Plano populista

Para especialistas, intervenção federal no RJ é inconstitucional e não dá resultados

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16 de fevereiro de 2018, 18h42

Em tese, a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro é autorizada pela Constituição. Do jeito que foi feita pelo presidente Michel Temer, no entanto, ela é inconstitucional e não vai funcionar. Segundo especialistas ouvidos pela ConJur, a intervenção federal não autoriza o governo a substituir um governo civil por um militar. E, na prática, não deve ter grandes impactos na criminalidade do estado.

Outro problema é a intenção do presidente Michel Temer de revogar o decreto temporariamente se ele conseguir votos para aprovar a reforma da Previdência, para depois retomar a intervenção. É que a intervenção federal impede qualquer reforma constitucional. Se Temer seguir com o plano, "cometerá fraude à Constituição", diz o procurador de Estado de São Paulo Olavo Alves Ferreira. Nesse caso, diz ele, caberia mandado de segurança para controle judicial preventivo pelo Supremo Tribunal Federal.

Tomaz Silva/Agência Brasil
Violência no Rio não deve diminuir com União comandando segurança local.
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De acordo com o decreto que autoriza a intervenção, a intervenção do governo federal no Rio vai ficar limitada à segurança pública. Dessa maneira, o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) continua no comando da administração, mas não tem poderes no combate à criminalidade, que ficará nas mãos do general Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste, nomeado interventor. Substituindo o secretário de Segurança, Roberto Sá, o militar liderará as polícias civil e militar e os bombeiros.

E aí está a inconstitucionalidade. O parágrafo único do artigo 2º do decreto deixa claro que o cargo de interventor é de natureza militar, mas a intervenção federal descrita no artigo 21, inciso V, da Constituição exige um interventor civil. É o que diz a advogada Eloísa Machado, professora de Direito Constitucional da FGV Direito SP.

“A intervenção trata da substituição temporária e excepcional de uma autoridade estadual civil por uma federal civil. Não de uma autoridade civil por uma militar. O interventor tem poderes de governo, e governo, pela Constituição, até agora, só é civil", escreveu a professora, no Facebook. "O interventor pode ser militar, mas se submete às regras e à jurisdição civil, ocupando temporariamente cargo civil, como já menciona a Constituição. Deixar que todas as decisões do interventor, durante todo o tempo que durar a intervenção, sejam submetidas à jurisdição militar é um atentado à Constituição, ao poder civil e à democracia."

Outra inconstitucionalidade é que o decreto foi editado sem que o Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional se pronunciassem sobre a intervenção no Rio, avalia o constitucionalista Nestor Castilho Gomes, do escritório Bornholdt Advogados.

Os artigos 90, inciso I, e 91, parágrafo 1º, inciso I, atribuem a esses órgãos competência para opinar sobre intervenções federais, diz. “Apesar de a Constituição não especificar o momento da consulta, a doutrina majoritária entende que a consulta deve ser feita antes da edição do decreto”, afirma Gomes.

Reforma da Previdência
Pela regra constitucional, o decreto precisa ser aprovado pelo Congresso. As lideranças partidárias da Câmara já marcaram reunião para discutir a intervenção para esta segunda-feira (19/2). O texto constitucional também dita que, enquanto durar a intervenção, não podem tramitar propostas de emendas à Constituição. Como o decreto prevê a interferência até 31 de dezembro, a ação no Rio deveria sepultar, por ora, a reforma da Previdência, uma PEC.

Entretanto, o presidente Michel Temer já disse que pretende suspender a intervenção se achar que terá votos suficientes para aprovar a reforma.

O ministro da Defesa, Raul Jungmann, explicou o plano. O presidente irá revogar o decreto e editar outro para garantia da lei e da ordem, como o que está em vigor no Rio desde o fim de agosto, mas com mais poder para as Forças Armadas. Se a reforma for aprovada, Temer publicará outro decreto reinstituindo o comando da União sobre a segurança fluminense.

