Prescrição intercorrente e aduana: uma réplica crítica e grata
8 de março de 2023, 8h00
Em nosso último artigo sobre prescrição intercorrente para multas aduaneiras, nos queixávamos sobre o "letárgico desinteresse para o debate" daqueles contrários à aplicação da Lei nº 9.873/99. Nesse contexto, foi com entusiasmo que lemos o artigo publicado por Rosaldo Trevisan, na coluna Território Aduaneiro, no dia 28/2/23, no qual aduz suas razões contrárias àquelas que temos defendido.
Karl Popper, em seu clássico Lógica da Pesquisa Científica, propõe ser a marca de uma teoria científica empírica a sua falseabilidade [1], isto é, a impossibilidade de sua verificação conclusiva somada à potencialidade de sua refutação futura. Sobre isso, Souto Maior Borges, no ensaio Apologia do Erro, afirma que as teorias buscam refúgio contra o erro numa espécie de idolatria, na exaltação do imobilismo intelectual, e afirma que "esse processo de imunização contra os riscos do erro atua como um antídoto contra a investigação profunda" que, em última análise, converge à negação da própria cientificidade [2].
Invertendo a ordem, essa breve consideração é endereçada à última provocação do artigo em questão: "Que evento misterioso de 2020 teria dado azo a eventual mudança de posicionamento[?]", que lograra "comover alguns julgadores e ex-julgadores do Carf que já haviam adotado posicionamento diverso, ainda que não tenha havido alteração legislativa"?
A resposta é simples: reflexão científica sobre do tema.
Pascal já dissera: "não me envergonho de mudar de opinião, porque não me envergonho de pensar". O imobilismo mental talvez seja um privilégio exclusivo dos supremos gênios e dos inabaláveis mentecaptos – felizmente não nos enquadramos em nenhum desses tipos infaustos.
As novas ideias não surgem no vácuo, mas são produto do homem e sua circunstância, parafraseando Ortega e Gasset.
Antes de provocarmos a reflexão ora criticada (aqui), havíamos tratado sobre o alcance direto e por remissão do Decreto nº 70.235/72, oportunidade esclarecemos que alguns processos administrativos aduaneiros, relativos à aplicação de multas dessa natureza, somente estavam sujeitos a esse rito por força de regras remissivas, como o artigo 23, §3º, do Decreto-lei nº 1.455/76 (aqui). Por outro lado, deparamo-nos com o contraste entre precedentes dos TRFs, declarando a prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/99 às multas aduaneiras, ao passo que o Carf sequer analisava a aplicação dela aos créditos não tributários, por força de uma aplicação mecânica da Súmula nº 11, cujos precedentes envolviam apenas créditos tributários. A diferença desses regimes jurídicos, per si, justifica o distinguishing na aplicação da súmula, proposto à época, para que se avançasse sobre a discussão técnica sobre a aplicabilidade da Lei nº 9.873/99 para créditos não tributários analisados pelo Carf.
Como se vê, não foi preciso um DeLorean, um ciborgue de outro tempo ou qualquer deus ex machina para que o problema fosse evidenciado. Bastou a disposição e a postura de abertura mental a novas reflexões científicas, a partir de ponderações pretéritas ou paralelas.
Aliás, tampouco é necessária alteração legislativa para se que se possa refletir sobre os sentidos atribuídos aos textos legais. O Direito é rico em casos nos quais o dispositivo seguia idêntico, mas alterou-se a norma construída a partir dele. A distinção entre texto e norma é tão cediça que dispensa elaborações adicionais.
Mas vamos ao ponto central do artigo. O autor afirma que a MP nº 1.859-17/99 alterou o artigo 5º, para afastar a aplicação da Lei nº 9.873/99 aos "processos e procedimentos de natureza tributária". E concluiu que tal restrição seria em função da "natureza do processo ou procedimento", e que o "rito processual previsto no Decreto 70.235/1972, no entanto, é 'de natureza tributária', envolvendo inclusive institutos previstos na legislação tributária". Em suma, no seu entender, qualquer matéria submetida ao rito do Decreto nº 70.235/72 se tornaria "processo tributário".
Há nessa conclusão três evidentes problemas a serem endereçados, sucessivamente.
O seu principal argumento parece ser quanto à restrição incluída no artigo 5º da lei ser decorrente da "natureza do processo ou procedimento". Com respeitosa vênia, trata-se de uma afirmação equivocada, e que ignora ou omite os fundamentos expressos que acompanharam a citada alteração.
Atendendo ao alvissareiro conselho do autor pela identificação da "origem das normas para buscar sua contextualização e sua compreensão teleológica/finalística ou sistêmica", verificamos a Mensagem nº 1.002 de 1999 [3], do ministro Pedro Malan. Nela se afirmou que a mudança se deu em razão da "ocorrência de determinações judiciais pelo arquivamento definitivo de processos de natureza tributária" por entenderem pela aplicabilidade da MP nº 1.859-16/99 a essa matéria.
