Sem militares

Intervenção federal no DF é a terceira decretada desde a Constituição de 1988

Autor

10 de janeiro de 2023, 19h43

Após os atos terroristas de domingo (8/1), em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decretou intervenção federal no Distrito Federal. É a terceira vez desde 1988 que a União promove uma iniciativa do tipo, mas a intervenção no DF difere das estabelecidas no Rio de Janeiro e em Roraima, seja pela forma de gestão, seja pelo alcance.

Fábio Pozzebom/Agência Brasil
Após decretar intervenção no DF, Lula teve reunião com os 27 governadores
Fábio Pozzebom/Agência Brasil

O Senado aprovou nesta terça-feira (10/1) o decreto de intervenção federal na área de segurança pública do Distrito Federal, editado por Lula no domingo. Com isso, a norma será encaminhada para promulgação e a medida — que já estava em vigor havia dois dias — se torna efetiva.

Por causa dos atos não reprimidos em Brasília no domingo, que causaram a destruição de prédios dos três Poderes, Lula anunciou a intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal. A gestão da União durará até 31 deste mês.

O interventor é Ricardo Garcia Capelli, secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O objetivo é "conter o grave comprometimento da ordem pública no Distrito Federal, marcada por atos de violência e invasão de prédios públicos". Capelli não está sujeito às normas distritais e pode requisitar recursos financeiros, estruturais e de pessoal ao governo do DF para cumprir os atos necessários durante a intervenção.

Cabe ao interventor comandar a Polícia Militar, a Polícia Civil, a Polícia Penitenciária e o Corpo de Bombeiros do DF. Capelli poderá solicitar bens, serviços e servidores das secretarias distritais de Segurança Pública, de Administração Penitenciária e do Corpo de Bombeiros.

Com a intervenção federal decretada, o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes afastou Ibaneis Rocha (MDB) do cargo de governador do DF por 90 dias. A decisão leva em conta os atos terroristas contra a corte, o Congresso e o Palácio do Planalto. Segundo o ministro, houve "omissão e conivência" de diversas autoridades da área de segurança e inteligência. 

Regramento da intervenção
O artigo 34 da Constituição estabelece que a União só pode intervir nos estados ou no Distrito Federal para manter a integridade nacional; repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da federação em outra; acabar com grave comprometimento da ordem pública; garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da federação ou a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial.

Além disso, cabe intervenção federal para reorganizar as finanças de estado que suspender o pagamento de dívida por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior, ou deixar de entregar aos municípios receitas tributárias fixadas na Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei e para assegurar princípios constitucionais como forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública e aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

O decreto de intervenção deve indicar a amplitude, o prazo e as condições da intervenção e, se cabível, nomeará um interventor para o estado. A norma deverá ser submetida à apreciação do Congresso ou da Assembleia Legislativa do estado em até 24 horas.

Uma vez aprovada a intervenção, a Constituição não pode receber nenhuma emenda enquanto ela estiver em vigor. Quando a situação que motivou a intervenção for regularizada, as autoridades afastadas de seus cargos retornarão a eles, exceto se houver algum impedimento legal.

Intervenção no Rio
Após a veiculação de imagens de roubos no Carnaval, o então presidente Michel Temer (MDB) decretou, em 16 de fevereiro de 2018, intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro. Durante dez meses e meio, a área foi coordenada pelo interventor federal, general Walter Souza Braga Netto.

A última intervenção federal, em Goiás, havia ocorrido em 1965, durante a ditadura militar. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal recebeu diversos pedidos, mas nunca aprovou uma intervenção em um estado. Em diversos julgamentos, a corte entendeu que a intervenção é uma medida extrema e que deve haver prova da continuidade da crise institucional para ser decretada.

Desde agosto de 2017, as Forças Armadas agiam no Rio para garantia da lei e da ordem (GLO). No entanto, o Ministério da Justiça considerou que essa medida não implicava efetivo e amplo controle sobre o estado. Portanto, era insuficiente — e não deveria ser banalizada.

Antes de decretar intervenção federal na segurança do Rio, a gestão Temer cogitou transformar a capital fluminense em território federal — como era até 1960, quando deixou de ser capital do Brasil. Documentos internos do Ministério da Justiça a que a revista eletrônica Consultor Jurídico teve acesso mostram que o governo estudou uma proposta de emenda à Constituição para federalizar a cidade.

