Opinião

Caso Wallace e o perigo da polarização política no esporte

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7 de fevereiro de 2023, 12h17

Não é exatamente uma novidade que a polarização política em curso no país, com a radicalização de discursos, vem fincando raízes no desporto. O caso Carol Solberg, do vôlei de praia, foi apenas a ponta de um iceberg que agora parece emergir com mais clareza no caso de Wallace, do vôlei.

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Após os atos terroristas de 8 de janeiro, Wallace faz uma enquete na internet em que sugere assassinar o presidente Lula
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O desporto, como fenômeno sociológico que o é, não se encontra apartado das angústias e dilemas que se apresentam à sociedade, pois, antes de serem profissionais do desporto, os atletas são cidadãos e tem o direito de compartilhar suas opiniões políticas.

A questão no caso do desporto parece repousar nos limites desta manifestação e da atuação da justiça desportiva, já que não se pode impedir os atletas de expressarem suas opiniões políticas.

No caso Wallace, não se descuida de sua gravidade e necessidade de apuração de sua conduta no âmbito civil e criminal. Mas a principal preocupação deve ser sobre os limites punitivos no âmbito desportivo e a intervenção ostensiva do Estado em ambiente que, a rigor, goza de autonomia constitucional para justamente proteger-se da indevida intromissão estatal.

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No Mundial de 2018, Wallace e Maurício, jogando pela seleção brasileira de vôlei, fazem o 17 em quadra, número de Jair Bolsonaro nas eleições daquele ano
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Importante notar que a autonomia desportiva foi percebida como importante elemento da higidez desportiva já na Carta Olímpica de 1949, a primeira depois da 2ª Guerra Mundial, que passava a prever a independência e autonomia dos comitês olímpicos, buscando blindar o sistema de pressões externas que interferissem na dinâmica do desporto [1]. Já naquele momento, defendia Lyra Filho [2], um afastamento do desporto das paixões ideológicas ao defender que "há o direito próprio chamado a regular o movimento do desporto e a disciplinar a vida de relações do desporto, independentemente das religiões e das ideologias", indicando a importância de não se misturar elementos externos à prática desportiva, cujo objetivo, entendemos, deveria ser agregar e não alimentar dissensos alimentados por questões políticas externas.

Essa preocupação entre a separação desporto e Estado foi a origem do artigo 217, I, da Constituição, onde se garantiu a autonomia desportiva, defendendo Camargos [3] que as instituições desportivas devem ser afastadas de influências que não sejam detidamente relacionadas ao ambiente esportivo, liberando-se o desporto de intromissões indevidas, seja da esfera pública estatal, seja de esferas públicas não-estatais, privadas.

Não obstante, de maneira diversa do que ocorreu no caso Carol Solberg, o caso envolvendo o Wallace passou a contar com forte ingrediente interventivo, utilizando-se o Estado de seu aparato para intervir no campo desportivo ao solicitar ao COB (Comitê Olímpico do Brasil) e à CBV (Confederação Brasileira do Voleibol) a aplicação de penalidades no âmbito desportivo que podem levar à pena de banimento do atleta [4].

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No auge da pandemia, em 2020, Carol Solberg grita "fora, Bolsonaro" em quadra
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Ao contrário de Solberg, cuja manifestação política ocorreu em praça desportiva, no caso do atleta Wallace, sua infeliz manifestação foi reproduzida em suas redes sociais, fora do âmbito desportivo, sem qualquer ligação ao ambiente à sua atividade, o que torna a situação ainda mais complexa, ainda que de inegável gravidade, já que os discursos de ódio merecem total repúdio.

Não obstante, a Constituição traga em seu rol de garantias individuais, a liberdade de pensamento e expressão, é cediço que não existem direitos absolutos, merecendo reprimenda aquele que se utiliza de seu direito para o cometimento de crimes, sejam eles contra a honra, sejam eles contra o Estado democrático de Direito.

Contudo, a admissão de processos administrativos no âmbito desportivo com vistas a banir o atleta de sua atividade, além de atentar contra o direito social constitucionalmente garantido, já que é inegável que o atleta retira seu sustento de sua atividade desportiva, constitui-se em perigoso precedente, contra os quais deveriam as próprias entidades desportivas insurgirem-se, já que se apresentam como evidente mácula à sua autonomia.