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Para jurista Lenio Streck, seria inconstitucional "pausar" intervenção no Rio para votar reforma da Previdência.
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Seria uma manobra inconstitucional, afirma o constitucionalista Lenio Streck. "Se a intervenção federal tiver como medida a ordem pública, como o presidente da República pode saber de antemão que pode suspendê-la e depois retomá-la? Uma intervenção federal termina quando cessam os seus motivos, como estabelece o artigo 36, parágrafo 4º, da Constituição", analisa.

Já Olavo Alves Ferreira diz que o plano revela a intenção do governo de fraudar o mandamento constitucional para a intervenção. "É o que se chama inconstitucionalidade teleológica por desvio de finalidade. O decreto só pode ser revogado se não houver mais necessidade de intervenção. O presidente não pode é simular uma situação fática para revogar o decreto em nome de um interesse político, diz o procurador de São Paulo.

Do mesmo lado está o Sindicato dos Advogados do Rio de Janeiro. Em nota, a entidade classificou o plano de Temer para votar a reforma da Previdência de "novo golpe". O presidente da entidade, Álvaro Quintão, também disse que as Forças Armadas não estão preparadas para cuidar da segurança pública e que o uso delas para essa função lembra o período da ditadura militar (1964-1985).

O presidente da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, afirmou que a intervenção só mostra "a completa incapacidade do governo estadual". Em nota, a OAB-RJ afirma ainda que "as recentes experiências com a convocação do Exército às ruas tampouco obtiveram o resultado adequado."

Poder de polícia
Raul Jungmann também disse que a intervenção federal no Rio não dará às Forças Armadas poder de polícia. Nem poderia – o uso de militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para exercer atividades de policiamento ostensivo, atividades próprias da Polícia Militar, contraria a Constituição e a Lei Complementar 97/1999, segundo profissionais do Direito ouvidos pela ConJur quando Temer autorizou operações para garantia da lei e da ordem no Rio em 2017.

Para Lenio Streck, o uso de militares deve ser restrito e restritivo. A seu ver, os oficiais devem agir para preservar o país e suas fronteiras. Internamente, eles podem atuar com logística, inteligência, comunicação e instrução. “Fora disso, o uso é inconstitucional”, destacou o colunista da ConJur.

Nessa mesma linha, o defensor público-geral do Rio de Janeiro, André Luís Machado de Castro, afirmou que a segurança pública é uma tarefa que envolve diversos órgãos das três esferas federativas, mas cada um deles deve agir dentro de suas atribuições. “As Forças Armadas têm diversas e importantíssimas funções, para as quais são treinados e armados. Mas patrulhamento ostensivo não é uma delas. Essa atividade cabe à Polícia Militar.”

Já o criminalista Fernando Augusto Fernandes disse que o uso de militares para patrulhar as ruas do Rio “é uma inconstitucionalidade continuada e reiterada” iniciada na Eco 92, a conferência da Organização das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, e repetidas em grandes eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. E mais: a medida tem traços da ditadura militar que vigorou por 21 anos no país, apontou.

Por outro lado, Ana Paula de Barcellos, professora de Direito Constitucional da Uerj, entende que a Constituição e o artigo 15, parágrafos 2º a 6º, da LC 97/1999, permitem o emprego de militares em operações de garantia da lei e da ordem, desde que elas tenham área e duração delimitadas.

A promotora de Justiça Andréa Amin entende que se a atuação das Forças Armadas consistir no apoio às operações coordenadas pela Secretaria de Segurança, não há irregularidade.

Federalização da segurança
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que, além da intervenção, é preciso endurecer a legislação para combater o crime organizado e transferir o controle da segurança pública dos estados para a União.

"Precisamos aprimorar a legislação de combate ao tráfico, com leis mais duras de forma que puna. Para que de forma definitiva o governo federal possa assumir o controle da segurança publica. É preciso dar um passo a frente. As leis precisam ser mais duras”, declarou.

O professor da Uerj Christian Edward Cyril Lynch sustenta que a interferência no Rio prova a falência da atribuição exclusiva da segurança aos estados, instituída pela Constituição de 1988, diante da expansão territorial da criminalidade.

