Contas à Vista

Não há limites nem clareza sobre impactos fiscais de decisões do BC e Carf

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

7 de fevereiro de 2023, 8h00

Há instâncias administrativas no Brasil que possuem tamanho poder decisório, que são capazes de impactar as nossas finanças públicas por meio de atos infralegais de forma tão volumosa quanto o Orçamento de Guerra. Em se tratando do Banco Central (BC) e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a repercussão tende a superar a casa de centenas de bilhões de reais em lapso temporal, por vezes, equivalente ao do próprio Orçamento de Guerra, ou seja, dentro de alguns poucos meses.

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Todavia há disparidades consideráveis entre os níveis de transparência e vigilância democrática verificados na Emenda Constitucional nº 106, de 7 de maio de 2020, de um lado, e a larga liberdade de interpretação infralegal de que gozam o BC e o Carf no âmbito das suas respectivas competências, de outro.

O relativamente alto grau de opacidade e a falta de sujeição a limites fiscais explicam, em grande medida, a ordem de grandeza das decisões de tais instâncias administrativas, sem que a sociedade brasileira sequer tenha clareza a esse respeito.

As mais importantes regras fiscais brasileiras não conseguem alcançar e, portanto, são relativamente ineptas para balizar a repercussão fiscal das decisões do BC e do Carf:

1) Despesas financeiras e quaisquer receitas estão fora do arcabouço do teto, que só controla as despesas primárias.

2) A meta de resultado primário deveria gerar algum nível (ainda que discreto) de constrangimento sobre a gestão da arrecadação, mas não há qualquer regime análogo ao contingenciamento para a inibição da receita tributária.

A bem da verdade, a frustração do artigo 11 da Lei de Responsabilidade Fiscal se dá mediante camadas superpostas de distorções, entre as quais citamos, de forma exemplificativa:

2.1) renúncias fiscais perenes e sem monitoramento das contrapartidas prometidas no ato da sua concessão;

2.2) sonegação pragmaticamente premiada por recorrentes programas de reparcelamento de débitos tributários,

2.3) dívida ativa trilionária com baixo índice de recuperação, o que tende a servir de pretexto para propostas da sua securitização em rota de burla ao controle do endividamento público mediante antecipação de recebíveis, bem como impondo esvaziamento indireto dos pisos em saúde e educação.

2.4) elevada litigiosidade em recursos administrativos e demandas judiciais, a qual — direta ou indiretamente — revela o sistema economicamente racional de desincentivo ao recolhimento tempestivo e espontâneo de tributos no país.

3) A regra de ouro deveria alcançar as despesas financeiras com os juros, porque esses correspondem a despesas correntes que não poderiam ser cobertas por receitas de capital. Há, porém, uma controversa intepretação que acomoda — no bojo da regra de ouro — a maior parte das despesas com juros, como se fossem ficticiamente amortização da dívida pública (e, portanto, despesas de capital). A esse respeito, é referencial o estudo acerca das falhas de concepção e de aplicação da regra de ouro no âmbito da União, formulado pelos consultores legislativos do Senado Vinícius Leopoldino do Amaral, Maurício Ferreira de Macedo e Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt, que se encontra disponível aqui.

4) Por fim, é oportuno consignar que ainda não houve a regulamentação dos limites de dívida mobiliária e consolidada da União, o que simplesmente impossibilita um monitoramento mais detido da trajetória das despesas financeiras e seu impacto na dívida pública federal, tal como bem concluiu o Acórdão TCU 1084/2018-Pleno.

De plano, importa alertar que não temos por finalidade debater, aqui, o mérito das competências do Banco Central e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, mas tão somente interessa-nos pautar a necessidade de que haja maior transparência acerca da ordem de grandeza dos impactos fiscais das suas respectivas interpretações infralegais.

As decisões do BC impactam o volume global das despesas financeiras e, por conseguinte, tendem a majorar a dívida pública brasileira, dada a inexistência de superávit primário capaz de mitigar o peso daquelas. Ao longo do período de 2011 a 2019, Luís Carlos de Magalhães, em recente e contundente artigo publicado no jornal Valor, estimou que "o acréscimo de R$ 2,125 trilhões no estoque da DPMFi [Dívida Pública Mobiliária Federal interna] decorreu do saldo líquido dos juros apropriados — juros reais e correção monetária — pelo carregamento de títulos federais em carteira no mercado". Magalhães conclui, de forma inequívoca, no sentido de que "a dinâmica de crescimento da DPMFi ocorreu pela incorporação do serviço de juros nominais, inclusive quando se apurou superávit primário corrente no período".

