Opinião

A prova pericial para fins de reconhecimento do tempo de serviço social

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

28 de dezembro de 2023, 21h14

Quando os demais tribunais seguiam a orientação de que todo e qualquer inconformismo em relação ao formulário PPP deveria ser impugnado na esfera trabalhista, o TRF-4 — também conhecido como “tribunal de vanguarda” — já possuía entendimento no sentido de que a atividade especial deveria ser demonstrada nos autos do processo previdenciário, com a realização de prova pericial.

Na memória deste causídico, que começou a atuar junto ao tribunal em meados de 2010, uma vez oferecido o PPP, uma prova produzida fora do processo, o segurado tinha condições de explicá-lo, impugná-lo e, por meio da prova pericial, demonstrar a real situação do labor (in loco ou estabelecimento similar). Por outras palavras, ao autor era possível participar do procedimento em contraditório. Mais do que isso, os julgadores tinham consciência do papel da prova pericial. Vale dizer: para verificar a ocorrência (ou não) dos fatos alegados.

Dito isto, não sabemos em que momento se perdeu de vista o direito processual à prova pericial, para fins de reconhecimento do tempo de serviço especial.  Você percebe que o processo vem perdendo de vista — até mesmo — o direito material quando a preliminar de cerceamento de defesa é afastada sob o pretexto desta se confundir com o mérito. O que se busca, aqui, é uma resposta racional e superlativa na construção e justificação dos novos fundamentos que embasam essa mudança jurisprudencial.

Antes de qualquer outra análise, cumpre observar que as questões preliminares e de mérito, na apelação, devem ser votadas em separado (CPC, artigo 938). No mérito, o juiz deve analisar a (im)possibilidade de reconhecimento do tempo de serviço com especial, considerando a prova expedida na forma exigida pela legislação previdenciária; a preliminar, por outro lado, diz respeito ao procedimento e, consequentemente, aos meios de prova admitidos em direito. A jurisprudência e doutrina — que fazem uma declaração, por escrito, no presente — confirmam que a comprovação do tempo de serviço especial deve ser feita por meio de formulário-padrão embasado em laudo técnico ou perícia técnica.

Entre os deveres ligados à função jurisdicional está assegurar o devido processo legal e a ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV). O processo é considerado um procedimento que se desenvolve em contraditório, logo, o processo deve assegurar tudo aquilo que lhe é de direito, como é o caso da prova pericial.

Sendo assim, uma vez justificada a necessidade-utilidade da prova pericial, a partir de um padrão de dúvida relevante (já escrevi centenas de páginas sobre a dúvida como elemento metodológico), o juiz não pode simplesmente indeferi-la. Isso porque a falta de tal providência poderá prejudicar o autor no mérito, com o não reconhecimento do benefício postulado. As consequências práticas de uma orientação que nega o “máximo de realidade” — ou que se contenta com o “mínimo de realidade” do PPP — são catastróficas, impossibilitando, em última análise, uma nova ação devido à coisa julgada.

Em matéria previdenciária, existe uma espécie de sanção ao descumprimento do ônus de alegar todos os fatos constitutivos (todas as causas de pedir) em uma só demanda, com a aplicação da eficácia preclusiva da coisa julgada. É como dizer: cabe ao autor alegar todos os agentes nocivos inerentes à função ou meio ambiente de trabalho. Isso se transformou num pesadelo para o segurado, já que, uma vez deduzidos todos os agentes nocivos, o autor não tem conseguido estabelecer o contraditório sobre as informações estampadas no PPP, sendo a prova pericial indispensável para demonstrar o labor especial. Assim, portanto, a coisa julgada atinge questões sobre os quais o juiz não teve condições de declarar, de forma definitiva e/ou minimamente segura, a existência (ou não) do direito, enterrando vivo o direito do segurado.

A manipulação irrefletida de expressões como “o formulário preenchido sem inconsistências”, “a prova dos autos se mostra suficiente (para negar)”, etc., transformou o “cerceamento de defesa” num conceito sem coisa. Se o juiz é livre para dizer se a prova pericial é (ir)relevante, a decisão pelo indeferimento se torna irrecorrível e tudo fica como está — a extinção do feito, sem resolução de mérito, com fundamento no Tema Repetitivo costuma ser um “prêmio de consolação” para a negativa de jurisdição constitucional. Essa fundamentação tornou-se dominante nas turmas — naturalizada pela repetição e usada como solução fácil para se colocar fim ao processo, mesmo quando a dúvida poderia ser solvida — exatamente — pela prova pericial.

