Opinião

STJ concede perdão ao devedor de débito prescrito

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27 de novembro de 2023, 12h24

Recente decisão proferida no Recurso Especial 2.088.100–SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), estabeleceu a impossibilidade de cobrança extrajudicial de dívida prescrita, em especial no que se refere à inclusão ou permanência do nome do devedor no “Serasa Limpa Nome” e impacto do débito prescrito no score do consumidor.

Ao decidir que “não é lícito ao credor efetuar qualquer cobrança extrajudicial da dívida prescrita seja por meio de telefonemas, e-mail, mensagens de texto de celular (SMS e Whatsapp), seja por meio da inscrição do nome do devedor em cadastro de inadimplentes com o consequente impacto no seu score de crédito” e que “eventual inclusão ou permanência do nome do devedor no ’Serasa Limpa Nome’, em razão de dívida prescrita, não pode acarretar — ainda que indiretamente — cobrança extrajudicial, tampouco impactar no score do consumidor”, o acórdão estabelece de maneira factual a extinção da dívida, pois impede atos não coercitivos de tentativa de reaver o débito e a defesa do sistema comercial de devedores contumazes, pois apaga o histórico de inadimplência perpetuado ao longo dos anos.

Assim, poderíamos dizer que a corte superior entendeu que a prescrição, por se dar em uma data comemorativa pela manutenção do débito sem pagamento, deveria condecorar o devedor com o perdão. Isto porque a prescrição em si não se trata, ou pelo menos não deveria se tratar de anistia ou extinção do crédito, mas apenas a perda do direito de ação do credor. Ou seja, o direito material é preservado, mas a pretensão se extingue. E aí começam os problemas, pois o cerne da questão reside na noção do que é pretensão e se a execução de atos extrajudiciais caracterizaria o seu exercício.

Vamos começar analisando os conceitos doutrinários de pretensão trazidos no próprio voto da relatoria:

“6. A pretensão é o poder de exigir um comportamento positivo ou negativo da outra parte da relação jurídica. Trata-se, a rigor, do chamado grau de exigibilidade do direito, nascendo, portanto, tão logo este se torne exigível (Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: eficácia jurídica, direitos e ações. Atual. por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. t. 5. p. 533).
7. O mestre italiano Giuseppe Lumia define a pretensão como o poder de, legitimamente, exigir do outro sujeito da relação jurídica o desempenho de um comportamento que lhe é próprio e específico. À pretensão de um sujeito ativo corresponde um dever de comportamento do sujeito passivo (LUMIA, Giuseppe. Lineamenti di teoria e ideologia del diritto. 3. ed. Milano: Giuffrè, p. 102-123).
8. Para Andreas von Tuhr a pretensão é a “faculdade de exigir a prestação do devedor (…) a pretensão nasce quando o titular pode exigir um fazer ou um não fazer do obrigado” (TUHR, Andreas von. Derecho Civil: teoria general del derecho civil aleman. v. 1. Buenos Aires: DEPALMA, 1946, p. 302 e 326).”

Notem a presença do verbo “exigir” nas três citações que fundamentam a decisão, sendo verdadeiro baldrame para o conceito de pretensão. Em resumo, a pretensão pode ser definida como o direito de se exigir algo.

Assim, temos que a pretensão tem um caráter de imposição ou coerção, o qual é restrito ao Estado através da jurisdição, poder/prerrogativa do Poder Judiciário de aplicar o direito utilizando a força para garantir a eficácia de suas decisões. Isso leva ao fato de que a pretensão se restringe à súplica pela atividade jurisdicional, não contemplando, assim, o exercício de atividades que fogem do campo da jurisdição, em especial o exercício de cobranças extrajudiciais e tentativas de negociação ou manutenção da informação da existência do débito.

Ao conceituar a prescrição, Maria Helena Diniz é assertiva ao relacionar pretensão com tutela jurisdicional [1]:

“A violação de direito subjetivo cria para o seu titular a pretensão, ou seja, o poder de fazer valer em juízo, por meio de uma ação (em sentido material), a prestação devida, o cumprimento da norma legal ou contratual infringida ou a reparação do mal causado, dentro de um prazo legal (arts. 205 e 206 do CC). O titular da pretensão jurídica terá prazo para propor ação, que se inicia (dies a quo) no momento em que sofrer a violação do seu direito subjetivo. Se o titular deixar escolar tal lapso temporal, sua inércia dará origem a uma sanção adveniente, que é a prescrição. Esta é uma pena ao negligente. É perda da ação, em sentido material, porque do direito é condição de tal pretensão à tutela jurisdicional.
(…)
A pretensão é, pois, o direito de exigir em juízo a obrigação do inadimplente, do dever legal ou contratual; junto com ela nasce a ação (em sentido material) para obter a prestação da tutela jurisdicional a que faz jus o titular do direito violado ou ameaçado (CG, art. 5º, XXXV).”

Fica claro que a prescrição fulmina tão somente a possibilidade de busca pelo provimento judicial e não a realização de atos outro visando a reparação do débito inadimplido.

Tanto é assim que o próprio STJ já se posicionou pela possibilidade de manutenção de atos extrajudiciais relativos aos débitos prescritos, veja-se:

“CIVIL. APELAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA. INEXIGIBILIDADE DE DÍVIDA. PRESCRIÇÃO. COBRANÇA EXTRAJUDICIAL. POSSIBILIDADE. 1. A despeito da divergência jurisprudencial sobre o tema, filio-me à corrente que considera que a prescrição não atinge o direito em si, mas apenas a proteção jurídica prevista para solucioná-lo, de acordo com o disposto no art. 882 do Código Civil: “não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita”. 2. Se a dívida existe, não desaparece a possibilidade de cobrança. A dívida prescrita pode ser cobrada. O devedor, se pagar, não tem direito à repetição de indébito. 3. Recurso não provido.” (Recurso Especial Nº 2.014.807-DF – ministro Raul Araújo – 30/11/2022) – (e-STJ, fl. 406).

