Contas à vista

Autonomia do BC, sem impessoalidade e equidistância, tende à captura

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

    View all posts

21 de fevereiro de 2023, 8h00

Na próxima sexta-feira (24/2), o regime jurídico de autonomia do Banco Central (BC) alcançará seu segundo ano de vigência. Em 2021 foi promulgada a Lei Complementar 179, que "define os objetivos do Banco Central do Brasil e dispõe sobre sua autonomia e sobre a nomeação e a exoneração de seu Presidente e de seus Diretores; e altera artigo da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964".

Spacca
Em breves linhas, cabe resgatar que três foram, de fato, as nucleares finalidades da LC 179/2021:

1) Fixação de pluralidade de objetivos (zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego), com prevalência do objetivo fundamental de assegurar estabilidade de preços, conforme dispõe o artigo 1º da LC 179;

2) Concessão de "autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira", mediante a natureza jurídica de "autarquia de natureza especial caracterizada pela ausência de vinculação a Ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica", com garantia de investidura a termo dos dirigentes do BC (mandato de quatro anos), na forma dos artigos 4º a 6º da LC 179/2021;

3) Redefinição da relação do BC com o Conselho Monetário Nacional (CMN), por meio da alteração da Lei 4.595/1964, sobretudo para limitar o papel estratégico desse Conselho à estrita atribuição de fixar as metas de política monetária, na forma do artigo 2º. Em contrapartida, foram conferidas àquela autarquia maiores competências de regulação infralegal sobre as políticas cambial, creditícia e monetária e também foram revogados diversos dispositivos que fixavam competências do CMN, à luz dos artigos 7º e 13 da citada lei complementar.

Tamanha majoração de liberdade decisória em favor do BC, porém, somente veio acompanhada de duas condicionantes:

1) Curta quarentena posterior fixada no artigo 10, III, da LC 179/2021, segundo o qual é vedado aos dirigentes do BC "participar do controle societário ou exercer qualquer atividade profissional direta ou indiretamente, com ou sem vínculo empregatício, junto a instituições do Sistema Financeiro Nacional, após o exercício do mandato, exoneração a pedido ou demissão justificada, por um período de 6 (seis) meses".

2) Dever de apresentação no Senado, em arguição pública semestral, de relatório de inflação e relatório de estabilidade financeira, para motivar as decisões tomadas no semestre anterior, tal como previsto no artigo 11 da LC 179.

Muito embora o senso comum realce particularmente o mandato fixo conferido aos dirigentes do Banco Central, a bem da verdade, a maior autonomia decorrente da LC 179/2021 reside na ampliação das suas competências normativas para regular as políticas cambial, creditícia e monetária em sede de atos infralegais. Centenas de bilhões de reais são opaca e facilmente deliberados pelo BC, sem as mesmas balizas das leis do ciclo orçamentário e sem suficiente clareza para a sociedade, tal como debatemos aqui.

No aludido regime de autonomia, foi adotada uma fórmula genérica para que o Congresso delegasse a competência de editar normas sensíveis sobre finanças públicas ao Banco Central. Trata-se da seguinte locução inserida ao final dos incisos V, XII e XV do artigo 10 da Lei 4.595/1964 pelo artigo 7º da LC 179/2021: "Consoante remuneração, limites, prazos, garantias, formas de negociação e outras condições estabelecidos em regulamentação por ele editada".

É temerário conferir tanto poder regulamentar a uma instância supostamente autônoma em relação aos influxos da democracia, tamanha a sua capacidade de impactar os custos e riscos da ação governamental e, sobretudo, de arbitrar perdas e ganhos nos mercados cambial, creditício e monetário. O ônus da motivação imposto ao Banco Central é proporcionalmente pequeno em face dos riscos de captura a que a autarquia está exposta institucionalmente, sendo pragmaticamente cosméticas as condicionantes acima mencionadas de uma quarentena posterior de seis meses e dos relatórios semestrais a serem apresentados ao Senado.

A esse respeito, André Roncaglia denunciou como abusiva a autonomia do Banco Central, por ele estar exposto a um destacado risco de conflito de interesses, na medida em que "o boletim Focus compila as expectativas de inflação a partir de uma amostra de 130 bancos, gestores de recursos, empresas do setor real, consultorias e outras. […] A política monetária precisa ir além dos interesses de mercado e incorporar a democracia".

Se o público-alvo monitorado acerca da expectativa de inflação pelo Banco Central tem indiscutível e direto interesse em manter e/ou ampliar a taxa básica de juros, efetivamente se instaura um considerável risco de captura na relação entre autarquia reguladora e mercado financeiro por ela regulado. Para fins de contraste, vale a pena lembrar a equidistância e a impessoalidade dos institutos de consulta e audiência públicas previstos nos artigos 31 a 34 da Lei Federal 9784/1999.