Há tempos, aliás, André Lara Resende tem suscitado como verdadeiro contrassenso o modo como o Banco Central tem fixado a taxa básica de juros, diante da sua considerável repercussão para a gestão da dívida pública brasileira:

"Dado que a dívida pública é hoje 90% do PIB, uma elevação de 4 pontos de percentagem na taxa básica, como antecipa o mercado para o fim do ano, implica um aumento de 3,6% do PIB nas despesas do governo. São aproximadamente R$ 267 bilhões, valor apenas ligeiramente inferior aos R$ 294 bilhões da totalidade do auxílio emergencial até o fim do ano passado. Esse valor é equivalente a mais do dobro de todo o investimento público anual dos últimos anos.

O auxílio emergencial exigiu uma emenda constitucional para ser aprovado. Sua extensão, em valores muito reduzidos neste ano, provocou um acalorado debate sobre se poderia ou não ser excluído do teto dos gastos. Já a alta dos juros depende apenas de uma decisão do Banco Central. O teto não vale para as despesas financeiras do Tesouro, que são determinadas pela taxa de juros fixada pelo Banco Central. Enquanto o auxílio emergencial vai para a população necessitada, desamparada pela perda do emprego e da renda, o aumento das despesas financeiras do governo vai para os detentores da dívida."

O Carf, em igual medida, revela tensões hermenêuticas no exame administrativo dos processos tributários federais, que podem alcançar cifras expressivas. Ricardo Fagundes e Wilson Luiz Müller (artigo publicado aqui) noticiam que, apenas em 2022, houve cancelamento de R$ 108 bilhões em autuações, a partir de decisões do Carf favoráveis aos contribuintes, em patamar que alcançou 78% dos montantes que estavam em exame recursal naquele exercício.

A tensão presentemente causada pela volta do voto de qualidade em favor do Fisco é um sintoma de um mal-estar mais grave e estrutural. A esse respeito, é magistral a síntese empreendida por Robinson Barreirinhas e Gustavo Caldas:

"A discussão sobre a volta do voto de desempate pelo representante da Fazenda no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), tribunal administrativo que delibera em segunda e terceira instâncias os processos tributários federais, é uma excelente oportunidade para se debater francamente a evolução do atual modelo.

O Tribunal de Contas da União há tempos aponta que é insustentável levar mais de seis anos para concluir a análise de um processo. Pior ainda, esse longo período não soluciona as disputas. Somente 5% do valor é recolhido aos cofres públicos quando há decisão favorável ao fisco. Depois, o contribuinte leva a discussão para o Judiciário, com mais nove anos em média para concluí-la. O tempo de sobrevivência das empresas no Brasil é menor que isso.

[…] O momento é oportuno para rediscutir o disfuncional modelo brasileiro e evoluir para um em que o recurso administrativo seja célere, concluído em poucos meses, atendendo adequadamente às expectativas dos contribuintes. O voto de desempate é apenas uma medida urgentíssima, mas insuficiente."

Juridicamente, não se pode admitir que qualquer decisão governamental alcance a envergadura de centenas de bilhões de reais, sem que haja maiores transparência e balizas acerca do seu impacto, o qual, ao nosso sentir, deveria ser apreciado, no mínimo, como risco fiscal no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias.

Se até os créditos extraordinários para o enfrentamento da pandemia da Covid-19, no auge da calamidade sanitária em 2020, demandaram emenda constitucional e transparência em tempo real em portal próprio de monitoramento, igual cautela deveria incidir sobre os expressivos impactos das decisões do BC e do Carf, mormente porque ambos estão expostos a elevados riscos de conflito de interesses e captura.

Em relação ao Carf, vale lembrar que não pagar tributos tempestiva e espontaneamente é algo racional no Brasil. Suspender administrativa e/ou judicialmente a sua exigibilidade é via cada vez mais manejada para, no limite, ser possível optar por aplicar os recursos daí decorrentes como capital de giro da atividade econômica, embolsá-los como margem de lucro ou aplicá-los em títulos da dívida pública.

