Opinião

Prova pericial no "processo previdenciário": sistema cobra critérios

Autor

  • Diego Henrique Schuster

    é advogado professor doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

29 de julho de 2023, 6h06

Se existe um princípio que não admite exceção este é o do contraditório, sob pena de nulidade do processo. Em matéria previdenciária, contudo, não se trata de defender genericamente a realização de prova pericial em todo e qualquer processo, como um direito absoluto de produzir tal prova.

Sua viabilidade deve ser avaliada a partir de um padrão de dúvida relevante e de utilidade. Pensei num homem que se dá ao luxo suplicante de pescar em uma banheira sabendo que nada sairá dali — a prova não terá utilidade.

Sob forte influência do sistema alemão, o artigo 369 do CPC/2015 não só reproduziu literalmente o texto do artigo 332 do CPC/73, mas foi além, destacando o "direito a influenciar" [1]: "As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz".

Coloca-se, é bem verdade, o juiz como principal destinatário da prova – mas não o único! A ele interessa verificar a real situação do labor para declarar, de forma definitiva e/ou minimamente segura, a existência (ou não) do direito, logo, a dúvida aparece como elemento metodológico cuja função é justificar a utilidade da prova de natureza pericial, no caso concreto. Consequentemente, do autor são exigidas evidências sérias do labor especial para que a dúvida seja levada a sério. E daí a importância de se dimensionar o que isso representa dentro e fora do processo. Não se trata de colocar em dúvida todas as informações estampadas no formulário fornecido pela empresa, mas, pelo contrário, especificar os pontos controvertidos.

Por óbvio, o juiz não é livre para indeferir a realização de prova expressamente requerida pela parte. Conforme o artigo 370 do CPC, a decisão precisa ser fundamentada, isto é, o julgador deve explicitar as razões pelas quais considera a diligência inútil. Em relação ao regime anterior é significativa a mudança. Nesta perspectiva, pois, é oportuno destacar a advertência realizada por Carlos Aberto Alvaro Oliveira, segundo a qual o contraditório é "um poderoso fator de contenção do arbítrio do juiz" [2]. Num livro escrito em coautoria com José Antônio Savaris e Paulo Afonso Brum Vaz destacamos:

O ápice do solipsismo probatório acontece quando o juiz antecipa sua convicção sobre o resultado da prova, indeferindo-a porque antevê a irrelevância do resultado. Nesta atitude, mantém-se escravo de suas pré-compreensões, de seus preconceitos e pré-juízos que predeterminam o resultado da prova, em atitude discricionária que inibe o exercício do princípio contraditório com os meios e recursos a ele inerentes.

O juiz somente estará autorizado a indeferir provas em juízo prévio de relevância quando as provas que a parte pretende produzir não guardem nenhuma correlação com os pontos controvertidos nos autos ou quando o fato já tenha sido sobejamente comprovado por outro meio de prova ou se revele incontroverso [3].

De um lado, o que significa o indeferimento da diligência, do outro as consequências que acarreta. O indeferimento acompanhado do reconhecimento da atividade especial, em razão da prova acostada aos autos ser suficiente não nos interessa nesse momento. Não obstante, o julgador deve tomar cuidado para a fundamentação não ser a mesma de quando o direito não é reconhecido, pois nesse último, o ônus argumentativo é maior, a ponto de rebaixar a dúvida a meras suposições.

Quando o juiz indefere a prova pericial e, simultaneamente, julga improcedente o pedido sob o pretexto da inexistência de inconsistências nos formulários fornecidos pela empresa, ele nega um obstáculo ainda não vencido. A expressão "inconsistência" reclama tradução. Não se explicam todas as coisas por uma só. Caso a palavra envolva apenas aspectos formais, no sentido de o correto preenchimento do formulário pela empresa autorizar a dispensa da prova pericial, ela só tem valor retórico.

