Opinião

Aborto: um direito constitucional na França e um crime no Brasil?

Autor

  • Vanessa Alvarez

    é advogada especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional mestre em Direito Internacional titular de LLM em Direito Francês e Europeu ambos na na Universidade Paris 1 Panthéon - Sorbonne mestre em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutoranda em Direito Internacional Público na Faculdade de Direito de Lisboa.

13 de novembro de 2023, 6h00

Nos Estados Unidos, o precedente Roe vs. Wade de 1973 marcou o reconhecimento do direito à interrupção voluntária da gravidez. Entretanto, após a consolidação de uma Suprema Corte mais conservadora (formada pelas indicações do ex-presidente Donald Trump), em 24 de junho de 2022 a Suprema Corte estadunidense modificou o seu entendimento e vedou o procedimento em diversos estados, o que enterrou quase meio século de direito ao aborto nos EUA e colocou em risco a vida das mulheres mais pobres e pertencentes a grupos minoritários.

Histórico francês: de Beauvoir à Veil
No contexto francês, para a compreensão do tema é importante um breve histórico. Em 1920, a França vedava “toda a propaganda contra a contracepção ou a natalidade” e proibia os médicos de aconselharem as mulheres sobre contracepção. Em 1942, o aborto foi considerado um “crime contra o Estado”, punível com a pena de morte.

Contudo, os ventos começaram a mudar com a lei de 28 de dezembro de 1967 sobre o controle da natalidade, apresentada por Lucien Neuwirth, que estabeleceu o princípio do direito à contracepção e à informação.

Quanto ao aborto — conforme artigo que publiquei nesta Conjur em 31 de janeiro de 2023 — o debate público avançou consideravelmente apenas em 1971, graças ao manifesto “343” capitaneado pela advogada Gisèle Halimi, que encontrou o importante apoio de Simone Veil (em célebre discurso realizado perante a Assembleia Nacional francesa), então Ministra da Saúde no governo de Giscard d’Estaing.

Em 17 de janeiro de 1975 foi promulgada a “Loi Veil”, que inicialmente com vigência temporária e “experimental” de cinco anos, permitiu a interrupção voluntária da gravidez (IVG) até dez semanas. Posteriormente, em 31 de dezembro de 1979 o referido direito foi reconhecido de forma definitiva. Em 4 de julho de 2001 foi promulgada lei que alongou o período para doze semanas. Em 2022, na contramão da Suprema Corte Estadunidense, a lei promulgada em 2 de março estendeu o período de realização do aborto de doze para quatorze semanas [1].

Em 27 de junho de 2001 o Conselho Constitucional francês, após ser instado a se manifestar pela representação de sessenta senadores, decidiu que o alongamento do período para realizar o IVG não era contrário à Constituição francesa (Décision nº 2001-446 DC du 27 juin 2001 [2]). Posteriormente, em 16 de março de 2017 o Conselho Constitucional, através de uma questão prioritária de constitucionalidade – QPC, julgou conforme à Constituição o delito de obstrução ao procedimento da interrupção voluntária da gravidez (décision n˚ 2017-747 DC [3]).

Atualmente, o histórico do projeto de lei constitucional teve início com a retomada de medida apresentada por 114 senadores de cinco grupos políticos em 2 de setembro de 2022, com a finalidade de consagrar o direito fundamental ao aborto e à contracepção na Constituição francesa e protegê-lo juridicamente, impedindo qualquer obstáculo à sua implementação, notadamente, após a superação de Roe vs. Wade.

Proposition de loi constitutionnelle n˚ 815
A exposição de motivos do projeto de lei constitucional é impecável e se inicia com a lamentável e verdadeira contestação da existencialista francesa Simone de Beauvoir Rien n’est jamais définitivement acquis. Il suffira dune crise politique, économique ou religieuse pour que les droits des femmes soient remis en question. Votre vie durant, vous devrez rester vigilantes” [4].

O projeto de lei constitucional (proposition de loi constitutionnelle nº 815)  propôs, em primeiro plano, um texto mais completo e com adição ao artigo 66-2, in verbis:Artigo 66‑2. – Nul ne peut porter atteinte au droit à l’interruption volontaire de grossesse et à la contraception. La loi garantit à toute personne qui en fait la demande l’accès libre et effectif à ces droits” [5].

