Direito Eleitoral

Deltan, hermenêutica e jurisdição constitucional: houve ativismo ilegítimo do TSE?

Autor

  • Helio Maldonado

    é advogado e mestre em Direito. Professor e autor de livros e artigos jurídicos. Membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral). Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-Vila Velha (ES).

29 de maio de 2023, 11h54

O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) deu provimento a recurso ordinário da Coligação Brasil da Esperança, composta pelos partidos PT, PCdoB e PV, para julgar procedente ação de impugnação de registro do candidato a deputado federal Deltan Dallagnol.

A causa de pedir dessa ação eleitoral, dentre outra, deduziu a incidência de Deltan na hipótese de inelegibilidade contida no artigo 1º, inciso I, letra "q", da Lei de Inelegibilidades. Isto pois, em aproximadamente 11 meses antes das eleições, e na pendência de 15 procedimentos administrativos que tinham potencialidade de serem convertidos em processos disciplinares com juízo abstrato de possibilidade de aplicação de sanção disciplinar de aposentadoria compulsória, Deltan requereu sua exoneração do Ministério Público Federal. Em apertada síntese a questão posta: a fraude à lei, pela burla de incidência na inelegibilidade imputada.

Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

O TSE, pela unanimidade de seus sete ministros, teve como provada a fraude à lei em questão, pela presença somada de indícios, a saber:

a) o pedido de exoneração feito aproximadamente onze meses antes das eleições, nada obstante o prazo de desincompatibilização de membros do Ministério Público ser de seis meses antes do pleito (artigo 1º, inciso II, letra "j", da Lei Complementar nº 64/90);

b) a pretérita aplicação de sanções disciplinares de advertência e censura contra Deltan Dallagnol, em dois processos, de modo a autorizar a gradação de seu sancionamento nos eventuais e subsequentes processos administrativos (artigos 239 e 241 da Lei Complementar nº 75/93);

c) a existência de quinze procedimentos administrativos que tinham a potencialidade de serem convertidos em processos disciplinares pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), artigo 130-A, §2º, da Constituição;

d) a qualificação jurídica das imputações nos procedimentos administrativos, dentre muitas, em ato de improbidade administrativa, que atrai a aplicação em abstrato da sanção de aposentadoria compulsória (artigo 240, inciso V, alíneas "a" e "b", da Lei Complementar nº 75/93);

e) a aplicação de sanção de aposentadoria compulsória contra o procurador Diogo Castor, pelo CNMP, menos de 15 dias antes do pedido de exoneração de Deltan, pela sua promoção pessoal em outdoor em Curitiba, juntamente com a imagem de Deltan.

Irresignado, Deltan e seus correlegionários, como também juristas e setores da mídia, esbravejam que o TSE promoveu uma seletividade hermenêutica, praticando ativismo judicial ilegítimo para construir hipótese de inelegibilidade que não prevista em lei: a fraude à Lei de Inelegibilidades.

Não tem razão essa arguição. É um desvirtuamento técnico da hodierna compreensão sobre a hermenêutica e a sua simbiose com o pressuposto da jurisdição constitucional.

Isso porque era somente na hermenêutica tradicional, matematizada no esquema cartesiano do silogismo jurídico (em que a lei era a premissa maior, o caso a premissa menor, e a decisão judicial a conclusão de subsunção do fato a norma), que se pressupunha uma relação unívoca entre texto de lei e norma, contendo aquela no ideário positivista um quadro de molduras de possibilidades semânticas de sua incidência no mundo fenomênico, previamente delimitadas pela ciência do Direito: a doutrina e a jurisprudência.

Assim, nessa perspectiva, na expressão dos algozes da decisão do Tribunal Superior Eleitoral, somente o concreto do âmbito de conformação normativa em torno do pedido de aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar contra membro do MP é que poderia legitimar a incidência da inelegibilidade da letra "q", do inciso I, do artigo 1º, da Lei Complementar nº 64/90, em desfavor de Deltan Dallagnol. Não os procedimentos administrativos com potencialidade de alcançarem essa condição.

Tal visada decorre do princípio da legalidade, que exige que a restrição aos direitos fundamentais políticos, pela criação de hipóteses de inelegibilidade, sejam criadas por Lei Complementar, nos moldes da cláusula de autorização de restrição do artigo 14, §9º, da Constituição. Por isso o ativismo judicial ilegítimo: a inovação no ordenamento jurídico, pela criação de nova hipótese de inelegibilidade, por decisão judicial.

Todavia, com a evolução do constitucionalismo, e da hermenêutica, alcançou-se na Teoria do Direito a perspectiva da relação entre hermenêutica e jurisdição constitucional: o pós-positivismo.

Antes de tudo, pelo reconhecimento da falibilidade da relação única entre texto de Lei e norma, e sua insuficiência, em especial, para a decisão dos hard cases. Destarte, pressupõe-se, desse modo, uma inevitável trajetória entre texto de Lei e norma, sendo essa última o produto da atividade interpretativa promovida pelo intérprete autêntico pelo Direito na decisão judicial. O locus da norma é a jurisdição. E a Lei é apenas um dado de entrada para essa empreitada: a ponta do iceberg.