A pergunta que devemos fazer: o que isso tem a ver com o direito fundamental à prova? Na maioria dos casos, o advogado impugna o conteúdo do formulário PPP, buscando justificar a necessidade/utilidade da prova pericial (in loco ou estabelecimento similar) a partir de um padrão de dúvida relevante. Nessa perspectiva, é irrelevante o fato de o formulário PPP não possuir nenhuma "inconsistência"  do ponto de vista do seu preenchimento. Isso porque, no conteúdo, o formulário pode estar incorreto, incompleto ou ser inadequado.

O laudo médico, por exemplo, pode configurar falsidade ideológica se o médico afirmar que o paciente tem uma doença inexistente [4]. Assim, o sujeito fornecendo dados falsos, consegue fazer com que o órgão de trânsito emita uma carteira de habilitação cujo conteúdo não corresponde à realidade, imagine-se a pessoa que só tem permissão para dirigir determinado tipo de veículo, e consegue, através de algum tipo de fraude, que tal categoria seja alterada na sua carteira, ampliando-se para outros veículos, o que a torna ideologicamente falsa.

Com isso não se pretende discutir o crime de falsidade ideológica ou reputar como falsas as informações contidas nos formulários PPP [5]. É possível o engenheiro ou técnico em segurança do trabalho "laudar" errado a inexistência de riscos no meio ambiente do trabalho. Temos o exemplo de um laboratório de anatomia. O profissional apostou tudo no que se denomina de "varredura de solventes". Ocorre que os formaldeídos não estão nas listas de solventes. Resultado: o laudo concluiu equivocadamente pela salubridade do trabalho

 A situação causou surpresa para a própria empresa, quando citada nos autos de uma reclamatória trabalhista. Note-se que a empresa contratou um especialista, exatamente, para reconhecer e avaliar os agentes nocivos presentes no meio ambiente do trabalho, com vistas ao gerenciamento dos riscos.

O mesmo acontece em relação à diferença entre os documentos fornecidos pela empresa. Esse é um ponto essencial. Entre o Laudo Técnico de Insalubridade e o LTCAT fica claro que o segundo é referente à legislação previdenciária. Assim, se considerarmos apenas o LTCAT, vamos perceber que muitos agentes nocivos acabam ficando de fora do formulário para requerimento da aposentadoria especial, uma vez que tal documento é preenchido com base no Decreto 3.048/99.

Assim, por exemplo, não cabe ao LTCAT concluir a respeito da periculosidade, muito embora ela se caracterize por atividades que ponham em risco a vida do trabalhador, entendendo os profissionais da área um erro colocá-lo no LTCAT [6]O laudo técnico trabalhista, por sua vez, vai contemplar a periculosidade, com fundamento na NR-16.

É de se ver que procede a impugnação do formulário PPP quando o autor alega omissão em relação a agentes não previstos no RPS. Nesses casos, a prova pericial se apresenta como condição de possibilidade (AgInt no AREsp 576.733/RN, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 25/10/2018, DJe 07/11/2018).

Enfim, a análise do cerceamento de defesa não passa pela avaliação dos aspectos formais do formulário padrão, já que eles não geram qualquer consenso sobre a real situação do labor do segurado/trabalhador. Lembrando que não está incorreto dizer que o formulário "não apresenta inconsistências". O problema é que, no caso concreto, pode ser absolutamente falsa a presunção de que o formulário reproduz com exatidão a realidade laboral vivenciada pelo trabalhador. Daí o porquê de a prova pericial ser (ir)relevante até que seja feita!

A construção de uma racionalidade tem como objetivo instrumentalizar as garantias do contraditório  enquanto garantia de influência e não surpresa , da prova e da fundamentação, que são, assim, garantia de o Direito não sucumbir diante de subjetivismos: "Não podemos cair na armadilha kelseniana de que é impossível controlar racionalmente a aplicação do Direito. O resultado disso é preencher o conteúdo do Direito com jogos de poder" [7].