Por sua vez, no que se refere ao BC, André Roncaglia bem sintetizou a disputa acerca da ordem temporal embutida no condicionamento da redução dos juros a que seja feito primeiro um renovado e ampliado esforço de ajuste fiscal:

"A ordem dos fatores aqui importa: cortando gastos, a taxa de juros cai, diminuindo o serviço de juros da dívida pública. Traduzindo: controle de gastos vale para infraestrutura, cultura, saúde, educação, funcionalismo e previdência públicos, mas não para o serviço de juros da dívida (que já passa de 5% do PIB). Farinha pouca, meu pirão primeiro."

Não é demasiado reiterar que BC e Carf são instâncias administrativas, com alto poder decisório, mas sem legitimidade política diretamente auferida das urnas e, portanto, seus pressupostos de autonomia técnica reclamam redobrada vigilância da sociedade sobre os riscos de captura e insulamento.

A pressão contra a revisão das metas de inflação, algo muito bem apontado por André Roncaglia, André Lara Resende e, indiretamente, por Luís Carlos de Magalhães [1], tem atrás de si interesses muito bem remunerados na tendência de manutenção/elevação da taxa básica de juros, a um alto custo para a dívida pública, bem como para o setor produtivo da economia.

A interdição temática que é imposta a essa pauta beira o terrorismo analítico, como se fosse a ruptura de uma cláusula pétrea ou dogma da política monetária, quando, na verdade, é uma opção com razoável grau de discricionariedade do Conselho Monetário Nacional, o qual arbitra, estruturalmente, ganhadores de perdedores na casa de centenas de bilhões de reais.

Semelhante impasse se sucede, guardadas as devidas proporções, com o modo de operação do Carf, na medida em que há sempre a pretensão de tratar o tema como uma seara estritamente técnica e neutra, quando, a bem da verdade, envolve camadas teóricas de acomodação da iniquidade tributária que o país acumulou ao longo do tempo.

A Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) elaborou denso estudo denominado "Barões da Dívida Ativa", no qual há evidências de que os maiores devedores de tributos no país operam, no limite, de modo análogo à gestão de passivos das Lojas Americanas: não pagar, atrasar e sonegar tributos é estratégia de negócios para muitos, quiçá para a maioria deles.

Daí decorre a cínica proposta, como solução supostamente mais eficiente do ponto de vista econômico, de securitizar a dívida ativa, burlando os pisos em saúde e educação, majorando a dívida pública de forma tergiversadora e frustrando o dever republicano de pagar tributos conforme a capacidade contributiva.

Ao final desse ciclo de iniquidades, as pontas se encontram e se fecham: a riqueza subtributada é segura e muito bem remunerada na dívida pública, com liquidez quase imediata. Tal círculo vicioso implica a perda de atratividade do investimento produtivo e gera forte pressão predatória, mediante transferência de recursos públicos que amplia a concentração de renda no topo. Eis o núcleo oculto do orçamento de castas brasileiro, na medida em que gestão das receitas e despesas financeiras não são balizadas — de forma efetiva — pelas regras fiscais vigentes no país.

A liquidez decorrente da fuga à tributação entre os que têm maior capacidade contributiva é muito bem recompensada financeiramente na dívida pública, mas tal iniquidade é invisibilizada e naturalizada pelo teto de despesas primárias. Em suma, a tributação regressiva é o outro lado da moeda das despesas financeiras opacas e ilimitadas.

A circularidade desse regime merece reflexão sistêmica, o que somente será possível mediante o desvendamento dos riscos e elevados impactos ocasionados por sua roupagem administrativa supostamente neutra e técnica. É preciso debater aprimoramentos e testar alternativas, a despeito de o BC e o Carf pretenderem se manter como pragmaticamente intangíveis até mesmo ao amplo e democrático debate. Afinal, a quem aproveita interditar, ex ante, todos esses questionamentos? Quem teme o contraditório e a transparência?

 


[1] Segundo Magalhães, "esse é o 'nó górdio' da questão fiscal que o recém-instalado governo Lula vai ter que desatar: controlar o gasto catastrófico com juros. Essa tarefa vai exigir uma agenda de reformas complicadas — em razão dos grupos de interesse envolvidos — que altere o arranjo institucional da gestão da dívida pública e sua governança. Mas é inadiável que essa agenda de reformas esteja presente no debate público, pois são necessárias para que o Brasil escape da armadilha do baixo de crescimento".

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    é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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