Opinião

Qual ministério decide a demarcação?

Autor

  • Pedro Puttini Mendes

    é advogado e professor de Direito Agrário e Ambiental autor coautor e organizador de livros em direito agrário e ambiental. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina mestre em Desenvolvimento Local (2019) pela Universidade Católica Dom Bosco. Membro fundador da UBAA (União Brasileira da Advocacia Ambiental). Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB-MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-MS entre 2013/2015.

27 de janeiro de 2023, 15h29

No primeiro dia de expediente do novo/velho governo, foi publicada a Medida Provisória nº 1.154/2023, estabelecendo a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios, a qual deverá ser convertida em Lei Federal nos 120 dias subsequentes, trazendo consigo uma estrutura inovadora diante da criação, extinção e modificação de diversos ministérios.

Reprodução/Apib
Apib

Com relação às questões fundiárias, principalmente nas demarcações de terras indígenas foram promovidas modificações significativas em ministérios, ao exemplo da modificação de competências do Ministério da Justiça e a criação do Ministério dos Povos Indígenas.

Qual o cerne da discussão? A demarcação das terras chamadas de "tradicionalmente ocupadas", que também são objeto da discussão do marco temporal no Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 1.017.365.

Cumpre esclarecer inicialmente, quanto aos tipos de terras indígenas definidas por lei, que o artigo 17 do Estatuto do Índio (Lei Federal nº 6.001/1973) registra três tipos de terra: 1) As "tradicionalmente ocupadas"; 2) As "áreas reservadas"; e 3) As "terras de domínio das comunidades indígenas".

As terras indígenas chamadas de "tradicionalmente ocupadas" são as mais polemizadas, diante da discussão "temporal" da ocupação, são as terras em que se discutem questões antropológicas e de ancestralidade, artigo 231 da Constituição.

Quanto à expressão "competindo à União demarcá-las", indica que deve seguir um determinado critério de demarcação, cujo procedimento é descrito pelo Decreto Federal nº 1.775/1996, responsável por orientar apenas a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, a Funai.

Analisando os artigos 35 e 42, inciso III da nova medida provisória (1.154/20223), verifica-se que as atribuições de "reconhecimento, demarcação, defesa, usufruto exclusivo e gestão das terras e dos territórios indígenas", pertencem exclusivamente ao novo ministério (povos indígenas), em contradição com a competência estabelecida ao Ministério da Justiça desde 1996 pelo Decreto Federal nº 1.775, em seu artigo 2º, §10, principalmente no que diz respeito à declaração de limites e demarcação, (des)aprovação da identificação das terras indígenas.

Da mesma forma, equivocadamente o fez o Decreto Federal nº 11.348/2023, também sancionado em 01/01/2023, ao criar a estrutura regimental, natureza e competências do Ministério da Justiça, sem qualquer menção à referida competência do artigo 2º, §10 do Decreto Federal nº 1.775/1996.

Por sua vez, o Decreto Federal nº 11.355/2023, de 01/01/2023, que criou o Ministério dos Povos Indígenas, criou não apenas o Ministério, como outra competência conflitante com o artigo 2º, §10 do Decreto Federal nº 1.775/1996, ao determinar que cabe ao novo Ministério o reconhecimento, demarcação, defesa, usufruto exclusivo e gestão das terras e dos territórios indígenas (artigo 1º, III).

Estas questões relembram ainda uma antiga discussão, protocolada no Supremo Tribunal Federal em janeiro/2014 pelo estado de Santa Catarina, a Ação Cível Originária (ACO) nº 2323, ainda sem julgamento, onde se decidirá sobre a falta de vinculação constitucional da Funai aos processos de demarcação pelo fato de que o artigo 231 orienta que compete "à União demarca-las" e não necessariamente a Funai  e agora o Ministério dos Povos Indígenas  argumentando também que não se deve aceitar exclusividade de tais órgãos representativos por conflito de interesses, já que possuem dever legal de defesa dos interesses indígenas (artigo 1º e incisos, Lei Federal nº 5.371/1967).

