Opinião

A cassação de Deltan e o encontro marcado com o "fichalimpismo"

Autor

  • Rodrigo Valgas

    é sócio do Espíndola & Valgas Advogados Associados mestre em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) doutor em Direito Estado e Sociedade pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) professor do Cesusc (Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina) presidente da Comissão de Moralidade Pública do Conselho Seccional de Santa Catarina da OAB 1º vice-presidente do Ibda (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) e membro vitalício da Acalej (Academia Catarinense de Letras Jurídicas) cadeira nº 26 — patrono José Ferreira Bastos.

17 de maio de 2023, 15h06

Li atentamente a decisão do ministro Benedito Gonçalves. Está muito bem fundamentada e o ponto central é o conceito de "fraude à lei" em cotejo com o caso concreto.

A decisão parte da premissa de que Deltan Dallagnol já era sabedor que seria demitido, resolvendo exonerar-se antecipadamente ao PAD (processo administrativo disciplinar) para escapar da inelegibilidade.

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O ponto central do ministro em seu voto pode assim ser resumido: "Em outras palavras, o objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se conferir interpretação ampliativa ao termo 'processo administrativo disciplinar'. "O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à lei."

Além disso, o ministro Benedito assentou a fraude à lei nos seguintes aspectos: i) precedentes do STF no tocante a contornar inelegibilidade no caso do artigo 102 da Loman (ministro Eros Grau); ii) doutrina clássica sobre o tema da fraude a lei (como Pontes e Alvino Lima); iii) decisões do TSE sobre outros temas que envolveram fraude à lei; iv) elementos nos autos do processo que caracterizaram essa fraude.

E destaco apenas o que entendo mais relevantes: a) tramitação de 15 processos de diversas naturezas que poderiam ser convertidos em PAD; b) a demissão ao procurador na questão do outdoor e que cujos fatos também envolviam Deltan e c) pedido de exoneração 16 dias após a demissão do procurador ligado ao caso do outdoor, d) considerou que as penalidades aplicadas a Deltan nos PADs anteriores que não levaram a demissão, seriam consideradas para futuros sancionamentos e isso aumentaria a aplicação da pena de demissão em PADs futuros; e) o pedido teve por finalidade burlar a incidência da inelegibilidade; f) a exoneração deu-se faltando 11 meses para as eleições de 2022.

Invoca ainda o artigo 23 da LC 64/90 quanto a livre apreciação da Justiça Eleitoral de fatos públicos e notórios e ainda a preservação da lisura do pleito (norma demais aberta como sabemos). A questão da rejeição de contas não gerou maior controvérsia posto que há tutela provisória que suspendeu a rejeição de contas. Portanto, podemos até discordar do ministro Benedito, mas jamais dizer que o voto não foi bem fundamentado.

Todavia, penso diferente. Sou crítico de longa data da Lei da Ficha Limpa. Essa é uma das piores normas da história da República. Trata os direitos políticos fundamentais como se nada fossem. Isso ocorre em inúmeros dispositivos da LC 64/90 e, apenas para destacar, lembro a da famigerada alínea "g" que a rigor é de impossível caracterização, posto que o processo de contas não se presta aferir ato doloso de improbidade, mas isso não tem impedido a Justiça Eleitora de constituí-la. Além disso, é sabido que a norma que limita direitos políticos fundamentais deve ser interpretada restritivamente.

Que Deltan pretendeu se evadir dos PADs não há dúvida, mas daí a interpretar a alínea "q" deve ser interpretada em conjunto com o conceito de "fraude à lei", de modo a estender a inelegibilidade é, em meu modesto modo de ver, ir além do que prevê a norma. O uso de "artimanhas" poderia levar à inelegibilidade se a alínea "q" expressamente as vedasse, mas não veda. Além disso, essa interpretação da LC 64/90 poderá levar a outros graves problemas.

Imaginemos um servidor efetivo que na fase de sindicância se exonera. Por certo não haverá nem PAD nem demissão. Vamos supor que ele venha a se candidatar na eleição seguinte. Será que se poderia aplicar o conceito de "fraude à lei" porque diante da gravidade dos fatos haveria um PAD com alta possibilidade de demissão e com isso a consequente inelegibilidade (alínea "o" da LC 64/90)?

Penso que não, mas se trata de raciocínio similar. Em prol de Deltan, ainda resta a inconvencionalidade da Lei Ficha Limpa. Boa parte das hipóteses de inelegibilidade da LC 64/90 envolvem condenação anterior em processos administrativos. Isto é flagrantemente inconvencional pois viola o artigo 23, 2, e o Brasil não fez qualquer ressalva a esse dispositivo como signatário da Cadh.

Logo, apenas condenação por juiz competente em processo penal é que poderia restringir direitos políticos. Mas infelizmente o Brasil ainda não leva a sério o controle de convencionalidade. Aliás, se Deltan não reverter a decisão, será uma ótima oportunidade de levar o caso para Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Temos um encontro marcado com a Lei Ficha da Lima e o "fichalimpismo".

Autores

  • é sócio do Espíndola & Valgas Advogados Associados. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Furb (Universidade Regional de Blumenau); mestre em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná); doutor em Direito, Estado e Sociedade pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina); professor do Cesuc (Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina); ex-vice-presidente da Comissão de Moralidade Administrativa do Conselho Seccional de Santa Catarina – OAB; 2º vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo; ex-presidente do Instituto Catarinense de Direito Administrativo (2005-2010) e eleito para Cadeira de n° 26 da Academia Catarinense de Letras Jurídicas (Acalej).

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