Medidas atípicas executivas: bloqueio de apps de bancos, transporte e delivery
23 de fevereiro de 2023, 8h00
Recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.941 [1]. O leading case abordou a validade do uso de medidas atípicas para a satisfação e garantia do pagamento do pagamento de dívidas, como a apreensão do passaporte ou carteira nacional de habilitação.
Nesse sentido, a ação pretendia discutir a inconstitucionalidade do artigo 139, IV, do Código de Processo Civil (CPC), que dispõe no sentido de que o juiz, ao dirigir o processo, ficará incumbido de "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária".
Ora, é indiscutível a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao processo do trabalho, sobretudo por proporcionar maior efetividade e elasticidade na execução trabalhista, de forma a conferir aos juízes maiores poderes na adoção de meios oportunos para o pagamento do débito.
E, nesse contexto, surgem algumas dúvidas e questionamentos: será que a partir da decisão da Suprema Corte qualquer modalidade de execução atípica poderá ser utilizada de forma indiscriminada? Em qual momento será possível valer-se dessas medidas atípicas? E, mais, além da apreensão da CNH ou passaporte, poderia o juiz ampliar os meios restritivos?
Com efeito, a fase da execução trabalhista é, sem dúvidas, um dos grandes gargalos na tramitação do processo, de modo que a Justiça do Trabalho possui diversas ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial para localização de bens do executado [3]. E, mais, além de tais ferramentas, em observância à Resolução CSJT nº 305, de 24 de setembro de 2021 [4], pode a magistratura trabalhista se utilizar dos Núcleos de Pesquisa Patrimonial, que possibilitam também o rastreio do patrimônio dos devedores.
No mesmo diapasão, a Resolução nº 179, de 24 de fevereiro de 2017, dispõe sobre o funcionamento do laboratório de tecnologia para recuperação de ativos, combate à corrupção e lavagem de dinheiro (LAB-LD) no âmbito da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho (LAB-JT) [5].
Sob esta perspectiva, de se citar a festejada doutrina mais do que especializada representativa da clássica obra Execução Trabalhista na Prática, livro este hoje reputado o mais completo sobre o assunto:
"As ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial disponíveis à Justiça do Trabalho são instrumentos que visam conferir efetividade à execução trabalhista, tornando possível satisfazer o interesse creditório do exequente, entregando-lhe o bem da vida e fazendo valer a coisa julgada formada na sentença trabalhista.
Além disso, é por meio das ferramentas eletrônicas que se torna possível identificar e desconstruir o fenômeno da blindagem patrimonial, e consequentemente, restaurar a efetividade da jurisdição executiva com a adoção de medidas coativas sobre o patrimônio do devedor.
(…) O princípio da efetivação da decisão previsto no art. 139, inciso IV, do CPC, informa que o exercício da jurisdição não se exaure com a mera declaração do direito, sendo necessária a adoção de medidas típicas e atípicas de efetividade do título judicial exequendo, que se incluem as ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial" [6].
Se é verdade que o devedor tem o direito ao uso de medidas adequadas e proporcionais para o cumprimento da obrigação, de igual modo o credor, em se tratando de crédito de natureza alimentar, necessita que a obrigação seja satisfeita o mais breve possível. Afinal, de acordo com o relatório Justiça em Números, existem no Brasil quase 40 milhões de processos pendentes na fase executiva, sendo que o congestionamento durante essa fase processual é de 84% [7].
Bem por isso, com o objetivo de solucionar os processos que se encontram nesta fase processual, os Tribunais do Trabalho de todo o país promovem ano a ano a chamada Semana Nacional da Execução Trabalhista, em que o objetivo principal é a conciliação entre as partes [8]. No ano de 2022, por exemplo, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região homologou cerca de R$ 35 milhões de acordos, assim como arrecadou em leilões cerca de R$ 36 milhões, movimentando mais de R$ 70 milhões [9].
Do ponto de vista normativo, de um lado, o artigo 765 da Consolidação das Leis do Trabalho preceitua que "os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas"; lado outro, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXXVIII [10], assegura a razoável duração do processo e a celeridade em sua tramitação.
Neste cenário, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), antes do pronunciamento da Suprema Corte, já havia sido provocado a emitir um juízo de valor sobre o assunto. E na ocasião, segundo parcela da jurisprudência, o simples inadimplemento do devedor não era suficiente para assentir o uso de medidas atípicas calcadas no artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil [11], conforme se verifica da leitura do seguinte trecho de acórdão: "Contudo, a mera insolvência do devedor não basta para autorizar o uso de medidas atípicas de execução fundamentadas no art. 139, IV, do CPC de 2015. Sinalo que a jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que a adoção das medidas atípicas previstas no referido dispositivo legal exige a observância, pelo Magistrado, dos parâmetros necessários de adequação, razoabilidade e proporcionalidade da medida consistente na suspensão da CNH do devedor frente às causas que sustentam a insolvência do executado".