Outrossim, ainda no campo da hermenêutica promoveu-se a recuperação do concreto. Isso quer dizer que no Direito se promoveu uma virada copernicana do método dedutivo da subsunção para o método indutivo da hermenêutica concretista: o caso (delimitado por suas questões de fato), como fator coriginário à constituição da norma jurídica.

Nessa senda, ingressa a aliança da jurisdição constitucional, que ditando a Constituição ser o epicentro do ordenamento jurídico, impõem-se a unidade do ordenamento aos seus termos: os seus direitos e garantias fundamentais retratados na condição de princípios jurídicos positivados. Desse modo, nessa centralização, passam os princípios constitucionais a exercerem funções diversas sobre o ordenamento jurídico, iniciando por sua mais importante função: a normogenética — que, em ultima ratio, fundamenta a procedimentalização ou restrição dos direitos e garantias fundamentais pela Legislação Infraconstitucional.

Pela dignidade da legislação é somente na falta de procedimentalização dos princípios constitucionais, por omissão do legislador infraconstitucional, que ingressa na hermenêutica a aplicação da função integrativa dos princípios constitucionais: são eles o trunfo da máxima efetividade da Constituição.

E, ainda, a função hermenêutica dos princípios compele o intérprete da legislação infraconstitucional a promover exegeses constitucionalmente adequadas: dentre aquelas possíveis e concorrentes entre si, privilegia-se aquele sentido e alcance que mais realiza o conteúdo normogenético do texto da lei: uma relação entre a norma jurídica individualizada pela decisão judicial e a finalidade subjacente desse texto de lei. É aqui que reside o controle axiológico externo da discricionariedade da decisão judicial.

A Constituição, no encalço da atitude do poder constituinte originário de cristalizar consensos morais mínimos para a vivência em sociedade, prevê no artigo 14, §9º:

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

É cediço que a segunda parte dessa cláusula de autorização de restrição de direitos fundamentais foi regulada originariamente pela Lei Complementar nº 64/90: a proteção dos princípios da normalidade e legitimidade do pleito. E a segunda parte foi regulada pela chamada Lei do Ficha Limpa (a Lei Complementar nº 135/2010): a proteção dos princípios da probidade e moralidade. 

Por via de consequência, a restrição de direitos fundamentais políticos, pela restrição da capacidade eleitoral passiva, tem por finalidade subjacente, na hipótese da inelegibilidade da letra "q", a proteção dos princípios da probidade e moralidade para o exercício do mandato eletivo, sendo eleito pelo legislador infraconstitucional hipótese de pedido de aposentadoria voluntária ou exoneração na pendência de processo administrativo disciplinar, para magistrados e promotores.

Não se olvida que o âmbito de conformação jurídico e fático da inelegibilidade do artigo 1º, inciso I, letra "q", da Lei de Inelegibilidades, esteja no teto hermenêutico imposto pelo seu texto de Lei: a existência no concreto do pedido de exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar. Essas locuções semânticas são todas preenchidas pelo próprio ordenamento jurídico, em que pelo artigo 242 da Lei Complementar nº 75/93 é ditado o conceito normativo de processo administrativo disciplinar: "as infrações disciplinares serão apuradas em processo administrativo".

Não se olvida então que o conceito de processo administrativo disciplinar não se confunde com procedimento administrativo disciplinar. Mas no caso Deltan Dallagnol foram as circunstâncias fáticas que envolveram seu pedido de exoneração que denotaram a fraude a lei. E a fraude a lei, pela completude do ordenamento jurídico, e aplicação analógica do artigo 187 do Código Civil, fulmina de validade o próprio ato jurídico praticado: o pedido de exoneração, porque tal caracterizou ilicitude indireta à letra "q", do inciso I, do artigo 1º, da Lei Complementar nº 64/90.

Assim sendo, a incidência indireta constitui-se à própria incidência direta da Lei de Inelegibilidades. Isto pois, pelo pressuposto da hermenêutica e da jurisdição constitucional, se a finalidade subjacente da inelegibilidade da letra "q" é a proteção da probidade e moralidade para o exercício do cargo, ante a sabatina da vida pregressa do candidato, a burla a tal restrição não pode ser tolerada, pela interpretação do concreto conforme a Constituição.

Por isso é que dentre as interpretações possíveis do caso Deltan o Tribunal Superior Eleitoral privilegiou aquela mais progressista, retratada em uma atitude hermenêutica proativa de interpretar e dar máxima efetividade à Constituição. Essa espécie de ativismo judicial é legítimo, pois realizado dentro dos contornos da função hermenêutica dos princípios constitucionais da probidade e moralidade, e não caracterizou a aplicação direta desses por mero panprincipiologismo.

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