Tribunal do Juri

Paridade de gêneros no Conselho de Sentença do Tribunal do Júri (parte 2)

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

10 de junho de 2023, 8h00

"El proceso de selección de jurados constituye una instancia totalmente novedosa y dirimente para nuestros sistemas actuales de justicia, por lo que se necesitarán operadores judiciales entrenados a fin de poder asegurar que los jurados cumplan com dos garantías jurisdiccionales básicas: la independencia y la imparcialidade" [1].

No artigo da semana passada (aqui), iniciamos a discussão a respeito do PLS nº 1918/2021 (aqui) e do seu substitutivo (aqui), os quais dispõem sobre a paridade de gêneros no Conselho de Sentença do Tribunal do Júri. Tratamos do sistema norte-americano, o qual impõe a necessidade da construção de um júri imparcial que represente amplamente a comunidade local onde os fatos se deram (fair cross-section of the comunity), protegendo o acusado contra qualquer tipo de preconceito, vedando-se exclusão sistemática de grupo comunitários quando do alistamento. Porém, em nenhum momento a legislação ou os precedentes da Suprema Corte exigem que toda a diversidade social esteja representada no Conselho de Sentença (petit jury), eis que seria praticamente impossível escolher, para cada caso concreto, um corpo de sentença que refletisse toda a complexidade social.

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O modelo argentino, por sua vez, trilha um outro caminho. É necessário que inicialmente se diga que a despeito da previsão na Constitución de la Nación Argentina (C.N. artigo 118) [2], o júri é uma realidade recente naquele país. Dando concretude a uma aspiração programática do texto constitucional (C.N. artigo 24) [3], a província patagônica de Neuquén sancionou, em 14/01/2014, a primeira lei do país a implementar um sistema clássico de julgamento por jurados em toda a América do Sul [4]. Antes disso, em 1998, a província de Córdoba já havia instalado um sistema de júri para o julgamento de crimes graves, porém, numa forma escabinada que, apenas em 2004 [5], tornou majoritária a participação do povo em sua deliberação com magistrados togados [6].

O sistema norte-americano e o argentino partem de uma matriz comum, qual seja, a ideia de que os jurados sejam extraídos do corpo social representativo da comunidade local, mediante uma seleção aleatória  obedecendo-se os requisitos legais  e sem qualquer distinção baseada em gênero, raça, cor, religião e ascensão social.

Na Argentina, os jurados são, de regra, escolhidos mediante dados colhidos perante a Justiça Eleitoral e devem representar, de maneira real e proporcional, a população de cada distrito ou divisão judiciária. É o que ocorre, por exemplo, nas províncias de Córdoba [7], Buenos Aires [8] e Neuquén [9]:

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"Tanto en la provincia de Córdoba, como en la de Buenos Aires y Neuquén el procedimiento consta basicamente de tres pasos: se sortea una lista preliminar por género y circunscripción o departamento judicial tomando como fuente el padrón electoral. El paso siguiente es la depuración de la lista para excluir a las personas que no reúnan los requisitos legales o tengan impedimentos de orden general. Finalmente la publicación y la comunicación de la lista anual definitiva, que se utilizara para los juicios del año calendário imediato posterior" [10].

O procedimento de seleção se inicia com a escolha do número de jurados que serão sorteados. Esse montante pode ser variável de acordo com a quantidade de eleitores alistados, ou, como ocorre em Neuquén [11], observando-se o número aproximado de julgamentos que serão realizados durante um determinado período.

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O sorteio pode ser efetivado com o uso de programas de computador, ou, conforme se dá em Córdoba, empregando a loteria provincial, em um procedimento que conta com a fiscalização de representantes da Ordem dos Advogados, da Associação de Magistrados e Funcionários do Poder Judiciário, da Faculdade Profissional de Ciências da Computação e demais entidades vinculadas ao saber jurídico [12].