O que se pretende não é proclamar um critério geral, mas fixar as condições em que a proposição (é necessária a realização de prova pericial) encontra espaço:

a) o recebimento de adicionais de insalubridade ou periculosidade trabalhistas, quando coincidentes com a insalubridade e periculosidade previdenciária. Não necessariamente, a aposentadoria especial irá coincidir com as pessoas que recebem adicionais de remuneração, mas este será sempre um indício de exposição a agentes nocivos  capaz de justificar a necessidade de prova pericial;

b) divergências ou falta de correspondência entre as informações fornecidas pela empresa. Da mesma forma, o reconhecimento de agentes nocivos num laudo contemporâneo, por contrariar a tendência de que as condições de trabalhado melhoram com o passar do tempo  dada a evolução das máquinas e equipamentos de proteção, ou seja, as novas tecnologias são capazes de melhor controlar os riscos industriais;

c) a indicação de diferentes níveis de pressão sonora, inclusive no mesmo setor, desde que não tenham ocorrido nenhuma alteração no meio ambiente do trabalho ou na sua organização;

d) o campo da "descrição das atividades" deixa entrever a utilização de produtos químicos (empregados no processo produtivo) ou as atividades da empresa envolverem a produção de um material que tenha componentes químicos, sendo possível ao julgador valer-se de presunções (CPC, artigo 375). Por exemplo, a função "serviços gerais" no interior de uma empresa de calçados ganha contornos próprios, em razão de o trabalhador estar inserido na cadeia produtiva do calçado, em que indissociável o contato com colas e solventes;

e) existe a necessidade de implantação de dispositivos protetivos, como o uso de EPI (com indicação no próprio formulário PPP);

Acrescente-se aqui a indicação no CNIS da abreviatura Iean "Exposição a agente nocivo informado pelo empregador, passível de comprovação", bem assim os códigos no campo 13.7 ("Código Ocorrência da GFIP"). Ou quando, já em segunda instância, estivermos diante uma sentença que deixa de reconhecer a natureza especial da atividade com fundamento na ausência de dados técnicos que poderiam ser supridos pela prova pericial. Fica evidente o cerceamento nesse modo de agir.

Na dúvida, deve-se sempre privilegiar o destinatário das normas previdenciárias, com o deferimento da prova pericial, conforme Tema Repetitivo 1083/STJ. Importante se considerar que há um grande receio por parte de algumas empresas em divulgar informações sobre o meio ambiente do trabalho, isto é, sabendo dos reflexos nas esferas trabalhistas, ambientais e, sobretudo, tributária. Por outro lado, sabe-se que, muitas vezes, o segurado deixa de questionar a empresa com receio de perder o emprego ou de não conseguir nova colocação no mercado de trabalho por estar litigando contra ex-empregador.

O juiz precisa entender que procurar o verdadeiro não é procurar o desejável, mas afastar a dúvida, para o bem ou para o mal. Os enunciados parecem não deixar dúvida:

"A necessidade de prova pericial, ou não, de que a atividade do segurado é exercida em condições tais que admitam a equiparação deve ser decidida no caso concreto (Tema 198/TNU).
[…] é devida a aposentadoria especial, se perícia judicial constata que a atividade exercida pelo segurado é perigosa, insalubre ou penosa, mesmo não inscrita em Regulamento. (Súmula 198 ex-TFR);
Quando impossível a realização de perícia técnica no local de trabalho do segurado, admite-se a produção desta prova em empresa similar, a fim de aferir a exposição aos agentes nocivos e comprovar a especialidade do labor (Súmula 106/TRF4).
D
eve ser admitida a possibilidade de reconhecimento do caráter especial das atividades de motorista ou de cobrador de ônibus em virtude da penosidade, ainda que a atividade tenha sido prestada após a extinção da previsão legal de enquadramento por categoria profissional pela Lei 9.032/1995, desde que tal circunstância seja comprovada por meio de perícia judicial individualizada, possuindo o interessado direito de produzir tal prova." (IAC 5/TRF-4)

