia e Confia para os tributos internos. A sociedade brasileira não é a mesma daquela que existia em 1966, longe disso. Nesse percurso de 57 anos muitas coisas aconteceram e é necessário refletir isso nas normas relacionadas às infrações e penalidades aduaneiras.
[1] Por ocasião dessa importante data, merece aplausos a realização do I Congresso de Direito Tributário e Aduaneiro da Receita Federal do Brasil, promovido pela instituição e realizado na última semana, com a participação de representantes de diversos setores públicos e também do setor privado. Foi realizado em formato híbrido; presencialmente no Auditório do Conselho da Justiça Federal, em Brasília, e transmitido ao vivo, estando disponível, no canal do YouTube da Receita Federal ( link )
[2] De autoria de Fernanda Kotzias, sob o título: “Garantias no Comércio Exterior: há alternativas ao depósito em dinheiro?” Disponível em: link .
[3] De autoria de Rosaldo Trevisan, Liziane Meira, Fernanda Kotzias, Leonardo Branco e Fernando Pieri, disponível em: link
[4] Código Aduaneiro Argentino, Lei no 22.415/1981, Código Aduaneiro Uruguaio, Lei no 19.276/2014 e Código Aduaneiro Paraguaio, Lei no 2.422/2004.
[5] “Uma vez incorporados ao direito interno, os tratados passam a contar com força de lei ordinária federal, ressalvados os tratados que versam sobre direitos humanos, os quais passam a ter natureza supralegal ou até mesmo constitucional, caso observem o procedimento previsto no art. 5o, § 3o, da CF/88. Como tais, aos tratados se aplicam os mesmos critérios de solução de conflito de normas, como o da cronologia (norma posterior revoga a anterior) e da especialidade (norma especial prevalece sobre a genérica) (Precedentes: ADI no 1.480/DF-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 18/5/01; ARE no 766.618/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 25/5/17, DJe de 13/11/17).” ADC no 49/ DF, Relator Min. Dias Tofolli.
[6] FAZOLO, Diogo Bianchi; VALLE, Maurício Dalri Timm do. Reforma aduaneira no Brasil: necessidade de harmonização das normas de direito aduaneiro sancionador. Revista de la Secretaría del Tribunal Permanente de Revisión, ano 6, n. 11, p. 29-46. Assunción: 2018.
[7] REsp nº 1.142.402-SP; REsp nº 1.137.331-SP, AREsp nº 693.859-DF, REsp nº 1.307.212-BA; REsp nº 1.159.602-SP; REsp nº 1.141.162-SP; Ag nº 1.160.816-SP; REsp nº 577.056-AL.
[8] Apel. Cível no 0010441-84.2017.4.02.5001; Data: 11/05/2018 – TRF da 2ª R., 6ª Turma Especializada, por unanimidade, Relator Desembargador Federal Reis Friede. Apel. Cível no 5016027-27.2015.4.04.7201/SC, Data: 23/08/2016, TRF da 4ª R., 2ªT, por unanimidade, Relatora Desembargadora Federal Cláudia Maria Dadico.
[9] Acórdão nº 3401-008.036; Proc. nº 11968.000225/2006-58. Acórdão nº 3003-000.583; Proc. nº 13895.000049/2006-81.
[10] Agravo Regimental no Agravo de Instrumento no 727.872/RS.
[11] SEHN, Solon. Comentário ao Regulamento Aduaneiro: Infrações e Penalidades. São Paulo: Aduaneiras, 2019, p. 38.
[12] FERNANDES, Rodrigo Mineiro. Introdução ao Direito Aduaneiro. São Paulo: Intelecto, 2018, p. 125-126.
[13] Sobre o tema escrevemos artigo publicado em obra coletiva: LEONARDO, Fernando Pieri. Direito Aduaneiro Sancionador à luz do AFC/OMC, da CQR/OMA e do ATEC, in PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves e REIS, Raquel Segalla, coord. Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 164-186.
[14] Arnaldo Diefenthaeler Dornelles, Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil e Conselheiro do CARF, tem posição divergente, em alguns pontos, quanto ao exposto. Participamos em conjunto de painel sobre o tema no I Congresso de Direito Tributário e Aduaneiro da RFB. As apresentações estão disponíveis a partir de 6h e 39min no vídeo disponível no youtube da RFB (link)
[15] COTTER, Juan Patrício. La responsabilidade en matéria infraccional. CARRERO, Gérman Pardo, Director. Derecho Aduanero – Tomo II. Bogotá: Tirant lo Blanch, 2020, p. 773.
[16] Sobre controle aduaneiro não como um fim em si mesmo, mas como instrumento para atingir o interesse nacional: BATISTA JUNIOR, Onofre Alves e FLORIANO, Daniela. Reflexões sobre autonomia do Direito Aduaneiro e seus princípios informadores. In: BATISTA JUNIOR, Onofre Alves e SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Aduaneiro e Direito Tributário Aduaneiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022, p. 17-58.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!