Opinião

Teria o STF criado um mecanismo de fomento judicial à infraestrutura?

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5 de setembro de 2023, 15h24

Quando do julgamento do RE 684.612 no regime da repercussão geral, o STF estabeleceu o seguinte a tese do Tema 698: "1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes. 2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado; 3. No caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip)".

No leading case em questão, discutiu-se, à luz dos artigos 2º e 196, da CF/88, a possibilidade de o Poder Judiciário determinar a implementação de políticas públicas urgentes com a finalidade de assegurar o direito à saúde, em substituição ao juízo de oportunidade e conveniência do Poder Executivo para a prática do ato administrativo, bem como sem indicar as receitas orçamentárias necessárias ao cumprimento da obrigação imposta.

Foram rejeitados os seguintes argumentos contra a possibilidade de o Judiciário impor obrigações de fazer ao Estado: a) violação da independência, harmonia e separação entre os poderes; b) oportunidade de escolha da conveniência, oportunidade e conteúdo dos atos discricionários pelo administrador público e c) violação da Lei de Responsabilidade Fiscal em razão da criação de despesa sem a correspectiva fonte de custeio.

Em que pese o exposto acima e o tema 698 expressamente se referir aos "limites do Poder Judiciário para determinar obrigações de fazer ao Estado, consistentes na realização de concursos públicos, contratação de servidores e execução de obras que atendam o direito social da saúde", cumpre atentar para alguns detalhes do inteiro teor do acórdão que restou publicado em 07/08/2023.

Consta do acórdão, por exemplo, o seguinte:

"o orçamento público deve obediência aos imperativos de tutela que amparam os direitos fundamentais, assim como, de fato, o direito à saúde, em sua dimensão de direito subjetivo público e, portanto, prerrogativa indisponível do cidadão, reclama prestações positivas do Estado que não podem ser negadas mediante omissão abusiva, tampouco podem sofrer risco de descontinuidade nas ações e serviços públicos que lhe dão consecução, com a frustração do seu custeio constitucionalmente adequado" (ministro Ricardo Lewandowski).

"a importância dos direitos negligenciados legitima a atuação do Poder Judiciário ao determinar à Administração a realização das providência indispensáveis para concretizá-los (…) excepcionalmente, em havendo inércia pontual e específica da Administração Pública, para fins de assegurar o exercício de direitos fundamentais, nada obsta que, devidamente provocado, o Poder Judiciário atue de modo emergencial visando ao restabelecimento da plena fruição desses direitos que se encontram em estado de comprometimento" (ministro Alexandre de Moraes).

"a atuação do Poder Judiciário em matéria de concretização de direitos sociais é permeada por complexidades e críticas. Contudo, em cenários em que a inércia administrativa frustra a realização de direitos fundamentais, não há como negar ao Poder Judiciário algum grau de interferência para a implementação de políticas públicas. Negar a possibilidade de atuação jurisdicional nessa matéria equivaleria a negar a própria efetividade do direito social constitucionalmente assegurado, retornando à ultrapassada ideia de que tais direitos seriam normas meramente programáticas ou principiológicas" (ministro Luís Roberto Barroso).

Resta muito claro que desdobramentos ulteriores ao julgamento do RE 684.612 não restarão adstritos a obrigações de fazer impostas pelo Judiciário para a implementação de políticas públicas urgentes com a finalidade de assegurar o direito à saúde, vez que, além do que se extrai dos termos acima destacados, nos votos que redundaram na fixação da tese do Tema 698 foi expressamente mencionado o julgamento do RE 592.581, onde fixou-se no tema 220 da repercussão geral a seguinte tese: "Competência do Poder Judiciário para determinar ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimentos prisionais com o objetivo de assegurar a observância de direitos fundamentais dos presos".

Ora, consta expressamente da tese do Tema 698 que a intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes, ou seja, não se está a limitar a atuação do Judiciário à imposição de obrigação de fazer apenas e tão somente relacionadas ao direito à saúde e sim aos direitos fundamentais.

Veja, no título II da CF/88 além da saúde temos outros direitos sociais, como por exemplo: a educação, a moradia, o transporte, o lazer e a segurança e, para terem sua fruição garantida para a população, todos esses direitos fundamentais têm em comum com o direito à saúde a necessidade de uma adequada infraestrutura.

Posto isso, o que impede que os legitimados para a proposição de uma ação civil pública vindiquem, tomado por base os parâmetros fixados na tese do Tema 698, a implementação de soluções de infraestrutura para melhorar a prestação de serviços públicos relacionados à educação, à moradia, ao transporte, ao lazer ou à segurança?

A resposta é: nada.

Assim, a partir do julgamento do RE 684612, claramente foi criado um mecanismo de fomento judicial à infraestrutura, pois se no caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP), por que nas demandas envolvendo educação, lazer e segurança não seria possível determinar ao Poder Público a celebração de uma PPP social?

E mesmo a celebração de PPPs econômicas como as relacionadas à transporte e saneamento, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, poderiam sim ser objeto de obrigações de fazer por parte de Judiciário.

E para comprovar a ausência ou deficiência grave dos serviços públicos relacionados às políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, poder-se-á fazer uso de laudos, estudos, depoimentos, etc. inclusive em sede de produção antecipada de provas para viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito ou mesmo justificar ou evitar o ajuizamento de ação (artigo 381, II e III do CPC).

Diante do que restou decidido no RE 684.612, há, como se vê, amplas possibilidades de se buscar formas para melhorar, por meio de incrementos na infraestrutura, a prestação dos serviços públicos que decorram de direitos fundamentais.

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