Ele afirma ainda que a medida demonstra o fracasso do Rio de Janeiro, criado em 1975 pelo regime militar com a “fusão artificial” dos antigos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Em sua opinião, não há solução duradoura para a cidade do Rio e a Baixada Fluminense que não passe pela refederalização definitiva da segurança pública na área.

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Rio de Janeiro só voltaria ao auge se cidade fosse federalizada, diz Christian Lynch.
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Para isso, seria preciso tornar a região federal novamente, como ela era até 1960, quando Brasília virou capital do país. O professor sugere dois modelos: ou o Rio vira um segundo distrito federal, como há em países como Alemanha, Chile e Rússia, ou se cria um novo ente federativo na forma de uma “cidade federal”, desligada do restante do estado.

“Enquanto isso não ocorrer, a antiga capital do Brasil continuará a ser uma dor de cabeça para o resto do país e do estado do Rio, que teve de passar a carregá-la como um fardo depois de 1975, em detrimento de Niterói e do resto do interior”, opina.

Eficácia duvidosa
Vendida pelo governo como a solução para o aumento da criminalidade no Rio de Janeiro, a ação das Forças Armadas, em regra, entrega menos do que promete. Levantamento dos jornais O Globo e Extra mostrou que, no geral, o número de roubos a pedestres, de veículos, de cargas e homicídios aumentou durante as 12 ações militares no Rio nos últimos 25 anos.

De agosto de 2017 – quando as Forças Armadas passaram a atuar no estado – até novembro, os registros de roubos de veículos passaram de 17.877 (no mesmo período de 2016) para 22.346, um aumento de 25%. Os homicídios dolosos subiram 2% – de 2.106 para 2.151. Já os roubos de cargas caíram 3% (4.397 ocorrências em 2016 contra 4.265 em 2017), e os roubos a pedestres, 5% (de 41.549 para 39.410), conforme o Instituto de Segurança Pública.

Para o professor de Direito Penal da UFRJ Salo de Carvalho, o histórico das operações militares para "garantia da lei e da ordem" no Rio mostra que esse tipo de ação não funciona. Pior: aumenta o nível de violência na cidade.

“São medidas meramente paliativas e que, em vez de solucionar o problema, aumentam o nível de violência", afirma. "A violência institucional das Forças Armadas radicaliza a crise. Trata-se de apenas uma aparente e momentânea sensação de segurança, que a população ‘compra’ devido ao momento de crise. Mas, inegavelmente, isso não resolve o problema e legitima formas ainda mais violentas de controle social."

O quadro dessas ações já está desenhado, ressalta o criminalista. Haverá intervenções “muito violentas, com algumas prisões, muitas mortes de inocentes e, após a saída, a retomada do espaço territorial pelos grupos que anteriormente o dominavam”.

Segundo o docente, as experiências nacionais e internacionais mostram que a violência em áreas específicas não se resolve com políticas de contenção, mas de integração. O problema se resolve aumentando o Estado Social, e não o Estado Penal, defende.

Nessa linha, Salo de Carvalho defende o fim da política da guerra às drogas. A medida, sempre sugerida por especialistas, não parece ter boa acolhida no governo Temer. Tanto que, recentemente, o ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, propôs um plano de combate a entorpecentes ainda mais restritivo e focado na abstinência – método considerado ultrapassado por profissionais da área.

Por outro lado, a criminalidade vem caindo em países que descriminalizaram as drogas. No Uruguai, os delitos relacionados ao narcotráfico sofreram queda de 18% após o início da venda de maconha em farmácias.

Lenio Streck também não crê que a intervenção federal resolva o problema da criminalidade no Rio. “Será um paliativo. Esse tipo de intervenção federal é como Tylenol: baixa a febre, mas não cura a infecção”, diz. Ele ainda lembra que segurança pública é questão de polícia, não das Forças Armadas, e receia que a moda pegue.

Eloísa Machado é outra que entende que a militarização da segurança pública é um “enorme problema”. E não há nenhuma evidência de que esse plano irá solucionar a criminalidade do estado.

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