Um interessante exemplo é o modo como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) lidam com as pressões da indústria farmacêutica, abrindo ampla e isonômica oportunidade de consulta pública para que toda a sociedade se manifeste a respeito dos registros e incorporações de medicamentos, como se pode ler aqui e aqui.

Todavia, diferentemente da Anvisa e da Conitec, o Banco Central, além de não adotar o modelo impessoal e equidistante de consultas e audiências públicas, tem a composição do seu quadro dirigente histórica e umbilicalmente ligado — em termos acadêmicos e profissionais — ao mercado financeiro por ele regulado. Eis a avaliação do cientista político Adriano Codato, presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e um dos organizadores do livro "Os mandarins da economia — Presidentes e diretores do Banco Central do Brasil" (Almedina, 2022).

"A gente mensurou, avaliando quase 90 diretores que passaram pelo banco entre o governo de José Sarney e o segundo mandato de Dilma Rousseff, foi o seguinte: nas áreas diretamente encarregadas da política econômica — por exemplo, a definição da taxa de juros —, os diretores são muito pouco independentes do mercado financeiro. Como regra geral, eles vêm do mercado financeiro para o governo, e em seguida fazem o caminho contrário.
[…] A falta de independência em relação ao mercado financeiro é uma discussão importante. Porque, quando o Banco Central define a taxa básica de juros da economia, ele está também definindo a lucratividade das empresas que compram e vendem dinheiro. Ou seja, o que o BC decide afeta diretamente o interesse dessas empresas. Isso não é uma questão de corrupção, mas algo que chamamos, no livro, de uma espécie de captura cultural. As pessoas que dirigem o BC são formadas a partir de valores específicos que estão muito de acordo com os do mundo financeiro.
[…] A grande maioria dos diretores que estavam em funções que definiam a política monetária saíram pela porta giratória, ou seja, foram do Banco Central para o mercado financeiro. O caminho futuro da carreira — o emprego após a saída do BC — tem impacto direto nas preferências e no comportamento dos diretores. Ninguém vai defender uma política que contrarie os interesses dos futuros empregadores. Assim, a porta giratória funciona como uma forma de promessa para o futuro, criando um compromisso implícito do diretor com as instituições do sistema financeiro. Isso foi bem estabelecido pela literatura internacional na área.
[…] Por outro lado, essa mesma conexão tende a funcionar, também, como a causa primeira da captura intelectual. Um economista que teve muito treino em finanças e atuou, por exemplo, no mercado de derivativos, dificilmente sustentaria que esse mercado oferece perigo para a estabilidade do sistema financeiro ou da economia como um todo. Nessa interpretação, o regulador seria mais leniente não por visar benefícios materiais futuros no setor regulado, mas por sua socialização — educacional e profissional — nesse ramo."

É importante destacar o quanto o BC impacta a vida de todas as pessoas físicas ou jurídicas no país. A definição da taxa básica de juros para gerir as expectativas acerca da inflação, por exemplo, tem ampla aptidão de majorar rápida e abruptamente o endividamento público. Como bem noticiado pela BBC News Brasil, a taxa Selic saiu do piso histórico de 2%, após 12 alterações sucessivas iniciadas em 17 de março de 2021, até chegar a 13,75% em 3 de agosto de 2022, patamar onde se encontra desde então.

A repercussão fiscal dessa escalada dos juros para a dívida pública superou o montante de todos os créditos extraordinários abertos pela União e efetivamente pagos no período de 2020 a 2022 para fazer face à pandemia da Covid-19. Apenas neste ano de 2023, a projeção do Banco Inter noticiada pelo Estadão é de que "a despesa do setor público com juros da dívida chegue a R$ 777 bilhões no ano, um recorde histórico". "Se isso se confirmar, serão R$ 190,6 bilhões ou 32,5% a mais do que o valor despendido em 2022, de R$ 586,4 bilhões."

A escolha sobre a intensidade e a velocidade na escalada recente dos juros tem sido alvo de várias críticas, a exemplo dos questionamentos de André Lara Resende:

"Não há como deixar de concluir que ou o Banco Central não está atuando como deveria para evitar movimentos especulativos, ou as pressões sobre o câmbio advêm da percepção de riscos políticos e institucionais. Riscos que certamente não serão revertidos pela alta dos juros.
Assim como é impossível encontrar uma justificativa fundamentada para negar recursos para a crise sanitária e cortar investimentos indispensáveis para a recuperação da economia, é também impossível encontrar lógica na defesa da alta dos juros. Elevar os juros desestimula o investimento, aumenta o custo da dívida e obriga a mais cortes de gastos essenciais, na tentativa de equilibrar o orçamento.
[…] Apesar de a ligeira alta da inflação ser decorrente de uma pressão externa transitória, o mercado financeiro elevou toda a estrutura a termo dos juros da dívida e passou a pressionar, com apoio do seu batalhão de economistas e analistas na mídia, para que o Banco Central elevasse os juros. […]
O impacto fiscal de uma alta no custo da dívida é enorme. […] Como a dívida é interna, em moeda nacional, detida por brasileiros, trata-se de uma transferência direta […] do Estado para o sistema financeiro e seus clientes que foram capazes de poupar e comprar títulos públicos.
Estranho que o sistema financeiro pressione pela alta dos juros? Trata-se de advocacia em causa própria, lobby, na melhor das hipóteses um caso de conflito de interesse, qualquer coisa, menos um argumento racional com sustentação teórica e evidência empírica."