Aduziu a exposição de motivos que "contudo, a matéria tributária, por determinação constitucional, deve ser tratada em sede de lei complementar, não podendo ser atingida por disposições de lei ordinária", pugnando pelo estabelecimento da exceção a esse respeito. Ou seja, a redação do artigo 5º da Lei nº 9.873/99 decorreu do fato de a prescrição e decadência tributárias serem matérias privativas de lei complementar, tratadas no CTN, o que não se dá com as multas aduaneiras, o que foi ratificado no REsp nº 1.115.078/RS.
A exceção do artigo 5º absolutamente nada tem a ver com o processo ou procedimento em si, mas com o regime do direito material que está sendo discutido. E não poderia ser de outro jeito, pois tanto a prescrição intercorrente, como a prescrição e a decadência, são aspectos do direito material vindicado no processo, e não do rito processual ou procedimental (não é à toa que processualmente são questões preliminares de mérito — artigo 487, II do CPC —, com aptidão de gerar coisa julgada material).
Se hipoteticamente o Decreto nº 70.235/72 fosse revogado, e o PAF passasse a ser regido pela Lei nº 9.784/99, de caráter geral, duas conclusões são absolutamente pacíficas:
1) a aplicação da Lei nº 9.873/99 seguiria vedada aos créditos tributários, por não depender do procedimento, mas natureza da matéria analisada, sujeita a lei complementar; e
2) os demais processos de outras matérias, sujeitas ao mesmo rito da Lei nº 9.874/99, não se tornariam automaticamente "processos tributários", afastando-lhes eventual aplicabilidade da Lei nº 9.873/99.
Novamente, com a devida vênia e sob a lição de Scarpinella Bueno, a distinção entre diversos tipos de "processos" decorre dos distintos direitos materiais a serem aplicados por cada um, podendo haver desde uma diferenciação total de procedimentos (e.g. processo civil e penal), passando por uma coincidência parcial (e.g. processo civil e trabalhista), até uma coincidência total (e.g. processo civil e do consumidor) [4]. Aliás, desafio a demonstrarem uma situação na qual o regime jurídico do direito material vindicado seja determinado pelo seu rito processual, e não o contrário: o caráter unidirecional dessa influência decorre da própria noção de instrumentalidade do processo.
Ultima ratio, a posição do autor imporia a aplicação do CTN para qualquer matéria sujeita ao Decreto nº 70.235/72, já que, em seu entender, o rito procedimental supostamente determinaria o regime material (conflitando, e.g., com a Súmula Carf nº 184).
O Decreto nº 70.235/72 certamente regula diretamente processos de natureza tributária, conforme estabelece o seu artigo 1º. Disso não é possível se depreender que qualquer matéria sujeita ao rito desse Decreto passe a ter natureza de "processo tributário", o que implicaria reconhecer que a adoção do rito teria o condão de alterar o regime jurídico material do direito vindicado, o que não faz qualquer sentido lógico.
O Decreto-lei nº 1.455/76, no seu artigo 23, §3º, assim como as diversas regras de remissão legislativa existentes nessa matéria [5], estabelece que se observem "o rito e as competências estabelecidos no Decreto no 70.235". Em momento algum ele equipara a multa que estabelece a um crédito tributário, mas simplesmente determina que se siga o conjunto procedimental lá estabelecido, para a condução do processo dessa matéria aduaneira.
Ademais, o próprio Carf, na Portaria ME nº 260/2020, em seu artigo 3º, II, "c" [6] reconhecia a existência de outras "espécies de processos de competência do Carf", que não os tributários descritos no artigo 1º do Decreto nº 70.235/72.
Tampouco se pode concordar com o terceiro ponto, de que o Decreto nº 70.235/72 envolveria institutos da legislação tributária como a suspensão da exigibilidade do crédito, o caráter privativo do AFRFB para lançamento, e o julgamento em duplo grau.
Em relação ao primeiro item, esclareça-se que só há que se cogitar de prescrição intercorrente no PAF em razão da suspensão de exigibilidade da pretensão estatal, caso contrário estaria correndo o prazo prescricional. Em segundo lugar, a Lei nº 9.873/99, no seu artigo 1º-A, prescreve que o direito da administração de executar créditos não tributários só nasce com o encerramento do processo administrativo, do que se depreende a suspensão da sua exigibilidade no seu curso. É o que se dá em relação a diversas outras exigências decorrentes do poder de polícia da União e seus órgãos, como Aneel [7], Anatel [8], Anvisa [9], ANP[10] e Ibama.
Quanto ao caráter privativo da AFRFB para lançamento, verifica-se que a competência para multas aduaneiras e créditos tributários é comum à Receita Federal, mas que distinção entre as matérias é reconhecida estruturalmente no próprio artigo 1º da Lei nº 11.457/07, que estabelece que esse órgão "tem por finalidade a administração tributária e aduaneira da União", o que atrai a competência para lançamento de créditos dessas duas naturezas, por força do artigo 53 da Lei nº 4.320/64.
