Prática Trabalhista

Medidas atípicas executivas: bloqueio de apps de bancos, transporte e delivery

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

23 de fevereiro de 2023, 8h00

Recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade  (ADI) 5.941 [1]. O leading case abordou a validade do uso de medidas atípicas para a satisfação e garantia do pagamento do pagamento de dívidas, como a apreensão do passaporte ou carteira nacional de habilitação.

Nesse sentido, a ação pretendia discutir a inconstitucionalidade do artigo 139, IV, do Código de Processo Civil (CPC), que dispõe no sentido de que o juiz, ao dirigir o processo, ficará incumbido de "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária".

Ora, é indiscutível a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao processo do trabalho, sobretudo por proporcionar maior efetividade e elasticidade na execução trabalhista, de forma a conferir aos juízes maiores poderes na adoção de meios oportunos para o pagamento do débito.

E, nesse contexto, surgem algumas dúvidas e questionamentos: será que a partir da decisão da Suprema Corte qualquer modalidade de execução atípica poderá ser utilizada de forma indiscriminada? Em qual momento será possível valer-se dessas medidas atípicas? E, mais, além da apreensão da CNH ou passaporte, poderia o juiz ampliar os meios restritivos?

Spacca
A temática certamente é polêmica, e, por isso, exige maiores reflexões, tanto que foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista da revista Consultor Jurídico (ConJur) [2], razão pela qual agradecemos o contato.

Com efeito, a fase da execução trabalhista é, sem dúvidas, um dos grandes gargalos na tramitação do processo, de modo que a Justiça do Trabalho possui diversas ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial para localização de bens do executado [3]. E, mais, além de tais ferramentas, em observância à Resolução CSJT nº 305, de 24 de setembro de 2021 [4], pode a magistratura trabalhista se utilizar dos Núcleos de Pesquisa Patrimonial, que possibilitam também o rastreio do patrimônio dos devedores.

No mesmo diapasão, a Resolução nº 179, de 24 de fevereiro de 2017, dispõe sobre o funcionamento do laboratório de tecnologia para recuperação de ativos, combate à corrupção e lavagem de dinheiro (LAB-LD) no âmbito da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho (LAB-JT) [5].

Sob esta perspectiva, de se citar a festejada doutrina mais do que especializada representativa da clássica obra Execução Trabalhista na Prática, livro este hoje reputado o mais completo sobre o assunto:

"As ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial disponíveis à Justiça do Trabalho são instrumentos que visam conferir efetividade à execução trabalhista, tornando possível satisfazer o interesse creditório do exequente, entregando-lhe o bem da vida e fazendo valer a coisa julgada formada na sentença trabalhista.

Além disso, é por meio das ferramentas eletrônicas que se torna possível identificar e desconstruir o fenômeno da blindagem patrimonial, e consequentemente, restaurar a efetividade da jurisdição executiva com a adoção de medidas coativas sobre o patrimônio do devedor.

(…) O princípio da efetivação da decisão previsto no art. 139, inciso IV, do CPC, informa que o exercício da jurisdição não se exaure com a mera declaração do direito, sendo necessária a adoção de medidas típicas e atípicas de efetividade do título judicial exequendo, que se incluem as ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial" [6].

Se é verdade que o devedor tem o direito ao uso de medidas adequadas e proporcionais para o cumprimento da obrigação, de igual modo o credor, em se tratando de crédito de natureza alimentar, necessita que a obrigação seja satisfeita o mais breve possível. Afinal, de acordo com o relatório Justiça em Números, existem no Brasil quase 40 milhões de processos pendentes na fase executiva, sendo que o congestionamento durante essa fase processual é de 84% [7].

Bem por isso, com o objetivo de solucionar os processos que se encontram nesta fase processual, os Tribunais do Trabalho de todo o país promovem ano a ano a chamada Semana Nacional da Execução Trabalhista, em que o objetivo principal é a conciliação entre as partes [8]. No ano de 2022, por exemplo, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região homologou cerca de R$ 35 milhões de acordos, assim como arrecadou em leilões cerca de R$ 36 milhões, movimentando mais de R$ 70 milhões [9].