Posteriormente, o projeto de lei constitucional (proposition de loi constitutionnelle n˚ 815) foi retomado por diversos deputados franceses perante a Assembleia Nacional, dentre eles, Mathilde PANOT, André Chassaigne, Cyrielle Chatelain, Boris Vallaud, Pascale Martin, Nadège AbomangoliI, Laurent Alexandre, Gabriel Amard, Ségolène AMIOT, Farida Amrani [6]  em 7 de outubro de 2022 com a finalidade de consagrar na Constituição francesa o direito à interrupção voluntária da gravidez (PTV) e à contracepção para garantir o acesso efetivo e gratuito aos mesmos.

Em outubro 2022, em sessão pública, o Senado rejeitou o texto até à adoção pela Assembleia Nacional, em 24 de novembro, de um projeto de lei resultante de um acordo entre a LFI (La France insoumise) e a maioria governamental.

Posteriormente, em 1º de fevereiro, o Senado formulou finalmente o projeto de inclusão do aborto na Constituição em termos diferentes, substituindo o texto inicial da seguinte forma:La loi détermine les conditions dans lesquelles s’exerce la liberté de la femme de mettre fin à sa grossesse” [7]  A redação elaborada pelo Senado limita-se a uma referência à lei existente, eliminando também a noção de direito: “A lei determina as condições em que é exercida a liberdade da mulher de interromper a gravidez”.

Em 25 de janeiro de 2023 — inicialmente — a Comissão de Direito rejeitou a proposta de lei constitucional com o argumento de que a constitucionalização do aborto não era suscetível de garantir a sua eficácia, que exigiria medidas mais concretas e operacionais.

No entanto, nessa sessão o Senado acabou por adotar uma alteração de Philippe Bas, antigo adjunto de Simone Veil, que reescrevia o texto original da proposta de lei constitucional. Nos termos desta nova redação, que se tornou o artigo único do projeto de lei que altera o artigo 34º da Constituição, “a lei determina as condições em que é exercida a liberdade da mulher de interromper a gravidez”.

A proposta de lei constitucional prevê, assim, a inserção na Constituição de um novo artigo que estabelece que o direito ao aborto e à contracepção não pode ser violado e que a lei deve garantir o acesso livre e efetivo a estes direitos.

Neste contexto, em 29 de outubro de 2023 o Presidente francês Emmanuel Macron prometeu encampar o ideal de constitucionalização da interrupção voluntária da gravidez no artigo 34 da Constituição francesa de 1958, portanto, no bloco de constitucionalidade (Favoreu) com a apresentação da proposta ao Conselho de ministros para consagrar a “liberdade das mulheres de recorrerem ao aborto” na Constituição [8] até o dia 8 de março, data de homenagem nacional à Gisèle Halimi.

O projeto de lei constitucional a ser apresentado por Macron retomará o projeto de lei aprovado pelo Senado a fim de facilitar e agilizar o trâmite da lei constitucional, já que desde a promulgação da Constituição, em 1958, nunca foi adotada qualquer lei constitucional proposta por um deputado, geralmente devido à falta de acordo entre a Assembleia Nacional e o Senado (por exemplo, responsabilidade penal do Presidente da República em 2001, direito de voto dos estrangeiros nas eleições autárquicas em 2000 e 2011, ratificação da Carta Europeia das Línguas Regionais ou Minoritárias em 2014).

Entretanto, como o projeto de lei constitucional não foi adotado nos mesmos termos pelas duas Casas, teria de voltar à Assembleia Nacional e depois ao Senado para uma segunda leitura, antes de ser submetido a um referendo pelo Presidente da República e depois aprovado pelo povo francês, de acordo com o procedimento de revisão definido no artigo 89º da Constituição francesa de 1958 [9].

Atualmente, em França, segundo pesquisa apresentada no projeto de lei constitucional [10], mais de 200.000 mulheres fazem um aborto todos os anos. Em média, uma em cada três mulheres fará um aborto durante a sua vida [11]. Nos departamentos e territórios ultramarinos franceses, a taxa de interrupção voluntária da gravidez é ainda mais elevada — 25,2 por mil — do que na França continental, onde é de 13,9 por mil. Trata-se de um procedimento médico que faz parte da vida das mulheres.

O aborto no Brasil e a ADPF 442
Segundo dados extraídos do portal da Câmara dos Deputados [12], no Brasil, cerca de 800 mil mulheres praticam abortos todos os anos. Destas, 200 mil mulheres recorrem aoSistema Único de Saúde (SUS) para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a situação pode ser ainda mais alarmante: o número de abortos pode ultrapassar um milhão de mulheres.