Ou ainda:

“APELAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA. DÍVIDA. PRESCRIÇÃO. COBRANÇA EXTRAJUDICIAL. LEGITIMIDADE. DANO MORAL. INEXISTÊNCIA. HONORÁRIOS. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. SUCUMBÊNCIA. ÔNUS DO AUTOR. 1. Prescreve em 5 anos a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular (CCB, art. 206, § 5º, I). 2. A dívida prescrita pode ser cobrada extrajudicialmente. A obrigação não pode, contudo, ser exigida em juízo, em ação de execução, mas o objetivo de ações como esta, que se tornaram frequentes neste Tribunal, não equivale aos embargos à execução. 3. Trata-se de ação declaratória em que honorários de sucumbência se destacam como pleito derivado da causa, à qual se atribuiu o valor corrigido da obrigação. 4. Se o devedor quis o conforto pessoal de uma sentença declaratória para ver-se certo de que a obrigação inadimplida está prescrita, a sucumbência deve ser regida pelo princípio da causalidade, cabendo a ele, enquanto autor, o ônus desse encargo. 5. Ausente a comprovação de ato ilícito ou de abuso de direito, bem como de ofensa a direito da personalidade do autor, não há dano moral a ser indenizado. 6. Recurso conhecido e provido. (Acórdão 1378256, 07131065820208070020, Relator: MÁRIO-ZAM BELMIRO, Relator Designado: DIAULAS COSTA RIBEIRO 8ª Turma Cível, data de julgamento: 7/10/2021, publicado no DJE: 20/10/2021. Pág.: Sem Página Cadastrada)” (e-STJ, fls. 410/411, g.n)

Voltando ao Acórdão proferido no Recurso Especial 2.088.100–SP, temos que “4. Do ponto de vista de seu suporte fático, para a consumação da prescrição são imprescindíveis o decurso de determinado intervalo de tempo e a inércia do titular do direito subjetivo exigível”.

Ora, caso se entenda que atos extrajudiciais se tratam de exercício de pretensão, não haveria inércia quando da sua execução, ou seja, deveríamos considerar que as cobranças extrajudiciais interromperiam a prescrição. É evidente a contradição!

Ademais, a manutenção do entendimento exarado do Acórdão analisado nos traz questionamentos e consequências talvez indesejáveis.

Como citado alhures, o entendimento leva a extinção do direito pela prescrição, uma vez que qualquer medida para reaver o débito, ainda que não de maneira coercitiva, seria entendida como exercício de cobrança e consequente pretensão, até uma mensagem de e-mail perguntando se o devedor tem o interesse de pagar. Não seria possível sequer ao credor negar a concessão de novo crédito ao devedor inadimplente. A prescrição geraria o definitivo perdão do débito.

E mais. Score é um serviço que funciona como um vetor orientador para a análise dos consumidores requerentes de crédito.

Ao estender os efeitos da prescrição à impossibilidade de impacto no Score, o entendimento aqui estudado leva à censura de informações dentro de uma estrutura necessária à organização do sistema de concessão de crédito. É sabido que a atividade jurisdicional deve se inserir no contexto socioeconômico abrangido por ela e a impossibilidade de manutenção de um histórico de inadimplência contumaz é extremamente prejudicial à atividade econômica, em especial quanto à concessão de crédito ou fornecimento de serviços pós-pagos. A insegurança creditícia é evidente.

Ademais, é certo que nem todo descumprimento de obrigações, contratos etc., deve ser levado ao judiciário. O exercício de atos extrajudiciais é uma diligência adotada pelo credor para reaver o seu crédito, não havendo inércia, mas a opção por uma medida mais simples e menos custosa do que a propositura de demanda judicial em face do devedor. Entender que seria necessária a busca pela providência forense para se preservar o crédito geraria ainda mais demandas, ficando aí o questionamento: Se todos os débitos levados à negativação, por exemplo, fossem objeto de ações de cobrança ou execução, quão assoberbado ficaria o judiciário?

É evidente que o credor deve respeitar os limites legais e éticos para não constranger ilegalmente ou ameaçar o devedor, esteja o crédito prescrito ou não. Mas a prescrição não impede que o credor cobre o devedor extrajudicialmente ou que o débito seja registrado nos órgãos de proteção ao crédito, afetando o seu Score.

Se analisarmos toda a circunstância não sob a ótica do credor, que tenta reaver o seu crédito, mas do devedor que deixou de pagar o débito, uma vez que o estado de inadimplência se mantém após a prescrição, impedir o constrangimento lícito seria sim um prêmio para o inadimplemento.

Em suma, a decisão do STJ que proibiu a cobrança extrajudicial de dívida prescrita é contrária aos princípios da autonomia da vontade, da boa-fé e da segurança jurídica. Além de violar o direito material dos credores, essa decisão também gera um incentivo à inadimplência. Por isso, é fundamental que as empresas que possam ser afetadas por esse entendimento busquem assessoria jurídica especializada para consultoria prévia à realização de atos de cobrança extrajudicial e defesa de seus interesses.


[1] Curso de direito civil brasileiro – volume 1 : teoria geral do direito civil / Maria Helena Diniz. 38, ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021., p 450 e 451.

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