É necessário conferir ao sistema jurídico integridade (compatibilidade com os diversos enunciados) e coerência (julgar casos iguais mediante semelhante raciocínio), conforme estabelece o artigo 926 do CPC. Decerto, o indeferimento da prova pericial, quando diante de evidências sérias do labor especial, constitui verdadeira restrição ao direito de prova e, até mesmo, ao próprio acesso à justiça, o que é algo extremamente gravoso. Nesse sentido: "Se a pretensão do autor depende da produção da prova requerida, esta não lhe pode ser negada, nem reduzido o âmbito de seu pedido com um julgamento antecipado, sob pena de configurar-se uma situação autêntica de denegação de Justiça". (STJ, REsp 5.037/SP, relator ministro, Cláudio Santos, 3ª Turma, j. 04.12.1990, DJ 18.02.1991).

Oferecido o PPP, uma prova pré-constituída, o segurado deve ter condições de impugná-lo, explicá-lo, trazer outra prova que desqualifique ou que dê contexto. Ao autor precisa ser garantida a participação no processo e o poder de influência. O juízo precisa da instrução para verificar a ocorrência dos fatos alegados. O pedido de prova pericial acompanha uma expectativa baseada em eventos e situações já experimentadas (e.g.: centenas de provas periciais produzidas em juízo).

É preciso tentar reduzir a complexidade, sintetizar e ligar os pontos, e não fazer parecer que é inviável a realização de prova pericial, com fundamento em problemas de ordem prática ou orçamentária. A partir do ramo das empresas, da função, enfim, percebe-se, muitas vezes, a possibilidade de se condensar os atos.

Laudos aplicados por semelhança, igualmente, podem evitar uma prova pericial inútil, mormente quando resultantes de uma perícia na própria empresa, nos autos de um processo previdenciário. Mais do que tentar legitimar um resultado que o autor se propõe a alcançar, evitando, num primeiro momento, uma perícia inútil, o laudo aplicado por analogia serve para, também, justificar a necessidade de prova pericial.

Problemas de ordem prática não podem ser colocados como obstáculos para a demonstração do direito. É impensável exigir do segurado tantas reclamatórias quantas forem as empresas por onde passou, para fins de retificação do formulário PPP, vale dizer: com todas as implicações que isso tem na esfera previdenciária (demora, decadência, prescrição, efeitos financeiros, etc.). Todo mundo sabe que isso é um problema. 

A justiça previdenciária perde sua função por aquilo que ignora, a saber: a realidade do trabalhador.

 

 

Referências
[1] Cf.: RIBEIRO, Darci Guimarães. Questões relevantes da prova no novo Código de Processo Civil. In: BOECKEL, Fabrício Dani de; ROSA, Karin Regina Rick; SCARPARO, Eduardo. Estudos sobre o novo Código de Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.

[2] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 133.

[3] SCHUSTER, Diego Henrique; SAVARIS, José Antônio; VAZ, Paulo Afonso Brum. A garantia da coisa julgada no processo previdenciário: para além dos paradigmas que limitam a proteção social. Curitiba: Alteridade Editora, 2019. p. 241-242.

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal – parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 990.

[5] A parte autora não precisa alegar a falsidade sobre os pontos que não concorda. Até mesmo para fins de ação rescisória é irrelevante o prequestionamento do fato no processo em que foi prolatada a sentença a rescindir. (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da ação rescisória. 5. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1976, § 25, p. 308-309). Na jurisprudência: TRF 3ª REGIÃO, Proc: 0008334-67.2001.4.03.0000/SP, 3ª Seção, Rel.: Desª. Fed. DALDICE SANTANA, J. em: 12/04/2012, DJF3 20/04/2012).

[6] MAGALHÃES, Leandro Assis. 101 perguntas e respostas sobre agentes químicos para Higiene Ocupacional: um guia de cabeceira para não errar nas avaliações de campo. 2. ed. São Paulo: Editora Lux, 2020. p. 71.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2017. p. 147.

Autores

  • é advogado, professor, doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro da atuação jurídica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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