O aborto é o quinto maior causador de mortes maternas no Brasil. Segundo um estudo publicado em 2013, uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida. Hoje existem 37 milhões de mulheres nessa faixa etária, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dessa forma, estima-se que 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto. Ainda, as mulheres pardas têm mais que o dobro do risco de morrer do que as mulheres brancas, outra lamentável faceta do racismo estrutural.

Atualmente, o Supremo Tribunal Constitucional analisa o tema na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e o Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero (Anis) contra as disposições dos artigos 124 e 126 do Código Penal.

Hodiernamente, é imperativo que o Brasil realmente respeite e cumpra o que assinou nos tratados internacionais de direitos humanos, notadamente, na Declaração de Direitos Humanos de 1948, na Convenção Interamamericana de Direitos Humanos, na Convenção de Belém do Pará, além das recomendações do Comitê de Direitos Humanos da ONU ­(que recomendou a ampliação das hipóteses de aborto legal) e das normas da Organização Mundial da Saúde.

Nos termos do princípio da proporcionalidade, no que se refere ao sopesamento de direitos fundamentais em conflito  direito à vida do feto e o direito à dignidade da mulher  não parece ser adequado, nem proporcional que milhares de mulheres brasileiras continuem a sofrer as sequelas de interrupções voluntárias clandestinas e que ainda sejam tratadas como criminosas por um sistema jurídico que, ao contrário, deveria espelhar e reverberar a sociedade, sob pena de perda de sua legitimidade.

Peter Häberle nos recorda em seu culturalismo que a Constituição não se limita a ser um conjunto de textos jurídicos ou um mero compêndio de regras normativas, mas é antes a expressão de um certo grau de desenvolvimento cultural, um modo de autorrepresentação próprio de um povo, espelho do seu legado cultural e fundamento da sua esperança e desejos (Häberle [13]). A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição se transforma no tempo e espaço hodiernos o que resulta na relatividade de conteúdos dos textos normativos, conforme os precedentes estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 3.510 e na ADPF nº 54.

Assim, espera-se que o supremo guardião da Constituição, neste sistema brasileiro híbrido de “common law mélangé au romano-germanique” através de um verdadeiro constitucionalismo culturalista nos moldes de Häberle nos retire da Idade das Trevas com a adoção de uma real sociedade aberta  também das intérpretes da Constituição  as mulheres tão esquecidas pela fria racionalidade positivista e dogmática de um Código Penal ditatorial de 1940.

 

[1] Chronologie de l’accès à la contraception et à l’IVG. https://ivg.gouv.fr/le-droit-lavortement.

[4] Em tradução livre: “Nada pode ser compreendido como adquirido. Basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam postos em causa. Ao longo da vossa vida, devem permanecer vigilantes”.

[5] Em tradução livre: “Artigo 66-2. – Ninguém pode violar o direito à interrupção voluntária da gravidez e à contraceção. A lei garante a todas as pessoas que o solicitem o acesso livre e efetivo a estes direitos”.

