Opinião

Há risco em se fazer um uso irrefletido da jurisprudência do TCU?

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30 de dezembro de 2023, 9h16

Existe na administração pública, nos licitantes e mesmo entre operadores do direito a crença equivocada de que o Tribunal de Contas da União exerceria dentro do sistema brasileiro de controle externo um papel semelhante ao do Superior Tribunal de Justiça e ao do Supremo Tribunal Federal dentro do Poder Judiciário.

Em que pese o TCU ter editado uma súmula (a de nº 222), na qual proclama que as suas decisões, quando “relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, o entendimento que podemos dizer ser o preponderante (na prática) junto aos tribunais de contas dos entes subnacionais é este do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, que, no Processo n° CON-07/00001662, deixou bem claro que “o fato do Tribunal de Contas da União ter aprovado o procedimento do ‘carona’ não impede o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina de tomar decisão contrária. A súmula 222 do Tribunal de Contas da União não se ajusta à simetria proposta pelo art. 75 da Constituição da República, que se refere à organização, composição e fiscalização em sentido formal. Não há no ordenamento jurídico pátrio nenhuma obrigação dos Tribunais de Contas Estaduais de seguirem os entendimentos do Tribunal de Contas da União. Cada um, dentro de sua jurisdição e competência têm a total liberdade para decidir, isso é o que se depreende da Constituição da República”.

Mas é inegável (e aqui, mais uma vez, na prática) que, quando se faz uma análise sobre a remissão e o uso de jurisprudências de tribunais de contas, o TCU é, de longe, o mais referenciado, sendo utilizado por gestores estaduais e municipais em suas manifestações, por procuradores dos estados e dos municípios em seus pareceres por comissões de licitações, pregoeiros e licitantes em processos licitatórios e até mesmo pelos próprios tribunais de contas estaduais, dos municípios e municipais.

Mesmo na doutrina especializada, raras são as menções aos tribunais de contas locais, com autores renomados fazendo menções à jurisprudência do Tribunal de Contas da União de forma símile que constitucionalistas mencionam o STF, e processualistas se referem às decisões do STJ.

Mas essa “preponderância técnica” do TCU deve ser, no máximo, encarada como uma deferência, pois, como já exposto, nada impede que os outros tribunais de contas que integram o ecossistema nacional de controle externo possuírem entendimentos que divergem dos proferidos pelo Tribunal de Contas da União.

Vejamos um exemplo prático.

Para o plenário do TCU, nos termos do Acórdão 980/2018, “o sistema de registro de preços não é aplicável à contratação de obras, pelo fato de o objeto não se enquadrar em nenhuma das hipóteses previstas no art. 3º do Decreto 7.892/2013 e também porque, na contratação de obras, não há demanda por itens isolados, pois os serviços não podem ser dissociados uns dos outros”.

Já o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo possui entendimento sumulado (Súmula nº 32) no sentido de que “em procedimento licitatório, é vedada a utilização do sistema de registro de preços para contratação de obras e de serviços de engenharia, exceto aqueles considerados como de pequenos reparos”.

Ou seja, no caso dos “pequenos reparos”, o TCE-SP, ao contrário do TCU, admite o uso de SRP para contratação de obras e serviços de engenharia.

Diante da possibilidade de os tribunais de contas locais, analisando um caso concreto sob as mesmas bases normativas, divergirem do Tribunal de Contas da União, por óbvio que seus jurisdicionados (caso não estejam fazendo uso de recursos federais) terão de observar os entendimentos daquelas cortes de contas e não os do TCU.

Algo que também merece um alerta é quando se tenta aplicar em estados, DF e municípios entendimentos do Tribunal de Contas da União que tem por fundamento normas de aplicação restrita à administração pública federal.

Veja-se por exemplo o Acórdão 1984/2021-Plenário. Nele o TCU decidiu que “a utilização das deficiências de projeto como fato ou condição excepcional capaz de permitir a não manutenção do desconto apresentado na proposta original da contratada afronta o disposto no art. 14, parágrafo único, do Decreto 7.983/2013″.

O Decreto nº 7.983/2013 mencionado pelo TCU no Acórdão 1984/2021 deixa muito claro em seu artigo 1º que aquela norma “estabelece regras e critérios a serem seguidos por órgãos e entidades da administração pública federal para a elaboração do orçamento de referência de obras e serviços de engenharia, contratados e executados com recursos dos orçamentos da União”.

Assim, fazer uso do Acórdão 1984/2021-Plenário no âmbito dos estados, DF e municípios significa, na prática, em aplicar indevidamente as disposições de uma norma infralegal dirigida à administração pública federal (no caso o Decreto nº 7.983/2013) aos entes subnacionais.

Por fim, diga-se ainda, que, ao fim e ao cabo, o emprego automático, irrefletido ou mesmo desleixado da jurisprudência do TCU no âmbito estadual, distrital e municipal pode, inclusive, redundar na responsabilização do agente público, haja vista que, ao regulamentar o artigo 28 da Lindb, o artigo 12, § 1º do Decreto nº 9.830/2019, considera a prática de ato com elevado grau de imperícia como um erro grosseiro.

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