Os jurados sorteados recebem questionários em suas residências [13], os quais serão utilizados para depurar a lista e identificar se os escolhidos possuem as qualificações necessárias para atuar nos julgamentos. As informações solicitadas incluem, como regra: o nome, endereço, idade, raça, ocupação, grau de instrução, tempo de residência na comarca, se já exerceram a função de jurados, cidadania e, se existem razões para escusar-se ou ser eximido da função de jurado. Além disso, outras perguntas podem ser solicitadas no interesse da melhor administração da justiça [14]. No modelo norte-americano, as partes podem propor perguntas endereçadas aos jurados e relacionadas ao caso que será levado a julgamento. Tal procedimento, inexistente no Brasil, seria extremamente útil por aqui, não apenas para identificar a qualificação de cada jurado, mas igualmente para subsidiar o momento das recusas imotivadas. No rito brasileiro, não há sequer a determinação de que os jurados sejam cientificados do seu alistamento. Para muitos, a convocação para um julgamento (ou sessões de julgamentos) se torna uma verdadeira surpresa, acarretando os mais diversos inconvenientes pessoais e profissionais e, ao final, fomenta um grande número de pedido de dispensas que dificultam e repercutem na instalação da sessão de julgamento.

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Feita a depuração, os jurados são cientificados que deverão atuar perante o Tribunal do Júri. Enquanto no modelo norte-americano os jurados ficam vinculados a um determinado período de tempo, no sistema argentino a convocatória é feita, regra geral, para comparecerem em um determinado dia ou julgamento, restando dispensados os demais jurados não sorteados.

O ponto culminante do procedimento de seleção dos jurados ocorre na audiência de voir dire ("dizer a verdade"), momento em que as partes podem dirigir perguntas aos jurados com o intuito de identificar e descartar aqueles que demonstrem certa parcialidade no julgamento da causa: "De este modo, el propósito de la selección del jurado será obtener tanta información como sea posible acerca de sus potenciales membros para determinar si ellos podrán dar un veredicto justo, eligiendo a aquéllos que se muestren con una mente aberta hacia su posición, y descartando a los que por alguna circunstancia podrian resultar hostiles hacia su parte" [15].

Como já ressaltamos, a grande diferença entre o modelo norte-americano e o argentino pode ser visualizada na imposição legal de que o Conselho de Sentença no júri argentino seja observada a igualdade de gênero, com uma progressiva seleção de jurados. A legislação de Entre Ríos é um exemplo claro da intenção do legislador: "Artículo 4: Integración del jurado.  El jurado estará integrado en todos los casos por doce (12) miembros titulares y, como mínimo, por cuatro (4) suplentes y será dirigido por un solo juez penal. El juez podrá ordenar que haua más suplentes de acuerdo a la gravedad, duración y/o complejidad del caso. El panel de jurados titulares y suplentes deberá estar siempre integrado por mujeres y hombres en partes iguales" [16].

A legislação cordobesa prevê um número inferior de jurados, porém, mantem a regra que estipula a igualdade de gênero: "Artículo 18.- Cantidad, Afectación y Cese. La Cámara con competência en lo Criminal sorteará la cantidad de veintecuatro (24) jurados, de ambos sexos por partes iguales, y la integrará  por orden cronológico de sorteo — con los doce (12) primero que acepten el cargo, asumiendo los ocho (8) primeiros como titulares y los cuatro (4) últimos como suplentes. El resto de los jurados sorteados permanecerán afectados al proceso hasta que termine la etapa de excusaciones y recusasiones con causa" [17].

A mesma sistemática é adotada na província de Buenos Aires: "Artículo 338 quáter: Audiencia de selección de jurados. El día fijado para comenzar el juicio, con la presencia obligatoria del juiz y las partes, se celebrará previamente la audiencia a fin de constituir el jurado para resolver el caso. (…). 6. Integración Plural. El jurado deberá quedar integrado, incluyendo los suplentes, por hombres y mujeres en partes iguales" [18].

O modelo argentino foi pensado e construído objetivando a edificação de um júri plural e, para tanto, foi além da imposição da paridade de gêneros nos julgamentos. Na província de Neuquén, por exemplo, além da composição igualitária entre homens e mulheres, ao menos metade dos jurados que participarão do julgamento devem pertencer ao mesmo entorno social e cultural do acusado, evitando a formação de um "júri de classes". Além disso, a legislação determina que se buscará, em sendo possível, que o Conselho de Sentença seja formado de pessoas idosas, adultas e jovens [19].