O formulário PPP sem inconsistência tem valor? Ora, claro que tem… Não está incorreto dizer que o formulário “não apresenta inconsistências”. O problema é que, no caso concreto, pode ser absolutamente falsa a presunção de que o formulário reproduz com exatidão a realidade laboral vivenciada pelo trabalhador. A propósito, aquilo que o formulário PPP beneficia o segurado numa coisa não exclui outra. O nível de ruído acima de 80 decibéis, na vigência do Decreto 53.831/64, pode garantir o enquadramento de alguns períodos, mas é direito do autor impugnar as informações fornecidas pela empresa, como quando esta omite outros agentes nocivos ou, até mesmo, registra um nível de ruído abaixo daquele esperado para o maquinário utilizado e/ou local de trabalho. Este, portanto, não pode ser o argumento jurídico para afastar a preliminar de cerceamento de defesa. Concordar com isso significa dizer que o segurado não conseguirá provar a exposição a agentes nocivos, quer dizer: na contramão do formulário preenchido “sem inconsistências”.

É preciso entender que não podemos levar às últimas consequências as informações estampadas no formulário PPP, com a impossibilidade de se instaurar o contraditório sobre elas. Tomar o formulário PPP como prova suficiente para negar o direito à aposentadoria especial nos leva a uma dimensão em que os problemas da realidade são resolvidos por mimetismo, ou seja, basta a empresa disponibilizar as melhores informações sobre o meio ambiente de trabalho — mundo este em que a justiça não se faz necessária.

Ora, o mero esforço já mostra a eficácia do novo entendimento, permitindo a prova pericial tão-somente para os motoristas de ônibus ou de caminhão. Sim, a depender da turma, somente os motoristas de ônibus e de caminhão têm garantida a prova pericial, por força do IAC 5033888-90.2018.4.04.0000, no qual o TRF-4 fixou a seguinte tese: “deve ser admitida a possibilidade de reconhecimento do caráter especial das atividades de motorista ou de cobrador de ônibus em virtude da penosidade, ainda que a atividade tenha sido prestada após a extinção da previsão legal de enquadramento por categoria profissional pela Lei 9.032/1995, desde que tal circunstância seja comprovada por meio de perícia judicial individualizada, possuindo o interessado direito de produzir tal prova”.

Deve ter ficado claro, mas o problema não é a tese fixada no IAC. Todos têm direito a uma prova pericial individualizada, quando presentes evidências sérias do labor especial. Somente haverá coerência se a prova pericial for autorizada sempre que houver uma dúvida relevante, seja o segurado motorista de ônibus ou mecânico. O reconhecimento da penosidade de uma atividade depende exclusivamente da prova pericial, sendo que o mesmo vale para todos os agentes nocivos não mais previstos no RPS, conforme Tema Repetitivo 534/STJ. É impensável se negar a prova pericial para trabalhadores de fábricas de calçados, em que presumido o contato indissociável com colas e solvente, por exemplo.

É fácil perceber como tal orientação — de somente autorizar a prova pericial para quem seja motorista — cria uma singularidade excludente e perversa. A aplicação por exclusão demonstra a irracionalidade positivista do sistema jurídico. Reconhecer a necessidade de prova pericial para o reconhecimento da penosidade deveria, pelo contrário, reforçar a importância da prova pericial para a demonstração do labor especial em geral. De novo, aqui não importa o que o tribunal decidiu, mas, sim, por qual razão o tribunal assim decidiu. O princípio constitucional da isonomia supõe o tratamento igual de casos, mas não se limita a isso.

Do ponto de vista processual, o espaço da igualdade deve possibilitar o acesso equânime a direitos, devendo o Direito estabilizar e conferir coerência e integridade a essas e outras diferenciações. O acolhimento da preliminar de defesa, acima de tudo e sobretudo (e quase exclusivamente), para situações envolvendo o IAC 5 conduz à reflexão, ou melhor, provoca questionamentos profundos. Na comparação com situações já experimentas (entre colegas de trabalho), uma vez demonstrado que a prova pericial só é irrelevante até que seja feita, o que mais se reclama é igual consideração por parte dos julgadores. É impensável que melhor sorte assista ao segurado em cujo processo são observadas as garantias processuais, com especial atenção para o direito de prova.

É necessário ganhar distância em relação àquilo que, precisamente, é percebido como óbvio e evidente por todos. No Direito Trabalhista, a prova pericial é condição de possibilidade para se atestar a insalubridade, ou não, das condições de trabalho. No direito ambiental, o direito analisa juridicamente as observações técnicas descritas nos laudos periciais, a fim de estabelecer a configuração do risco ou dano ambiental, que não está adstrito ao respeito aos limites fixados para a emissão de materiais ou substâncias. No direito previdenciário, alguns juízes entendem que um documento produzido fora do processo, pela própria empresa, é suficiente para declarar, de forma definitiva, a inexistência do direito.

A credibilidade do formulário sequer pode ser verificada, pois a presunção — a priori — de que o documento é suficiente vem antecipar a valoração do resultado de qualquer prova em sentido contrário. A presunção — em desfavor do destinatário das normas previdenciárias — ignora qualquer dúvida acerca das repercussões que determinado agente nocivo pode causar à saúde do trabalhador. O devido processo científico deve ser adotado sempre com o escopo de obtenção das melhores informações científicas sobre o meio ambiente de trabalho. No entanto, o direito previdenciário praticado no dia-a-dia ignora a ciência e suas discussões sobre os riscos abstratos, os limites de tolerância/letalidade, os efeitos sinergéticos dos agentes nocivos, enfim, fica evidente o nosso amadorismo. Dentro disso a complexidade é reduzida a quase zero, por amor à harmonia plástica da composição. Nesse ponto, a doutrina ambiental nos deixa com muita inveja: “Assim, a atribuição de sentido a um evento como dano (ou risco ambiental) dependerá, por evidente, de um processo de integração de informações multidisciplinares que, por sua vez, atuarão como condição de possibilidade probatório para a formação da convicção judicial” [1].