De outro norte, favorável ao uso das medidas atípicas, se posicionada outra corrente jurisprudencial do TST [12], destacando, num dos seus julgados, que "a determinação para suspender e recolher a Carteira Nacional de Habilitação — CNH no caso concreto não é abusiva, não fere nenhum direito líquido e certo do impetrante, ora recorrente, nem mesmo restringe o direito de ir e vir, tampouco o direito de ir e vir em veículo automotor, que permanecem assegurados".
Indiscutível que o posicionamento do STF, ao referendar a constitucionalidade do artigo 139, IV, do CPC, possibilitou uma maior eficácia ao cumprimento das decisões judiciais. Contudo, é preciso cautela para não haver afronta à dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais. Isto porque os impactos decorrentes da suspensão da CNH, por exemplo, podem ser severos para o motorista profissional, em comparação ao indivíduo que não tenha esse trabalho como a sua principal fonte de sustento.
E diante desse juízo de ponderação, abre-se doravante o debate em se chancelar medidas atípicas de bloqueios de contas do devedor junto a empresas como Uber e 99, ao argumento de que sua locomoção não seria afetada em razão da possibilidade de utilização de transporte público? Ainda, seria razoável o bloqueio do cadastro do devedor junto aos aplicativos de delivery como iFood e Rappi, partindo-se da premissa de que o devedor não necessita de tais aplicativos para solicitar os seus pedidos, além do que tal fato não atenta contra as suas garantias e liberdades individuais? E, por fim, seria considerada uma medida abusiva a determinação para que o devedor não possa acessar o seu banco, por meio de aplicativo junto ao seu aparelho de telefone móvel, considerando a existência de outros meios de comunicação, como comparecimento na agência ou por chamada telefônica?
Em arremate, é certo que as medidas atípicas conferem amplos poderes aos magistrados no sentido de dar concretude às decisões judiciais, fazendo valer seus julgados na efetiva solução dos litígios. A aplicação de aludidas técnicas, porém, não devem ser representativas de excessos e de arbitrariedades judiciais, afinal, o ordenamento jurídico brasileiro resguarda e promove a dignidade da pessoa humana, cujas decisões devem ser sopesadas pelas regras de proporcionalidade e da razoabilidade.
[1] Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5458217. Acesso em 21.02.2023.
[2] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.
[3] Disponível em https://www.tst.jus.br/web/corregedoria/pesquisa-patrimonial. Acesso em 21.02.2023.
[4] Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/192772/2021_res0305_csjt.pdf?sequence=2&isAllowed=y. Acesso em 21.02.2023.
[5] Disponível em https://www.tst.jus.br/web/corregedoria/lab-jt/atribuicoes. Acesso em 21.02.2023.
[6] GUIMARÃES, Rafael; CALCINI, Ricardo; JAMBERG, Richard Wilson. Execução Trabalhista na prática – Leme, SP: Mizuno, 2021. Página 653 e 654.
[7] Disponível em https://www.cnj.jus.br/justica-4-0-nova-ferramenta-permite-identificar-ativos-e-patrimonios-em-segundos/. Acesso em 21.02.2023.
[8] Disponível em https://www.tst.jus.br/-/semana-nacional-da-execu%C3%A7%C3%A3o-trabalhista-ser%C3%A1-de-19-a-23-de-setembro. Acesso em 21.02.2023.
[9] Disponível em https://www.tst.jus.br/web/execucao-trabalhista/execucao/-/asset_publisher/N4xW/content/id/31191447?_com_liferay_asset_publisher_web_portlet_AssetPublisherPortlet_INSTANCE_N4xW_redirect=https%3A%2F%2Fwww.tst.jus.br%3A443%2Fweb%2Fexecucao-trabalhista%2Fexecucao%3Fp_p_id%3Dcom_liferay_asset_publisher_web_portlet_AssetPublisherPortlet_INSTANCE_N4xW%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26_com_liferay_asset_publisher_web_portlet_AssetPublisherPortlet_INSTANCE_N4xW_cur%3D0%26p_r_p_resetCur%3Dfalse%26_com_liferay_asset_publisher_web_portlet_AssetPublisherPortlet_INSTANCE_N4xW_assetEntryId%3D31191447. Acesso em 21.02.2023
[10] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…). LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
[11] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=10342&digitoTst=49&anoTst=2020&orgaoTst=5&tribunalTst=18&varaTst=0000&submit=Consultar. Acesso em 21.02.2023.
[12] Disponível em http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/resumoForm.do?consulta=1&numeroInt=98864&anoInt=2019. Acesso em 21.02.2023.
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