Interessa apontar que a AGU (Advocacia Geral da União) apontou possível infringência a artigo 243-D, do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, cuja tipificação indica como ilícito desportivo incitar publicamente o ódio ou a violência. Ocorre que a manifestação do atleta não se decorreu se sua condição de profissional do desporto, tampouco na arena desportiva, não se podendo desprezar que a justiça desportiva apenas possui competência para as julgar as ocorrências em partidas ou competições internacionais amistosas disputadas pelas seleções representantes da entidade nacional de administração do desporto, na forma do artigo 25 do CBJD. Imaginar-se interpretação diversa seria legitimar uma atuação de uma justiça especializada para fora de suas atribuições.

Da mesma forma, é sintomática instauração de processo disciplinar pelo Comitê Olímpico Brasileiro à mingua de uma tipificação específica para o caso. Isso porque o artigo 8º do Código de Ética do COB aponta como infração ética o indevido o uso de expressões verbais ou escritas que sejam discriminatórias, especialmente quanto à origem, cor, religião, idade, sexo ou orientação sexual de qualquer pessoa. Ou seja, os elementos do tipo são claros e não podem ser interpretados extensivamente, sob pena violação do princípio da tipicidade que vige no direito sancionador.

Ocorre que a conduta do atleta não traz qualquer conteúdo que permita a subsunção do fato à norma. Repise-se, a conduta guarda evidente gravidade, mas eventual erro não pode ser combatido com medidas que firam o devido processo legal, não se podendo olvidar a transcendência horizontal dos direitos fundamentais, tendo o STF, no RE 201.819 [5], apontado que a ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados.

Da mesma forma, deve-se ter em conta que, embora o artigo 34 do Código de Ética do Comitê Olímpico do Brasil aponte que é indevida a prática de atos de violência, bem como a doutrinação, a incitação ou a orientação para a sua realização, no ambiente administrativo, de treinamento e competição ou fora dele, sua aplicação deve ser vista com a devida parcimônia.

Isso porque o artigo 1º, do mesmo normativo aponta que o Código de Ética se aplica a conduta da entidade e dos agentes públicos e privados envolvidos com a prática do esporte em território nacional, segundo os bons valores do agir humano e os princípios do Olimpismo.

Assim, a melhor hermenêutica sugere que a aplicação do Código de Ética do Comitê deva ter como condição para sua aplicabilidade a relação da conduta à prática desportiva, ressalvando-se, assim aspetos da vida social do indivíduo. A expressão "fora dele" contida no artigo 34, não significa que caiba a uma entidade privada o escrutínio de atos praticados por atletas no âmbito de sua vida civil, sob pena de constituir-se um órgão judicante sem limites subjetivos e objetivos em sua atuação.

Se o atleta, excedeu-se sob argumento de livre manifestação de pensamento, mediante a incitação de violência, sua conduta pode ser, inclusive, penalmente relevante. Não obstante, somente se tem como legítima a atuação disciplinar desportiva, se vinculada a conduta à prática desportiva.

Interpretação diversa poderia nos conduzir à conclusão de que um ilícito civil de trânsito, poderia dar ensejo à instauração de um processo ético disciplinar, o que não encontra qualquer razoabilidade.

O voluntarismo das entidades desportivas para o atendimento de pautas políticas mediante processos disciplinares ameaça a separação Estado e desporto, traz para dentro do desporto uma polarização política deletéria e aponta para uma politização político partidária que em nada contribuirá para o desenvolvimento do desporto.

O emblemático caso de Solberg, embora não seja idêntico em termos fáticos, o é definitivamente em termos de conteúdo. Aparentemente o desporto foi contaminado pelos radicalismos que assolaram à sociedade e dessa vez sob os auspícios de quem deveria, conforme impõe a Carta Olímpica de 2021, em seu item 5, manter a neutralidade política e defender o desporto de intromissões indevidas.

 


[1] "25. A National Olympic Committee recognised as such by the International Olympic Committee must fulfil the following Requirements: it should include within its organisation representatives of all National Governing Bodies in that country whose sport is included in the Olympic programme, it must include among its members the Members of the International Olympic Committee of that country, it must recognise not more than one body or association in its own country as the National Governing Body of a sport which is the Body recognised by the International Federation of that sport, it shall be the official body for all Olympic matters in its own country. All arrangements concerning its taking part in the Olympic Games and all communications on such matters shall be addressed to it. It must be independent and autonomous". OLYMPIC WORLD LIBRARY. The Olympic Charter. Disponível em: https://library.olympics.com/Default/olympic-charter.aspx  Acesso em: 05/02/2022.

[2] LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. Rio de Janeiro, Pongetti, 1952, página 25.

[3] CAMARGOS, Wladimyr Vinycius de Moraes. Constituição e Esporte no Brasil: autonomia tutelada: ruptura e continuidade. Brasília: Universidade de Brasília, 2017. Página 119.

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