Em muitos casos, a demonstração do labor especial depende quase que de forma exclusiva das informações trazidas pelo perito judicial. No entanto, há uma nítida orientação limitando a realização da prova pericial.

Na impugnação do formulário PPP, atacam-se questões (informações) não jurídicas, sobre as quais se tenta estabelecer o contraditório, em razão da omissão a agentes nocivos, a ineficácia do EPI etc. Nesse nível, a prova pericial é condição para a decodificação e construção técnica do sentido jurídico de risco, ou melhor, para a declaração do labor especial pelo magistrado. A discussão vai muito além da visão solipsista de alguns juízes, que acreditam serem os únicos destinatários da prova — aqui se poderia falar do juiz (im)parcial que só indefere a prova pericial. É claro que não podemos tergiversar para os problemas de ordem prática (e.g.: elevado número de processos, baixo número de juízes, cobrança e metas do CNJ); mas eles, nem de longe, justificam a supressão de garantias processuais.

Enquanto advogado e professor, preocupado com os direitos fundamentais-sociais, defendo critérios procedimentais mais equilibrados e sensíveis, com respeito ao devido processo legal, que, em matéria previdenciária, consiste na necessidade de se assegurar a qualquer processo ou procedimento o direito de produção ou instrução probatória — observado, como já se viu, um padrão de dúvida relevante. Trata-se de uma orientação garantidora de um rito com a função de ser adequada para se verificar a real situação do labor — permitindo a ponderação mais atenta sobre a credibilidade das informações fornecidas pela empresa, em face do conflito de interesses em jogo.

Por outro lado, a doutrina se tornou caudatária. Continuamos presos ao CPC de 1973, com a defesa de teses como a discricionariedade judicial, o livre convencimento, a livre apreciação da prova e jargões como “juiz decide conforme sua consciência” — uma linguagem privada que se sobrepõe à lei. Por óbvio, o CPC 2015, que alterou profundamente a legislação processual, instituindo um modelo cooperativo, fundado no diálogo, não encontra receptividade, como sugere Hans-Georg Gadamer: “Quem quer compreender um texto, em princípio, deve estar disposto a deixar que ele diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto” [2].

Talvez esteja exagerando, mas não me lembro de momento igual. As decepções que se somam e geram um estado de descrença, de impotência, enfim, de insegurança jurídica, colocam em xeque o papel do judiciário e, sobretudo, da advocacia previdenciária, este último considerando o direito do autor de influir ativamente na construção da decisão. Prejudicar os segurados com o indeferimento da prova pericial é um dano a toda uma visão social que merece o direito previdenciário.

Mas por que falar, no mesmo texto, em devido processo legal, prova pericial, segurança jurídica e coisa julgada? Porque está tudo entrelaçado e por um fio. A coisa julgada depende de um processo democrático. Por outras palavras, só podemos ter segurança jurídica à medida que for garantido o contraditório e a ampla defesa no processo. Nas palavras de Carlos Henrique Soares, a “busca pela democracia no processo jurisdicional é que vai permitir a formação da coisa julgada constitucional”. O jurista conclui: “a coisa julgada não tem a função de garantir a segurança jurídica. A segurança jurídica é que permite a formação da coisa julgada” [3].

O nosso CPC encampou o paradigma do processo democrático, isto é, uma decisão que não for gerada democraticamente, com a efetiva participação das partes, nunca ficará sob o manto da coisa julgada. A rigor, a coisa julgada “não se aplica se no processo houver restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento da análise da questão prejudicial” (CPC, artigo 503, § 2º). Também o artigo 123 prevê a possibilidade de discussão da coisa julgada quando, pelo estado em que aderiu ao processo, o assistente ficou impedido de produzir provas capazes de defender seus interesses.

As decisões que não obedecem ao princípio da democracia — e são muitas — não são capazes de fazer coisa julgada. Eu sei, tudo isso é polêmico e merece um outro artigo! Nota mental para 2024: um ano  com mais diálogo, para debatermos seriamente estas e outras questões. O verdadeiro diálogo judicial ocorre quando atendidas as necessidades de sinceridade e respeito mútuo!


Este artigo é resultado de um diálogo com a doutrina: CARVALHO, Délton Winter de. Gestão jurídica ambiental. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2017. p. 443-452.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 405.

SOARES, Carlos Henrique. Coisa julgada constitucional: teoria tridimensional da coisa julgada: justiça, segurança jurídica e verdade. Coimbra: Edições Almedina, 2009. p. 21.

Autores

  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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