Prática Trabalhista

Os casos de trabalho análogo à escravidão em vinícolas brasileiras

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

2 de março de 2023, 8h00

Recentemente, um procedimento simultâneo realizado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério Público do Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal resultou no resgate de dezenas de trabalhadores que se encontravam em situação análoga à escravidão [1]. O caso ocorreu em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, de modo que por intermédio de serviços terceirizados uma empresa ofertava autêntica intermediação de mão de obra, de forma precária e degradante, para grandes vinícolas da região [2].

Os relatos dos trabalhadores resgatados são impactantes. Além de agressões físicas, verbais e ameaças informadas, ainda havia uma jornada exorbitante e trabalho forçado, assim como péssimas condições laborais [3]. Dentre as agressões sofridas, os trabalhadores narraram que sofriam espancamentos, choques elétricos, tiros de bala de borracha e ataques com spray de pimenta [4].

A temática, por certo, ganhou uma enorme repercussão no cenário brasileiro, tanto que foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista Consultor Jurídico (ConJur) [5], razão pela qual agradecemos o contato.

Com efeito, após todo o impacto eminentemente negativo do assunto e a veiculação da matéria em diversos meios de comunicação, os trabalhadores receberam parte de suas verbas rescisórias, além de ter sido negociado com o proprietário da empresa dita terceirizada um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para o recebimento integral das verbas devidas, sob pena de ajuizamento de uma ação civil pública por danos morais coletivos [6].

Spacca
Em nota, as vinícolas se manifestaram no sentido de que não compactuam e repudiam qualquer atividade considerada como análoga ao trabalho escravo e que esteja em desconformidade com os direitos humanos e trabalhistas [7]. Porém, a nota publicada na imprensa não afastará os efeitos nefastos à imagem e à reputação no próprio mercado nacional e internacional das empresas que possuem diversos rótulos premiados, como também não evitará futuros processos judiciais, multas e sanções administrativas, além de eventual inscrição na lista suja.

Além disso, há também sério risco judicial de as vinícolas serem responsabilizadas, solidária e/ou subsidiariamente, por todas as obrigações trabalhistas que forem reivindicadas na Justiça do Trabalho, denotando falhas no procedimento de gestão de contratos de terceiros, em total desacordo com as modernas políticas de compliance trabalhista [8] e de boas práticas de ESG [9]. Afinal, no atual estágio das relações sociais, eis o grande desafio do Direito do Trabalho apto a servir de efetivo instrumento à concretização da responsabilidade social empresarial.

Dito isso, segundo estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho, em parceria com a Organização Internacional para Migrações e a entidade de direitos humanos Walk Free, no ano de 2021 cerca de 50 milhões de pessoas viviam na chamada "escravidão moderna" [10]. Os dados revelam que, em comparação com a contagem no ano de 2016, o número de pessoas que se encontram em "escravidão moderna" aumentou para o patamar de 9,3 milhões, cujo maior grupo é constituído infelizmente por crianças [11].

No Brasil, a propósito, no ano de 2022 foram encontradas 2.575 pessoas em situação análoga à de escravidão, sendo o maior índice desde o ano de 2013 segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, de forma que o país atingiu mais de 60 mil resgatados [12].

Aliás, segundo as últimas pesquisas realizadas pelo Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, no período de 2003 a 2020 os setores da agropecuária, da construção civil e das carvoarias foram aqueles com maior incidência do trabalho análogo à escravidão [13].

A respeito da temática, oportunos são os ensinamentos do ex-presidente e ministro do TST, Emmanoel Pereira:

"É flagrante e persistente a injustiça racial que assola nossa sociedade. E seus diversos tentáculos também são evidentes nas relações de trabalho.

Daí a origem da resistente problemática que envolve o combate ao trabalho em condições análogas às de escravo no nosso país.

É necessário combater o problema, particularmente no que toca à certeza da impunidade dos que praticam abusos no intuito de alimentar a sede de dominação do homem pelo homem.

Aqueles que, por meio do poder econômico, querem subjugar os que dependem, exclusivamente, da força do seu próprio trabalho para sobreviver têm na impunidade o incentivo para a prática e para a continuidade de suas condutas abusivas.

É o retrato da escravidão moderna, que consegue ser tão desumana quanto a histórica.

Nos tempos atuais, não é apenas a ausência de liberdade que configura escravidão, mas, essencialmente, o desrespeito à dignidade do ser humano.

