Opinião

Sim, é genocídio

Autor

  • Adel El Tasse

    é advogado em Curitiba (PR) procurador federal professor de Direito Penal em diversos cursos de graduação e pós-graduação professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers mestre e doutor em Direito Penal coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e coordenador do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.

26 de janeiro de 2023, 16h14

O crime de genocídio está definido no Brasil pela Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, a qual surgiu no cenário das respostas mundiais aos massacres havidos na Europa, durante o período nazista, sendo que assim está tipificada a conduta genocida:

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Crianças yanomais em Roraima
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"Artigo 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo".

Da leitura do dispositivo legal supra destacado, bastante claro que o genocídio não ocorre apenas quando se matam os membros de um grupo, embora, claro, esse comportamento caracteriza o delito em questão, contudo, importante destacar ocorrer o genocídio, também, quando se desenvolvem outras modalidades de conduta, como as lesões físicas ou mentais e mesmo à submissão do grupo a condições que possam ocasionar sua destruição, ainda que parcial.

A ideia vetor do crime de genocídio é a ação que objetiva a eliminação de determinado grupo, seja ele nacional, étnico, racial ou religioso, a partir da prática de condutas que, não necessariamente representam a agressão direta à vida.

Por exemplo, a prática da esterilização forçada de uma etnia tem como resultado a eliminação dela, assim como, a imposição de sofrimento grave a um grupo religioso, longe de representar qualquer forma de trabalho missionário, representa ação genocida, pois, com a finalidade de promover a eliminação do pensamento diverso.

Relevante ter em conta que, na democracia, o convívio com a diferença é base essencial, de sorte que os espaços democráticos, não podem, a pretexto da exposição de ideias, serem utilizados para, em verdade, pôr fim ao distinto.

 É fácil perceber que no Brasil, a partir da exploração sensacionalista do discurso de combate à corrupção e eliminação dos malfeitores relacionados a ela, com a extirpação de todos os defensores de determinada postura ideológica, foi habilitada a lógica da intolerância com o outro, devendo os que não se adequam à estrutura de um pensamento autoproclamado majoritário, serem eliminados.

Referida lógica é a mesma habilitada na grande maioria dos regimes autoritários de poder, por isso, são eles, independente de suas nuances, uniformes na produção de massacres, pois, a quem é inserido no catálogo do diferente, somente há uma consequência possível, a destruição. Assim, a história humana experimentou massacres religiosos, étnicos, raciais, de gênero, enfim, as mais diferentes atrocidades habilitadas sempre em nome de um discurso de salvaguarda nacional e preservação dos valores da maioria. Mesmo na atualidade, ações como os genocídio palestino, por exemplo, são estruturadas nessa lógica.

Quando se observa em território brasileiro, a submissão da etnia indígena yanomami a condições de total abandono pelos órgãos responsáveis pela sua preservação, com omissão contínua e deliberada para garantir às ações ilícitas voltadas para a mineração, pesca e extração de madeira, há evidentemente um comportamento em que esse grupo é submetido intencionalmente a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, o que tipifica o crime de genocídio, na forma do artigo 1º letra c, da Lei nº 2.889/56.

Com isso, não há dúvida em afirmar ter havido ação de genocídio no horripilante caso recém revelado do abandono dos yanomamis, restando apenas auferir a autoria delitiva, com a lembrança de que na hipótese da letra c, do artigo 1º, da Lei nº 2.889/56, o crime é de forma livre, admitindo sua prática por qualquer meio, mediante ação ou omissão.

Assim sendo, não somente pessoas que atuaram diretamente na prática de condutas ativas de submissão do povo yanomami à possibilidade de sua eliminação, ainda que parcial, cometem o delito, mas, também aqueles que se omitiram de adotar as ações e políticas públicas necessárias para sua preservação.

Sob ponto de vista penal, não há dúvidas, quem com sua ação ou omissão submeteu os yanomamis a condições de existência capazes de ocasionar-lhes a destruição física total ou parcial, cometeu o crime de genocídio, podendo a questão, ainda, ganhar aspectos de maior contundência, quando submetida à avaliação dentro do crime comissivo por omissão.

Não se descuide serem muitos dos detentores de funções específicas no Estado, atrelados a obrigações de agir para impedir determinados resultados, inserindo vários agentes públicos na condição de garantes em relação ao bem-estar do povo indígena, inclusive yanomami.

Nessa toada, sob qualquer aspecto ao qual a matéria seja submetida à avaliação, a conclusão sempre será a mesma, qualquer pessoa que, com sua ação ou omissão, utilizando de qualquer meio, contribuiu na manutenção dos yanomamis em condição capaz de produzir sua eliminação, praticou o delito de genocídio, podendo ainda, em relação ao comportamento omissivo, ocorrer especial gravidade, quando diante de pessoa com condição de garante (crime comissivo por omissão).

Dúvidas nessa matéria apenas ratificam a presença da nefasta lógica de aceitação da eliminação do diferente no Brasil atual. Não sentir repulsa com a morte à míngua de crianças, pelo simples fato de pertencerem a determinada etnia ou com seres humanos sendo reduzidos às mais cruéis condições, por serem vistos como obstáculo à mineração, é apenas um exemplo do quanto os valores morais e éticos de uma sociedade podem ser destruídos.

Assim, quando você se perguntar de novo, como puderam os alemães aceitar o nazismo e a pilha de corpos nos campos de extermínio, lembre-se de nós brasileiros aceitando corpos esqueléticos e crianças morrendo de inanição nas aldeias yanomamis e muitos preocupados em defender os causadores dessa atrocidade, apenas para que suas posições ideológicas não pareçam arranhadas, então, você vai concluir que todo massacre sempre começa no mesmo lugar, em um discurso, um discurso estabelecedor da presença de um mal, seja ele a bruxaria, a corrupção ou qualquer outra coisa, com a necessidade urgente de sua eliminação, sem qualquer piedade, pois,  com isso habilita-se, em verdade, o discurso do ódio e dele, outra coisa nunca surgiu, senão as matanças.

Autores

  • é professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

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