A pergunta que fica, em face dos consideráveis custos e riscos decorrentes da autonomia do BC, é se a dívida pública brasileira poderia ser afetada e, assim, expandida — ilimitadamente — em decorrência das ações dessa autarquia nas políticas monetária, cambial e creditícia. O argumento de que se trata de âmbito de absoluta discricionariedade técnica não é suficiente, nem adequado para responder à pergunta sobre se a autoridade monetária pode — sem confronto com qualquer limite, baliza ou necessidade de fonte de custeio — gerar despesas financeiras e, assim, implicar avanço continuado e irrestrito da dívida pública.

É preciso que lhe sejam impostos maiores ônus argumentativos em relação à sustentabilidade da capacidade de financiamento estatal e à transparência das suas ações, para evitar conflito de interesses entre a autoridade monetária e o mercado financeiro por ela regulado.

Selene Nunes[1] considera que "um banco central independente poderia transformar-se num quarto poder, em virtude da sua atuação histórica em operações de natureza quase-fiscal, com o agravante de que não teria suporte ou aprovação da sociedade". Segundo tal autora, a demanda por maior autonomia (já que juridicamente é impossível falar-se em "independência") do Banco Central é marcada pela noção equivocada de que essa autarquia tudo poderia fazer — mesmo sob o custo do avanço ilimitado da dívida pública — em nome da gestão da política monetária e da sua "discricionariedade técnica", porque caberia "à política fiscal todo o ônus do ajuste"[2].

A perda de transparência, a redução da capacidade governamental de intervir nas políticas monetária, cambial e creditícia, a submissão da política fiscal à monetária e a impossibilidade do debate sobre alternativas são fortes indícios de que a credibilidade que se busca alcançar com a autonomia do BC não é critério referido à sociabilidade democrática, mas apenas ao mercado financeiro.

Do ponto de vista jurídico, fato é que, na ausência de limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União, na falta de previsão na LDO de meta vinculante de resultado nominal e montante da dívida pública, e diante da possibilidade de o BC ilimitadamente lançar os custos de sua atuação sobre a política fiscal, efetivamente todo o orçamento federal tem sido submetido — de forma desarrazoada — à instável e "discricionária" definição das políticas monetária, cambial e creditícia por aquela autarquia.

Essa tensão tem gerado, por maior que seja o ajuste fiscal obtido com a contenção apenas de despesas primárias (tal como imposto pelo teto dado pela Emenda 95/2016), profundo agravamento da dívida pública e, consequentemente, irresponsabilidade fiscal que asfixia, no médio prazo, a capacidade estatal de promover políticas públicas.

Constitucionalmente não é razoável que a dívida pública avance de forma ilimitada contra os direitos e garantias fundamentais, sob o fundamento de que as políticas monetária, cambial e creditícia devem ser mantidas nos moldes atuais, ou seja, sem qualquer questionamento pelos demais poderes da República. A autonomia do BC e sua discricionariedade técnica são poderes atrelados a deveres inscritos na própria norma que lhe atribuiu competência para cumprir todos os objetivos arrolados pelo artigo 1º da LC 179/2021.

Todavia, ao longo dos seus dois anos de autonomia formal, percebemos o quão pouco discursiva tem sido a gestão da dívida pública e, notadamente, o quão opacos são os impactos da atuação do Banco Central. Eis um tema sobre o qual precisamos nos debruçar em busca de uma compreensão sistêmica e mais equitativa das finanças públicas brasileiras.

Afinal, sem impessoalidade e equidistância tanto em face dos agentes políticos, quanto em face das instituições do mercado financeiro que deveriam ser reguladas pela autoridade monetária, a autonomia do BC tende a se perverter em abuso de poder.

Desde o advento da LC 179/2021, é cada vez mais evidente e severo o risco de que as decisões sobre taxa básica de juros, câmbio e crédito possam ser manejadas primordialmente em prol do alcance de finalidades alheias ao mister legal do Banco Central, tamanha a sua exposição a hipóteses de indiscutível propensão a captura e conflito de interesses.


[1] NUNES, Selene Peres Peres. Relacionamento entre tesouro nacional e banco central: aspectos da coordenação entre as políticas fiscal e monetária no Brasil. 1999. 159f. Dissertação (Mestrado em Economia) — Departamento de Economia, Universidade de Brasília, Brasília, 1999, p. 35.

[2] NUNES, 1999, p. 146.

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!