Terceirização, lista suja e o combate ao trabalho análogo à escravidão
16 de março de 2023, 8h00
Após a enorme repercussão do resgate de dezenas de trabalhadores que se encontravam em situação análoga à escravidão nas vinícolas brasileiras, em Bento Gonçalves, e que desempenhavam as suas atividades por intermédio de serviços terceirizados, outros casos semelhantes passaram a ser noticiados pela imprensa.
Mais recentemente, aliás, 32 trabalhadores foram resgatados pelo MPT em condições análogas à escravidão, em uma fazenda no interior de São Paulo, envolvendo uma fornecedora do açúcar Caravelas [1] (leia aqui o outro lado da empresa). Já em Uruguaiana, a 630 quilômetros de Porto Alegre, ao menos 56 trabalhadores (incluindo menores de idade) foram resgatados em plantação de arroz, tendo em vista se encontrarem em condições precárias — sem comida, água, banheiro e local de descanso adequado [2].
Noutro giro, a empresa M. Officer foi condenada ao pagamento de uma indenização de R$ 100 mil, por danos extrapatrimoniais, em decorrência da jornada exaustiva e condições degradantes do ambiente laboral. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve a condenação arbitrada na Vara de origem, e que foi referenda pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região. O processo tramita desde o ano de 2014.
Aliás, quando do julgamento do recurso, a Corte Regional concluiu:
Por certo, esta temática, de suma importância, vem sendo debatida corriqueiramente, tanto que foi indicada novamente por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista Consultor Jurídico (ConJur) [4], razão pela qual agradecemos o contato.
Com efeito, ressurge neste atual contexto a discussão a respeito da precarização da mão de obra por intermédio do trabalho terceirizado que, hodiernamente, é plenamente admitida pelo Supremo Tribunal Federal.
Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a terceirização se reflete em um aumento da precarização das condições de trabalho [5], sendo essa a posição de parcela da doutrina aqui defendida por Amanda Eiras Testi [6]:
"Os simpatizantes à terceirização defendem o posicionamento de que se trata de uma técnica moderna, a qual preserva direitos trabalhistas, gera empregos, não precariza o trabalho e permite a concentração da empresa na atividade principal, trazendo uma dupla garantia aos trabalhadores. Mas a realidade é antagônica a esses fundamentos.
O atual modelo de terceirização é idêntico à intermediação de mão de obra existente no período da Revolução Industrial, período este em que os trabalhadores eram considerados como meras mercadorias, havia precariedade nas condições de trabalho e a saúde e segurança do trabalho eram inexistentes, caindo por terra a alegação de que tal instituto é uma modernização necessária
(…). A argumentação de que a terceirização gera empregos e não precariza o trabalho é frágil, haja vista que ela gera subempregos, em condições totalmente atentatórias à dignidade do trabalhador. Não basta que haja a instituição de novos empregos, mas que estes sejam dignos, propiciem condições dignas de trabalho e não insiram o trabalhador em condição de semiescravidão" (SOUTO MAIOR, 2015).
De mais a mais, os dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) indicam que o número de denúncias envolvendo o trabalho análogo à escravidão é o maior desde o ano de 2012 [7], sendo que, somente neste no ano de 2023, foram resgatadas 523 vítimas de acordo com as informações do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) [8].
Ainda, uma pesquisa divulgada no ano de 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que os empregados eram impedidos de sair de seu trabalho, em decorrência de dívidas com o empregador. Os débitos em questão estavam relacionados com alimentação, transporte, instrumentos de trabalho, aluguel, entre outros [9].
Entrementes, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) [10] veda e combate a prática de trabalho forçado, a servidão por dívida e as formas contemporâneas de escravidão, em observância aos princípios e direitos fundamentais do ser humano. Logo, impedir o direito de ir e vir do trabalhador, submetendo-o a condições precárias que afrontem a dignidade da pessoa humana, inclusive mediante vigilância ostensiva, sob ameaça, física ou psicológica, são formas de trabalho forçado e análogo ao de escravo.