Além do mais, órgãos de proteção ao índio (Funai e Ministério dos Povos Indígenas) deveriam estar tecnicamente impedidos de conduzir processos de demarcação, pois além de ter interesse institucional na causa, tem por dever assistir aos índios, não podendo e nem devendo ser imparciais, de forma que buscarão sempre a demarcação e em maior extensão possível, para cumprir suas funções legais institucionais, sendo que deveriam apenas participar obrigatoriamente do processo.

Segundo o Decreto Federal nº 11.355/2023, o Ministério dos Povos Indígenas contará com uma secretaria de direitos ambientais e territoriais com competência para planejar, promover, coordenar e monitorar as políticas de demarcação territorial (artigo 14, I) e um departamento de demarcação territorial com competência para analisar os processos de demarcação de terras indígenas encaminhados pela Funai (artigo 15, II), contudo, sem nada dizer sobre a decisão de mérito do processo de demarcação.

O panorama de discussão das áreas a serem demarcadas novamente volta aos mesmos dilemas de outrora, já que, segundo a leitura que se faz da Constituição Federal (artigo 231, Parágrafo Único), apenas as terras "tradicionalmente ocupadas", não as áreas reservadas e nem as colônias agrícolas indígenas, teriam, uma destinação específica para "atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições".

E nestas áreas, consideradas de "posse imemorial" ou de preservação cultural, áreas em que costumeiramente ocorrem as invasões/ocupações e infindáveis debates jurídicos, normalmente são áreas onde se estabeleceu o uso agropecuário, com profunda alteração de uso e ocupação do solo, praticamente sem possibilidade de conversão para área de usos e costumes tradicionais indígenas, perdendo o sentido de demarcação sob a modalidade tradicionalmente ocupadas para posse imemorial.

Se uma área já consolidada em uso agropecuário, é reivindicada como terra tradicionalmente ocupada (posse imemorial), confunde-se com área de colônia agrícola (artigo 29, Estatuto do Índio), modalidade destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional.

No caso das demarcações de "terras tradicionalmente ocupadas", os seus usos, costumes e tradições estão se desvinculando da terra, o que está acontecendo sem que os próprios indígenas estejam notando, já que, ao reivindicar áreas que já foram consolidadas em atividades agropecuárias, tais localidades não serão mais tipicamente indígenas em suas atividades produtivas.

Há, novamente, o risco de esvaziar o texto do artigo 231 da Constituição Federal, o qual, em sua época de criação destinava-se a preservar áreas tradicionais onde os indígenas já se encontravam na posse.

Uma comparação em outra área poderíamos fazer ao dizer que, de nada adiantaria demarcar Unidades de Conservação sobre áreas de uso agropecuário sem posterior recuperação da área para atender às necessidades da fauna e flora do respectivo bioma, ou seja, nas terras indígenas tradicionais, evidentemente há necessidade de adequação da área para as finalidades originárias determinadas por lei.

A discussão é paradoxal e demostra que, ao mesmo tempo em que o Brasil criou um belo exemplo de regramentos legais para a manutenção de uma riqueza cultural, também retira destes povos a possibilidade de aproveitamento destas terras para fins culturais ou até mesmo econômicos e seu direito de integração à sociedade, caso seja este o anseio da comunidade.

Os rumos do assunto se tornaram complexos, valendo repensar o arcabouço normativo deste assunto; o planejamento territorial nacional; a forma de demarcação das terras litigiosas; e a mudança de paradigmas na utilização das terras; pois caso contrário todo este crescente e infindável trabalho de demarcações demandará a relativização do seu regime.

Autores

  • é advogado e professor de Direito Agrário e Ambiental, autor, coautor e organizador de livros em direito agrário e ambiental. Doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina, mestre em Desenvolvimento Local (2019) pela Universidade Católica Dom Bosco. Membro fundador da UBAA (União Brasileira da Advocacia Ambiental). Foi Presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócio da OAB-MS e membro da Comissão do Meio Ambiente da OAB-MS entre 2013/2015.

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