Do ponto de vista normativo, de um lado, o artigo 765 da Consolidação das Leis do Trabalho preceitua que "os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas"; lado outro, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXXVIII [10], assegura a razoável duração do processo e a celeridade em sua tramitação.

Neste cenário, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), antes do pronunciamento da Suprema Corte, já havia sido provocado a emitir um juízo de valor sobre o assunto. E na ocasião, segundo parcela da jurisprudência, o simples inadimplemento do devedor não era suficiente para assentir o uso de medidas atípicas calcadas no artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil [11], conforme se verifica da leitura do seguinte trecho de acórdão: "Contudo, a mera insolvência do devedor não basta para autorizar o uso de medidas atípicas de execução fundamentadas no art. 139, IV, do CPC de 2015. Sinalo que a jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que a adoção das medidas atípicas previstas no referido dispositivo legal exige a observância, pelo Magistrado, dos parâmetros necessários de adequação, razoabilidade e proporcionalidade da medida consistente na suspensão da CNH do devedor frente às causas que sustentam a insolvência do executado".

De outro norte, favorável ao uso das medidas atípicas, se posicionada outra corrente jurisprudencial do TST [12], destacando, num dos seus julgados, que "a determinação para suspender e recolher a Carteira Nacional de Habilitação — CNH no caso concreto não é abusiva, não fere nenhum direito líquido e certo do impetrante, ora recorrente, nem mesmo restringe o direito de ir e vir, tampouco o direito de ir e vir em veículo automotor, que permanecem assegurados".

Indiscutível que o posicionamento do STF, ao referendar a constitucionalidade do artigo 139, IV, do CPC, possibilitou uma maior eficácia ao cumprimento das decisões judiciais. Contudo, é preciso cautela para não haver afronta à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais. Isto porque os impactos decorrentes da suspensão da CNH, por exemplo, podem ser severos para o motorista profissional, em comparação ao indivíduo que não tenha esse trabalho como a sua principal fonte de sustento.

E diante desse juízo de ponderação, abre-se doravante o debate em se chancelar medidas atípicas de bloqueios de contas do devedor junto a empresas como Uber e 99, ao argumento de que sua locomoção não seria afetada em razão da possibilidade de utilização de transporte público? Ainda, seria razoável o bloqueio do cadastro do devedor junto aos aplicativos de delivery como iFood e Rappi, partindo-se da premissa de que o devedor não necessita de tais aplicativos para solicitar os seus pedidos, além do que tal fato não atenta contra as suas garantias e liberdades individuais? E, por fim, seria considerada uma medida abusiva a determinação para que o devedor não possa acessar o seu banco, por meio de aplicativo junto ao seu aparelho de telefone móvel, considerando a existência de outros meios de comunicação, como comparecimento na agência ou por chamada telefônica?

Em arremate, é certo que as medidas atípicas conferem amplos poderes aos magistrados no sentido de dar concretude às decisões judiciais, fazendo valer seus julgados na efetiva solução dos litígios. A aplicação de aludidas técnicas, porém, não devem ser representativas de excessos e de arbitrariedades judiciais, afinal, o ordenamento jurídico brasileiro resguarda e promove a dignidade da pessoa humana, cujas decisões devem ser sopesadas pelas regras de proporcionalidade e da razoabilidade.

 


[2] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[5] Disponível em https://www.tst.jus.br/web/corregedoria/lab-jt/atribuicoes. Acesso em 21.02.2023.

[6] GUIMARÃES, Rafael; CALCINI, Ricardo; JAMBERG, Richard Wilson. Execução Trabalhista na prática – Leme, SP: Mizuno, 2021. Página 653 e 654.

[10] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…). LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto "Prática Trabalhista" (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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