Sob esta perspectiva, o artigo 1º da Portaria nº 1.293, de 28 de dezembro de 2017, do Ministério do Trabalho e Previdência [11], conceitua como condição análoga à de escravo aquela que o trabalhador for sujeitado, de forma isolada ou conjuntamente: I – Trabalho forçado; II – Jornada exaustiva; III – Condição degradante de trabalho; IV – Restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; V – Retenção no local de trabalho em razão de: a) Cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; b) Manutenção de vigilância ostensiva; c) Apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
É preciso lembrar que todo cidadão tem direito a uma vida digna, nela, incluindo, o trabalho em um meio ambiente laboral saudável. É dever de toda a sociedade combater e contribuir para a erradicação de condutas que contribuam para o trabalho em condições nocivas, principalmente, nos moldes da escravidão. É fundamental não só a punição aos infratores, mas também a criação de mecanismos e políticas que possibilitem a transparência e a informação, possibilitando, assim, que a população possa ter uma mudança de cultura, contribuindo para um desenvolvimento sustentável e uma nova educação.
Por isso que, tal como já foi escrito e publicado por estes articulistas subscritores desta coluna no artigo intitulado Os casos de trabalho análogo à escravidão em vinícolas brasileiras [12], é primordial a adoção pelas empresas das modernas políticas de compliance trabalhista [13] e de boas práticas de ESG [14]. Afinal, no atual estágio das relações sociais, eis o grande desafio do Direito do Trabalho apto a servir de efetivo instrumento à concretização da responsabilidade social empresarial.
E, tal como dito no início, finaliza-se este artigo ao menos com uma boa notícia: diante do impacto negativo das publicações envolvendo as vinícolas brasileiras, as cooperativas de vinho do Rio Grande do Sul propuseram uma reestruturação e modificação na contratação de mão de obra terceirizada, e, por conseguinte, na forma de trabalho desempenhada em toda a cadeia produtiva [15].
[1] Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/situacao-analoga-a-escravidao-trabalhadores-sao-resgatados-de-fornecedora-do-acucar-caravelas-2/. Acesso em 14.03.2023.
[2] Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2023/03/11/sem-aguam-comida-e-banheiro-56-trabalhadores-sao-resgatadas-em-plantacao-de-arroz-no-rs. Acesso em 14.03.2023.
[3] Disponível em http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/resumoForm.do?consulta=1&numeroInt=98034&anoInt=2021. Acesso em 14.03.2023.
[4] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.
[5] Disponível em https://www.dieese.org.br/notatecnica/2017/notaTec172Terceirizacao.pdf. Acesso em 14.03.2023.
[6] OTRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO DOS BOLIVIANOS NO BRASIL: UMA BREVE ANÁLISE ACERCA A AMPLIAÇÃO DA TERCEIRIZAÇÃO COMO FONTE DA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO APÓS A LEI 13.429/2017. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 65, n. 99, p. 165-190, jan./jun. 2019.
[7] Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/03/07/brasil-denuncias-de-trabalho-analogo-ao-escravo-mais-que-dobram-em-11-anos.htm. Acesso em 14.03.2023.
[8] Disponível em https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/03/somente-em-2023-523-vitimas-de-trabalho-analogo-a-escravidao-foram-resgatadas. Acesso em 14.03.2023.
[9] Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/divida-com-empregador-impede-15-milhao-de-trabalhadores-de-sair-do-emprego-diz-ibge.ghtml. Acesso em 14.03.2023.
[10] Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/WCMS_393058/lang–pt/index.htm. Acesso em 14.03.2023.
[11] Disponível em https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/1497798/do1-2017-12-29-portaria-n-1-293-de-28-de-dezembro-de-2017-1497794. Acesso em 14.03.2023.
[12] Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mar-02/pratica-trabalhista-casos-trabalho-analogo-escravidao-vinicolas-brasileiras. Acesso em 14.03.2023.
[13] Para melhor conhecimento e aprofundamento da temática, indicamos a leitura da obra "LGPD e Compliance Trabalhista (Editora Mizuno)", da qual o professor Ricardo Calcini é um dos organizadores. Disponível em https://www.editoramizuno.com.br/direito/trabalho-e-processo-do-trabalho.html. Acesso em 14.03.2023.
[14] Para melhor conhecimento e aprofundamento da temática, indicamos a leitura da obra ESG: A Referência da Responsabilidade Social Empresarial (Editora Mizuno), da qual o professor Ricardo Calcini é um dos organizadores. Disponível em: https://www.editoramizuno.com.br/livro-sobre-esg-e-responsabilidade-social-empresarial.html. Acesso em 14.03.2023.
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