Lavagem & Afins

Lavagem de dinheiro e sonegação (parte 2)

Autor

  • André Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor nos cursos stricto sensu (mestrado e doutorado) do IDP/Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

13 de novembro de 2023, 8h00

Continuação da parte 1

Volto a escrever sobre o tema da sonegação fiscal como delito prévio à lavagem de dinheiro, mas agora sob o prisma da omissão. Reconheço que a matéria é árida e com posições divergentes, porém serve para reflexão sobre a finalidade da lei de lavagem de capitais. Afinal, como discorro em linhas vindouras, a legislação não foi pensada para casos em que não há nova incorporação de valores ao patrimônio do agente, hipótese da modalidade omissiva.

​A Lei de Lavagem de Dinheiro após a modificação de 2012 — que exclui o rol taxativo dos crimes aptos à posterior lavagem de capitais — permite que qualquer infração penal antecedente possa configurar o delito de branqueamento. Assim, qualquer delito que gere bens, direito ou valores, poderá configurar a rubrica penal de lavagem, desde que o sujeito oculte ou dissimule a origem ou a natureza destes com a finalidade de dar aparência de licitude. Incluso o delito de sonegação fiscal, previsto na Lei 8.137/1990.

Uma questão prévia deve ser posta. O delito de sonegação fiscal terá sua punibilidade extinta desde que o sonegador pague o tributo devido. Porém, permanece a possibilidade de punição pelo delito posterior, a lavagem, em face da dicção do artigo 1º da Lei 9.613/98, que dispõe sobre sua autonomia e punição pelo delito previsto nesta lei ainda que isento de pena ou extinta a punibilidade do autor da infração penal antecedente.

Essa questão já é paradoxal por si só, mas por ora a deixaremos de lado. Apenas para reflexão: não se pode lavar algo que já foi pago, ou seja, que já não há como dar aparência de licitude a bens direitos valores que não são mais ilícitos em face de sua procedência. Isso porque o pagamento do tributo devido retira a suposta incorporação indevida pelo sujeito ativo do crime. Então, não se lavaria nada! Apenas para complementar essa discussão momentaneamente, leciona González Uriel que “se a figura do pagamento do tributo é concebida como causa de extinção de punibilidade (levantamento de pena na Espanha) , conduziria a situações incongruentes, posto que poderia ocorrer a situação paradoxal de que uma dívida tributária regularizada servisse de atividade delitiva prévia”  [1].

Como mencionei, essa discussão acima ficará para outro momento. O que me refiro agora é se de fato a sonegação fiscal pode ser crime antecedente ao de lavagem de dinheiro. Penso que não porque não há propriamente uma nova incorporação de bens aptos a serem lavados. O patrimônio do sujeito ou da empresa não é obtido de forma ilícita, este apenas permanece na empresa sem o recolhimento dos tributos devidos, não havendo acréscimo patrimonial.

Aliás, oportuno seria que todos lessem a exposição de motivos da Lei 9.613/98, que referia expressamente no seu item 34 o seguinte: “observe-se que a lavagem de dinheiro tem como característica a introdução, na economia, de bens direitos ou valores oriundos de atividade ilícita e que representaram, no momento de seu resultado, um aumento de patrimônio do agente. Por isso que o projeto não inclui, nos crimes antecedentes, aqueles delitos que não representam agregação, ao patrimônio do agente, de novos bens, direitos ou valores, como é o caso da sonegação fiscal”.

Como referi linhas acima e na esteira do projeto que originou a lei de lavagem, já havia essa preocupação do legislador em não tipificar como crime antecedente a sonegação fiscal, justamente por não ocorrer aumento de patrimônio ou agregação de novos valores aptos à lavagem de dinheiro, mas, somente a manutenção de patrimônio já existente.