[6] Lista completa dos deputados: présentée par Mesdames et Messieurs

Mathilde PANOT, André CHASSAIGNE, Cyrielle CHATELAIN, Boris VALLAUD, Pascale MARTIN, Nadège ABOMANGOLI, Laurent ALEXANDRE, Gabriel AMARD, Ségolène AMIOT, Farida AMRANI, Rodrigo ARENAS, Christine ARRIGHI, Clémentine AUTAIN, Joël AVIRAGNET, Christian BAPTISTE, Delphine BATHO, Julien BAYOU, Marie-Noëlle BATTISTEL, Lisa BELLUCO, Karim BEN CHEIKH, Ugo BERNALICIS, Christophe BEX, Carlos Martens BILONGO, Manuel BOMPARD, Mickaël BOULOUX, Idir BOUMERTIT, Soumya BOUROUAHA, Louis BOYARD, Jean‑Louis BRICOUT, Moetai BROTHERSON, Philippe BRUN, Elie CALIFER, Aymeric CARON, Sylvain CARRIÈRE, Jean‑Victor CASTOR, Steve CHAILLOUX, Florian CHAUCHE, Sophia CHIKIROU, Hadrien CLOUET, Paul-André COLOMBANI, Éric COQUEREL, Alexis CORBIÈRE, Jean‑François COULOMME, Catherine COUTURIER, Hendrik DAVI, Alain DAVID, Arthur DELAPORTE, Stéphane DELAUTRETTE, Sébastien DELOGU, Pierre DHARRÉVILLE, Alma DUFOUR, Inaki ECHANIZ, Karen ERODI, Martine ETIENNE, Elsa FAUCILLON, Olivier FAURE, Emmanuel FERNANDES, Sylvie FERRER, Caroline FIAT, Charles FOURNIER, Perceval GAILLARD, Marie-Charlotte GARIN, Guillaume GAROT, Raquel GARRIDO, Jérôme GUEDJ, Clémence GUETTÉ, David GUIRAUD, Johnny HAJJAR, Mathilde HIGNET, Jérémie IORDANOFF, Chantal JOURDAN, Hubert JULIEN‑LAFERRIÈRE, Sébastien JUMEL, Marietta KARAMANLI, Emeline K/BIDI, Rachel KEKE, Fatiha KELOUA HACHI, Andy KERBRAT, Bastien LACHAUD, Julie LAERNOES, Maxime LAISNEY, Antoine LÉAUMENT, Karine LEBON, Arnaud LE GALL, Tematai LE GAYIC, Élise LEBOUCHER, Jean-Paul LECOQ, Charlotte LEDUC, Jérôme LEGAVRE, Sarah LEGRAIN, Murielle LEPVRAUD, Gérard LESEUL, Benjamin LUCAS, Frédéric MAILLOT, Élisa MARTIN, William MARTINET, Frédéric MATHIEU, Damien MAUDET, Marianne MAXIMI, Manon MEUNIER, Yannick MONNET, Marcellin NADEAU, Philippe NAILLET, Jean‑Philippe NILOR, Danièle OBONO, Nathalie OZIOL, Francesca PASQUINI, Stéphane PEU, Sébastien PEYTAVIE, Anna PIC, François PIQUEMAL, Christine PIRES BEAUNE, Marie POCHON, Thomas PORTES, Loïc PRUD’HOMME, Adrien QUATENNENS, Valérie RABAULT, Jean‑Hugues RATENON, Jean-Claude RAUX, Sandra REGOL, Davy RIMANE, Sébastien ROME, Fabien ROUSSEL, Claudia ROUAUX, Sandrine ROUSSEAU, François RUFFIN, Aurélien SAINTOUL, Michel SALA, Nicolas SANSU, Isabelle SANTIAGO, Eva SAS, Hervé SAULIGNAC, Sabrina SEBAIHI, Danielle SIMONNET, Ersilia SOUDAIS, Anne STAMBACH‑TERRENOIR, Aurélien TACHÉ, Sophie TAILLÉ‑POLIAN, Bénédicte TAURINE, Andrée TAURINYA, Matthias TAVEL, Jean-Marc TELLIER, Nicolas THIERRY, Mélanie THOMIN, Aurélie TROUVÉ, Cécile UNTERMAIER, Paul VANNIER, Roger VICOT, Léo WALTER, Jiovanny WILLIAM, Hubert WULFRANC.

[7] Em tradução livre: “A lei garante a efetividade e a igualdade de acesso ao direito à interrupção voluntária da gravidez”.

[9] ARTICLE 89. L’initiative de la révision de la Constitution appartient concurremment au Président de la République sur proposition du Premier ministre et aux membres du Parlement. Le projet ou la proposition de révision doit être examiné dans les conditions de délai fixées au troisième alinéa de l’article 42 et voté par les deux assemblées en termes identiques. La révision est définitive après avoir été approuvée par référendum. Toutefois, le projet de révision n’est pas présenté au référendum lorsque le Président de la République décide de le soumettre au Parlement convoqué en Congrès ; dans ce cas, le projet de révision n’est approuvé que s’il réunit la majorité des trois cinquièmes des suffrages exprimés. Le bureau du Congrès est celui de l’Assemblée nationale. Aucune procédure de révision ne peut être engagée ou poursuivie lorsqu’il est porté atteinte à l’intégrité du territoire.

La forme républicaine du Gouvernement ne peut faire l’objet d’une révision.

[13] Peter Häberle, “Teoria de la C. como C de la C”, p. 34.

Autores

  • é advogada do escritório Zanin Martins Advogados, especialista em Direitos Humanos e Direito Constitucional, mestre em Direito Internacional na Universidade Paris 1 Panthéon—Sorbonne e secretária-geral do Lawfare Institute.

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