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Rodrigo Valgas: Encontro marcado com a Lei da Ficha Limpa

17 de maio de 2023, 15h06

Por Rodrigo Valgas

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Li atentamente a decisão do ministro Benedito Gonçalves. Está muito bem fundamentada e o ponto central é o conceito de "fraude à lei" em cotejo com o caso concreto.

A decisão parte da premissa de que Deltan Dallagnol já era sabedor que seria demitido, resolvendo exonerar-se antecipadamente ao PAD (processo administrativo disciplinar) para escapar da inelegibilidade.

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O ponto central do ministro em seu voto pode assim ser resumido: "Em outras palavras, o objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se conferir interpretação ampliativa ao termo 'processo administrativo disciplinar'. "O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à lei."

Além disso, o ministro Benedito assentou a fraude à lei nos seguintes aspectos: i) precedentes do STF no tocante a contornar inelegibilidade no caso do artigo 102 da Loman (ministro Eros Grau); ii) doutrina clássica sobre o tema da fraude a lei (como Pontes e Alvino Lima); iii) decisões do TSE sobre outros temas que envolveram fraude à lei; iv) elementos nos autos do processo que caracterizaram essa fraude.

E destaco apenas o que entendo mais relevantes: a) tramitação de 15 processos de diversas naturezas que poderiam ser convertidos em PAD; b) a demissão ao procurador na questão do outdoor e que cujos fatos também envolviam Deltan e c) pedido de exoneração 16 dias após a demissão do procurador ligado ao caso do outdoor, d) considerou que as penalidades aplicadas a Deltan nos PADs anteriores que não levaram a demissão, seriam consideradas para futuros sancionamentos e isso aumentaria a aplicação da pena de demissão em PADs futuros; e) o pedido teve por finalidade burlar a incidência da inelegibilidade; f) a exoneração deu-se faltando 11 meses para as eleições de 2022.

Invoca ainda o artigo 23 da LC 64/90 quanto a livre apreciação da Justiça Eleitoral de fatos públicos e notórios e ainda a preservação da lisura do pleito (norma demais aberta como sabemos). A questão da rejeição de contas não gerou maior controvérsia posto que há tutela provisória que suspendeu a rejeição de contas. Portanto, podemos até discordar do ministro Benedito, mas jamais dizer que o voto não foi bem fundamentado.

Todavia, penso diferente. Sou crítico de longa data da Lei da Ficha Limpa. Essa é uma das piores normas da história da República. Trata os direitos políticos fundamentais como se nada fossem. Isso ocorre em inúmeros dispositivos da LC 64/90 e, apenas para destacar, lembro a da famigerada alínea "g" que a rigor é de impossível caracterização, posto que o processo de contas não se presta aferir ato doloso de improbidade, mas isso não tem impedido a Justiça Eleitora de constituí-la. Além disso, é sabido que a norma que limita direitos políticos fundamentais deve ser interpretada restritivamente.

Que Deltan pretendeu se evadir dos PADs não há dúvida, mas daí a interpretar a alínea "q" deve ser interpretada em conjunto com o conceito de "fraude à lei", de modo a estender a inelegibilidade é, em meu modesto modo de ver, ir além do que prevê a norma. O uso de "artimanhas" poderia levar à inelegibilidade se a alínea "q" expressamente as vedasse, mas não veda. Além disso, essa interpretação da LC 64/90 poderá levar a outros graves problemas.

Imaginemos um servidor efetivo que na fase de sindicância se exonera. Por certo não haverá nem PAD nem demissão. Vamos supor que ele venha a se candidatar na eleição seguinte. Será que se poderia aplicar o conceito de "fraude à lei" porque diante da gravidade dos fatos haveria um PAD com alta possibilidade de demissão e com isso a consequente inelegibilidade (alínea "o" da LC 64/90)?

Penso que não, mas se trata de raciocínio similar. Em prol de Deltan, ainda resta a inconvencionalidade da Lei Ficha Limpa. Boa parte das hipóteses de inelegibilidade da LC 64/90 envolvem condenação anterior em processos administrativos. Isto é flagrantemente inconvencional pois viola o artigo 23, 2, e o Brasil não fez qualquer ressalva a esse dispositivo como signatário da Cadh.

Logo, apenas condenação por juiz competente em processo penal é que poderia restringir direitos políticos. Mas infelizmente o Brasil ainda não leva a sério o controle de convencionalidade. Aliás, se Deltan não reverter a decisão, será uma ótima oportunidade de levar o caso para Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Temos um encontro marcado com a Lei Ficha da Lima e o "fichalimpismo".