A grande diferença da intervenção no Rio de Janeiro para a do Distrito Federal é que, na primeira, o comando da segurança pública foi atribuído às Forças Armadas, enquanto na segunda ele ficou nas mãos de civis.

Para advogados, colocar as Forças Armadas no controle da intervenção é inconstitucional. Afinal, a intervenção federal descrita no artigo 21, inciso V, da Constituição exige um interventor civil. Além disso, o uso de militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para exercer atividades de policiamento ostensivo, atividades próprias da Polícia Militar, contraria a Constituição e a Lei Complementar 97/1999.

A intervenção federal no Rio ajudou a reduzir a ocorrência de crimes patrimoniais, como roubo de cargas. Por outro lado, houve crescimento de mortos pelas forças de segurança, tendência que continuou nos anos seguintes. Também reinseriu de vez militares na política — tanto que o interventor, Braga Netto, foi ministro da Casa Civil e da Defesa do governo de Jair Bolsonaro (PL) e candidato a vice-presidente em sua chapa em 2022.

Logo na largada, a gestão Bolsonaro tinha oito oficiais das Forças Armadas como ministros, número superior aos dos governos dos cinco presidentes da ditadura militar: Castello Branco, Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo. O percentual permaneceu semelhante durante todo o mandato.

Depois de anos criticando um suposto aparelhamento do Estado pelo PT, Bolsonaro — que é capitão reformado do Exército — aumentou em 122% o número de militares em cargos políticos. De acordo com levantamento do Tribunal de Contas da União feito em 2018, último ano do governo Temer, havia 2.765 integrantes das Forças Armadas em postos civis do governo federal. Em 2021, esse número havia chegado a 6.157.

Amparado pelo histórico de golpes promovidos pelas Forças Armadas no Brasil, Bolsonaro passou os quatro últimos anos flertando com uma intervenção militar. No atentado contra os prédios dos três Poderes em Brasília, bolsonaristas pediam que o Exército agisse. A dúvida é se os militares vão aceitar sair da política e voltar para a caserna.

Intervenção em Roraima
Em 7 de dezembro de 2018, Temer decretou intervenção federal em Roraima. Diferentemente das intervenções no Rio de Janeiro, no mesmo ano, e agora no Distrito Federal, aquela se deu em toda a administração estadual, não só na área de segurança pública.

A decisão decorreu da crise na segurança pública e penitenciária na região. Agentes penitenciários do estado haviam parado de trabalhar, e policiais civis haviam deflagrado paralisação de 72 horas em razão de meses de salários atrasados. Policiais militares, que não podem fazer greve, receberam o apoio de suas mulheres, que bloquearam as entradas e saídas de batalhões como forma de protesto.

No início de novembro, a Procuradoria-Geral da República já havia pedido a intervenção federal "imperiosa e urgente" no sistema penitenciário do estado, devido ao risco de rebeliões. Em seu pedido, a PGR descreveu situações, baseadas em relatórios do Ministério Público, como falta de separação entre detentos de regimes aberto, semiaberto e fechado, atraso no pagamento de salários de agentes penitenciários, fornecimento de comida azeda e insuficiente aos presos e falta de combustível para transportar os presos para audiências.

Michel Temer nomeou o governador eleito Antonio Denarium (PSL) para ser o interventor no período. Com isso, a governadora Suely Campos (PP) foi afastada do cargo.

Embora a intervenção em Roraima não tenha sido militar, como a do Rio, teve integrantes das Forças Armadas em postos-chave, como o general Eduardo Pazuello, que assumiu a Secretaria estadual da Fazenda no período.

Durante a epidemia de Covid-19, Pazuello foi nomeado ministro da Saúde por Bolsonaro. O militar teve uma gestão desastrosa. Ele liberou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da doença, como a cloroquina, tentou ocultar a divulgação do número de mortos pelo coronavírus, atrasou a compra de vacinas e demorou a agir no colapso dos hospitais de Manaus.

Ainda militar da ativa, participou de comício de Bolsonaro em 2021. Com isso, violou o Estatuto dos Militares e o Regulamento Disciplinar do Exército, que proíbem integrantes das Forças Armadas de participarem de manifestações coletivas de caráter político. O Exército arquivou a apuração sobre o episódio afirmando que "não restou caracterizada a prática de transgressão disciplinar por parte do general Pazuello".

O ex-ministro foi eleito deputado federal em 2022 pelo PL do Rio de Janeiro, sendo o segundo candidato mais votado do estado, com 205.324 mil votos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!