Ao negar-se dignidade ao trabalhador, submetendo-o a situações degradantes, incompatíveis com a condição humana, têm-se por violados seus direitos mais básicos, ao ponto de colocar em risco sua saúde, sua segurança e até mesmo sua vida" [14].

Aliás, a problemática do trabalho forçado é uma infeliz constatação de ordem global, atingindo todos os países do mundo, sendo que o maior número de vítimas se encontra na Ásia, África e América Latina, inobstante também aconteça no centro e sudeste da Europa, na Comunidade de Estados Independentes, Oriente Médio e União Europeia [15].

Do ponto de vista normativo no Brasil, o Código Penal em seu artigo 149 [16] considera crime e prevê a pena de reclusão no caso de submeter alguém a condição análoga à de escravo, sendo a pena aumentada se for cometido contra criança, adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Sob esta ótica, a Lei nº 12.064, de 29/10/2009 [17], instituiu o dia 28/1 como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.

Do ponto de vista internacional, a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho [18] preceitua em seu artigo 1 que "todos os Membros da Organização Internacional do Trabalho que ratificam a presente convenção se obrigam a suprimir o emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto prazo possível".

De igual modo, a Recomendação 203 [19] sobre Trabalho Forçado, o Protocolo de 2014 à Convenção do Trabalho Forçado [20] e a Convenção 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado [21], todos, sem exceção, são diretrizes normativas da Organização Internacional do Trabalho sobre a temática.

Segundo o Tribunal Superior do Trabalho, em notícia veiculada no dia 29/7/2022 [22], a Justiça do Trabalho, nos últimos cinco anos, julgou mais de 10 mil processos sobre este conteúdo, sendo que houve um aumento dos números nos anos de 2020 e 2021.

Aliás, num dos julgamentos o TST foi provocado a emitir um juízo de valor em um caso envolvendo a condenação de uma ex-professora e de suas duas filhas que submeteram uma empregada doméstica a condições degradantes de trabalho, análogas à escravidão, por 29 anos. Na ocasião, a 6ª Turma do TST manteve o valor da indenização arbitrada em 1 milhão de reais por danos morais [23]. Em seu voto, o ministro relator ponderou [24]:

"Com efeito, reitero constar, em síntese, que as reclamadas mantiveram uma criança em trabalho doméstico, privando-a de qualquer pagamento de salários dos 7 aos 18 anos de idade, privando-a de qualquer instrução acadêmica ou possibilidade de desenvolvimento psicossocial proporcionado pela frequência à escola, repita-se: a autoria nunca frequentou escola, cursos ou outra atividade similares. Sua vida dos 7 aos 36 aos de idade circunscreveu-se à casa e às atividades domésticas da família das demandadas. Consta, ainda, que após a anotação da CTPS da autora, ocorrida quando ela completou 18 anos em 1998, há prova documental de que no ano de 2001, por exemplo, de agosto a outubro, nenhuma paga em espécie, a título de salário, foi feita à autora.

Portanto, o valor da indenização deve atender aos danos que essas circunstâncias geraram e vão continuar a repercutir na vida da autora."

Em arremate, não se pode admitir que o trabalho humano seja considerado e transformado, única e exclusivamente, em uma mercadoria. Além de tal conduta ser considerada crime, o trabalho em condições de escravidão viola gravemente os direitos humanos, razão pela qual é dever de toda a sociedade combatê-lo, prestigiando o trabalho decente e a proteção dos direitos e garantias fundamentais do ser humano.

 


[5] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[8] Para melhor conhecimento e aprofundamento da temática, indicamos a leitura da obra “LGPD e Compliance Trabalhista (Editora Mizuno)”, da qual o professor Ricardo Calcini é um dos organizadores. Disponível em https://www.editoramizuno.com.br/direito/trabalho-e-processo-do-trabalho.html. Acesso em 28.02.2023.

[9] Para melhor conhecimento e aprofundamento da temática, indicamos a leitura da obra ESG: A Referência da Responsabilidade Social Empresarial (Editora Mizuno), da qual o professor Ricardo Calcini é um dos organizadores. Disponível em: https://www.editoramizuno.com.br/livro-sobre-esg-e-responsabilidade-social-empresarial.html. Acesso em 28.02.2023.

 

[14] TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL: VERGONHOSO PASSADO OU PESADELO PRESENTE? Rev. TST, São Paulo, vol. 88, no 2, abr/jun 2022. Página 28 e 29.

[16] Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Autores

  • é professor sócio consultor de Chiode e Minicucci Advogados | Littler Global. Parecerista e advogado na Área Empresarial Trabalhista Estratégica. Atuação especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Docente da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Ceilo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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