Nesse sentido, novamente nos ensina González Uriel que a parte defraudada não pode ser entendida como objeto material do delito de lavagem de dinheiro. Em primeiro lugar, dita parte não tem sua origem nem procede de uma prévia atividade delitiva, não é um ganho derivado dela, tratando-se de uma poupança que pode ter múltiplas causas legítimas — rendimento de trabalho, de capital, aquisições de títulos lucrativos…, — sem prejuízo de que o agente não leve adiante o abono correspondente à Fazenda Pública. Ademais, a própria preexistência da parte tributária no patrimônio do sujeito dentro dos canais existentes econômicos lícitos, priva-lhe de sua condição de objeto suscetível de lavagem, afinal, não é preciso acudir ao crime que se trata para reintroduzi-la no ciclo econômico-financeiro de curso legal. Dessa maneira, a lavagem seria inidônea [2].

Em outras palavras: a sonegação carece de objeto idôneo para ser lavado, já que a parte ou cota tributária se encontra no patrimônio do fraudador e não precisa ser legitimada nem aflorada para ser introduzida no mercado econômico-legal, dado que nunca saiu deste [3].

Spacca

Compreendo que há entendimento diverso que aduz que a simples omissão já caracterizaria o delito contra a ordem tributária. Porém, em relação à lavagem de dinheiro, não há incorporação de novo patrimônio que possa ser introduzido no mercado financeiro com aparência de licitude. Os valores nunca saíram da empresa e não comportam uma nova incorporação de ativos, o que impossibilitaria o pretenso lavador de dar aparência de licitude a bens, direitos e valores que seguem no curso patrimonial do sujeito. Acredito que a lavagem requer a finalidade específica de possibilitar os valores oriundos da comissão de um delito no mercado financeiro, porém, desde que obtidos de forma ilegítima. Neste caso, sonegação fiscal, não ocorre propriamente a obtenção de valores, pois eles são preexistentes à lavagem.

Para essa conclusão deve-se recorrer a letra da lei que refere sobre a ocultação ou dissimulação de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal. Na sonegação fiscal não existe uma ocultação propriamente dita porque os valores sempre estiveram à vista da fiscalização. O que de fato ocorre é o não recolhimento destes valores, mas isso não significa a incidência nos termos dos verbos nucleares do tipo de lavagem [4]. De outro lado, salientamos que o objeto de proteção da norma não são os bens, direitos ou valores em si, senão a circulação destes no mercado, com aparência de licitude, fator que impacta negativamente no adequado funcionamento da economia em geral [5]. Assim, na sonegação fiscal não existe essa circulação de valores ilegítimos no mercado, frustrando a proteção da ordem econômica, posição que entendemos mais adequada quando se trata do bem jurídico da lavagem de capitais. Reconhecemos que pode ser um problema de arrecadação fiscal e de incorporação de valores aos cofres públicos, mas não um delito de lavagem.

Evidentemente que não desconheço que o Brasil é signatário de vários acordos internacionais para o combate à lavagem de dinheiro, mas isso não significa que deva punir todo e qualquer delito, principalmente os que não incorporam bens suficientemente aptos ao delito em comento. Por isso está na hora de refletirmos sobre a necessidade de uma reforma na lei 9.613. Há muito venho dizendo que houve uma banalização dos delitos de lavagem de dinheiro, quando estes deveriam ser deixados para infrações graves, ou, ao menos, as penas serem proporcionais à infração prévia cometida pelo agente. Fica o tema para reflexão.


[1] GONZÁLEZ URIEL, Daniel. Relaciones entre el delito de blanqueo de dinero y el delito de defraudación tributaria. Navarra: Aranzadi, 2022, p. 214.

[2] GONZÁLEZ URIEL, idem, p. 212.

[3] GONZÁLEZ URIEL, ibidem, p. 212.

[4] Ver a respeito CALLEGARI, André Luís; LINHARES, RAUL MARQUES. Lavagem de Dinheiro. 2ª. Edição. São Paulo: Marcial Pons, 2023, p. 144.

[5] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, RAUL MARQUES, ob. Cit, p. 145.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor de Direito Penal no IDP-Brasília e sócio do Callegari Advocacia Criminal.

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