E, por fim, o duplo grau de jurisdição no PAF foi amplamente reconhecido pelo STF no precedente representativo da Súmula Vinculante nº 21 do STF (ADI 1.976 relator: ministro Joaquim Barbosa, P, j. 28/3/2007).
Qual seria a "incompatibilidade" desses institutos com a cobrança de multas aduaneiras? Não há.
O autor aduz também que o funcionamento do Conselho de Contribuintes denotaria uma "ausência de preocupação em relação à prevenção de eventual 'prescrição intercorrente'", e que em 1999 supostamente não haveria clareza na distinção entre processos tributários e aduaneiros, invocando a exposição de motivos do Decreto-lei nº 2.472/1988.
Sob renovadas vênias, isso não justificaria a inobservância pretérita da distinção entre créditos tributários e não tributários, traçada desde a Lei nº 4.320/64 (não obstante concordemos com o autor quanto a existência de hipóteses que possam ensejar controvérsia sobre a natureza da sanção), considerando que ninguém pode se escusar de cumprir a lei, alegando não a conhecer (artigo 3º da Lindb). Muito menos serviria esse argumento à deconsideração presente e futura da distinção, considerando a clareza e notoriedade que ostenta há algum tempo.
Em seguida, o autor traz um apanhado de precedentes do Carf que teriam supostamente rejeitado a aplicação da prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/99 a diversas multas aduaneiras (acórdãos nº 3403-001.655, 3802-001.731, 3403-002.746, 3102-002.348 etc.).
Mais uma vez, peço vênia para discordar diametralmente da leitura do autor dos referidos precedentes. Em todos os precedentes citados houve a aplicação direta e inconteste da súmula nº 11 do Carf, cujo emprego mecânico e acrítico a casos não contemplados pelos seus acórdãos paradigmas foi exatamente a razão da nossa crítica inicial.
Em nenhum dos casos de multas aduaneiras foi afastada a súmula nº 11, para que se discutisse a tipicidade entre elas e as hipóteses da Lei nº 9.873/99 (ainda que para rejeitá-la, eventualmente), razão pela qual não se pode dizer que a referida lei foi "rejeitada" materialmente pelo Carf, já que sequer chegou a ter a sua aplicação analisada.
Aliás, mesmo após as provocações feitas e toda a discussão sobre o tema, a questão segue sendo um tabu no âmbito do Carf, com um amplo e ostensivo desestímulo à sua discussão, apesar das diversas razões apresentadas para que ela seja repensada. Não obstante, não tenho dúvidas de que a percepção geral é de que a complexidade da discussão é muito maior do que se imaginava originalmente, não se esgotando na aplicação automática da súmula.
A pergunta que sempre nos fizemos foi: de onde vem tamanho receio de discutir com seriedade a aplicação da Lei nº 9.873/99 ao processo administrativo?
Em postura oposta a essa, Rosaldo Trevisan demonstra abertura à discussão científica, prometendo uma trilogia de artigos a respeito do tema, os quais aguardamos, ansiosos pela leitura.
Não obstante nossa absoluta divergência com os argumentos apresentados, pelas razões que foram analítica e respeitosamente postas acima, temos que louvar a iniciativa de debater o tema no campo da autoridade dos argumentos, e não dos argumentos de autoridade, com a tecnicidade e seriedade que ele merece.
Citando novamente o saudoso mestre Souto Maior Borges, "a arte de evitar erros (…) deve ser substituída pela arte, muito mais elevada, que consiste em assumir-lhes a responsabilidade, aprender com eles e tentar evitá-los no futuro" [11]. Os erros não devem ser bolas de ferro atadas que nos fazem prisioneiros, mas molas que impulsionam a novas ideias, potencialmente falíveis.
Afinal, é pelos erros que respira a ciência.
[1] POPPER, Karl. Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, P. 42-44.
[2] BORGES, José Souto Maior. Ciência Feliz, 3ªed. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p.26.
[3] Disponível no link https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/14427?sequencia=259, com acesso em 28/2/2023.
[4] Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, v. 1, 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p.66 ess.
[5] Para uma listagem exaustiva, v. DANIEL NETO, C.A.; RIBEIRO, D. D. A Aplicabilidade da Prescrição Intercorrente da Lei n. 9.873/99 às Multas Aduaneiras – Análise Crítica dos Argumentos do Debate. RDTA 50. São Paulo: IBDT, 2022, p.91.
[6] "c) das demais espécies de processos de competência do CARF, ressalvada aquela prevista no § 1º do art. 2º."
[7] Resolução Normativa Aneel nº 26/2004, art. 26.
[8] Resolução Anatel nº 612/2013: Art. 81.
[9] Lei nº 6.437/77: Art. 32.
[10] Decreto nº 2953/99, Art. 24.
[11] Ob.cit., p. 28.
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