Ademais, ciente da necessidade de integrar o povo indígena ao sistema de justiça, a novel legislação trouxe importantes ferramentas de inclusão. A província de Chaco, por exemplo, tratou dos casos em que o acusado e vítima sejam indígenas, determinando que o conselho seja composto por metade de indígenas pertencentes a sua tribo: "Cuando se juzgue un hecho en donde el acusado y la víctima pertenezcan al mismo pueblo indígnea Qom, Wichí o Mocoví, el panel de doce jurados titulares y suplentes estará obligatoriamente integrado en la mitad por hombres y mujeres de su misma comunidade de pertinência" [20]. O primeiro julgamento intercultural na Argentina ocorreu no ano de 2015, na província de Neuquén, chamando a atenção do mundo inteiro para esse "novo modelo de justiça".

Conforme já consignou Andrés Harfuch (…) "la exigência de igual número de hombres y mujeres, de mitad de indígenas si el acusado lo es, y de un padrón electoral completamente inclusivo incrementam en la Argentina la capacidade de lograr el ideal democrático de justicia equitativa que viene de la noción del jurado como un cuerpo representativo de la comunidade. Este enfoque maximiza el ideal del jurado como um adjudicador de los hechos imparcial" [21]. Por isso, inclusive, o número de jurados que compõe o Conselho de Sentença.

Expostos resumidamente os dois modelos (norte-americano e argentino), agora nos compete racionar a respeito das mudanças propostas pelo PLS nº 1918/2021. É o que faremos no último artigo da série.


[1] MANES, Silvina. El Proceso de Selecccion de Jurados. Analisis comparativo entre el proceso utilizado por las cortes federales de estados unidos y las províncias de Cordoba, Buenos Aires y Neuquén, Argentina. Disponível aqui. Página 36.

[2] Artículo 118. Todos los juicios criminales ordinários, que no se deriven del derecho de acusación conedido a la Cámara de Diputados se terminarán por jurados, luego que se establezca en la República esta institución. La actuación de estos juicios se hará en la misma provincia donde se hubiere cometido el delito; pero cuando éste se cometa fuera de los limites de la Nación, contra el derecho de gentes, el Congreso determinará por una ley especial el lugar em que haya de seguirese el juicio.

[3] Artículo 24. El Congreso promoverá la reforma de la actual legislación en todos sus ramos, y el estabelecimento del juicio por jurados.

[4] O julgamento pelo júri é utilizado para o processamento de casos graves, abrangendo todos aqueles em que o Ministério Público solicita uma pena privativa de liberdade superior a quinze anos.

[5] Ley 9182, de 22/09/2004.

[6] MANES, Silvina. El Proceso de Selecccion de Jurados. Analisis comparativo entre el proceso utilizado por las cortes federales de estados unidos y las províncias de Cordoba, Buenos Aires y Neuquén, Argentina. Disponível aqui.

[7] Ley 9182, artículo 8º.

[8] Atualmente, porém, na província de Buenos Aires, diante de uma discussão tratando de competência, a Corte Suprema de Justiça da província alterou a responsabilidade pela confecção das listas de jurados, outorgando-a para o Ministério da Justiça. "Es cuestionable este deslinde de responsabilidad de los órganos jurisdiccionales bonaerenses respecto de una fase del procedimiento que es la que tende a la selección al azar de posibles jurados representativos de la comunidade, para assegurar su independencia. De este modo se están delegando funciones de naturaliza jurisdicional al poder Ejecutivo, lo que está constitucionalmente prohibido". (MANES, Silvina. El Proceso de Selecccion de Jurados… p. 06).

[9] Ley provincial nº 2784, artigo 1º.

[10] Ibid.

[11] Ley provincial nº 2784, artigo 4º.

[12] Ley nº 9182, artigos 9 e 10.

[13] Despesas com porte de remessa e retorno pagas pelo judiciário.

[14] MANES, Silvina. El Proceso de Selecccion de Jurados. Op. cit., p. 11.

[15] MANES, Silvina. El Proceso de Selecccion de Jurados. Op. cit., p. 26.

[16] Ley nº 10.746, artigo 4.

[17] Ley 9.182/2004, artigo 18.

[18] Ley 14.543, que promoveu modificações no CPP da Provincia de Buenos Aires (Ley 11922).

[19] Ley nº 2784, Artículo 198.

[20] Ley nº 7661, artigo 4º.

[21] HARFUCH, Andrés. El veredicto del jurado. Buenos Aires Ad-Hoc, 2019, p. 571.

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de Mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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