História exemplar

Um sopro de vida da Suíça no coração do Brasil

 

22 de dezembro de 2023, 15h51

Com seus 3,5 mil quilômetros de extensão, a BR-163 liga a cidade de Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, a Santarém, no Pará. Apesar de, literalmente, cortar o interior do Brasil de norte a sul, a estrada foi popularmente batizada e se tornou mais conhecida como Rodovia Cuiabá-Santarém, por conta do movimentado trecho que escoa parte substancial das 300 milhões de toneladas de soja produzidas por ano no país. Às margens da rodovia, a paisagem é monótona: soja, milho e algodão. Plantações que se estendem “até onde a vista alcança”, como dizem os agricultores.

Klaus Huber

Klaus Huber dividiu sua vida entre a Suíça, seu país-natal, e o Brasil

Se o viajante sair de Cuiabá em direção ao Pará, chegará à cidade de Lucas do Rio Verde depois de 340 quilômetros e mais ou menos cinco horas de viagem — se não houver um acidente ou algum caminhão tombado pelo caminho, o que não era raro até há alguns anos. Em Lucas, se virar à esquerda e viajar por outros 35 quilômetros pela MT-449, cairá no povoado de Itambiquara. A paisagem até lá não é diferente. À esquerda e à direita, plantações de soja, milho e algodão, e algumas famílias de emas, por quase todo o caminho.

Até que algo quebra a monotonia da cena. Cerca de 140 hectares de mata nativa, preservada, quase intocada, em uma região que, bem no meio do Brasil, mistura a vegetação dos biomas do Cerrado e da Amazônia. Batizado de Ruah — “sopro de vida”, em hebraico —, aquele pedaço de terra foi mantido preservado em Itambiquara pelo suíço Niklaus Karl Eugen Huber, um dos pioneiros de Lucas do Rio Verde. Na contramão da maior parte das famílias que adquiriram terras naquela região a partir dos anos 1980, Klaus, como foi chamado por toda a vida, não desmatou para plantar. Preservou para estudar, usufruir e pesquisar.

Klaus chegou com a família a Lucas do Rio Verde em 1981. Antes, viveu em Holambra 2 e Itapetininga, municípios do interior de São Paulo, e se aventurou pelo Pará, onde se apaixonou pela natureza de forma definitiva. Dois dias antes de morrer, ele falou sobre isto: “Eu entrava naquelas florestas e me sentia em uma dessas catedrais góticas da Europa. Os troncos enormes como se fossem os pilares, as copas das árvores se encontrando lá no alto e formando as abóbodas, o silêncio e a necessidade de contemplação”. Foi essa paixão que o moveu, junto com a mulher, Maria Elisabeth Kurmann (a Beth), três filhos e uma filha, em direção ao Centro-Oeste brasileiro, na esteira no projeto de integração nacional do governo brasileiro, encampado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a partir da década de 1970.

No livro Tempestade no Cerrado, Anton Huber, irmão mais velho de Klaus, conta que algumas famílias, incluindo seus irmãos suíços, que habitavam o interior de São Paulo e se reuniam em cooperativa, enxergaram no projeto de colonização agrícola uma oportunidade para a estabilidade naqueles tempos tão instáveis. Nesse ponto, a história não é muito diferente da de milhões de famílias de agricultores do país. “Para acertar débitos de origem agrícola acumulados por insucesso econômico, eu me vi forçado a vender todos os meus bens patrimoniais. A partir daí, trabalhando em terras arrendadas, consegui restabelecer o equilíbrio financeiro. Como muitos agricultores, agora também procurava encontrar alguma terra agricultável para compra por condições adequadas”, escreveu Anton Huber em seu livro.

Ainda que o projeto agrícola tenha sido a mola propulsora da mudança de Klaus com a família, desmatar, plantar e colher nunca esteve nos seus planos. Ele se dedicou, desde o início, a desenvolver projetos educacionais e sociais no município. Criou, quase junto com a fundação da cidade, em 1988, o Instituto Padre João Peter. Nascido de uma biblioteca ambulante organizada por Klaus e Beth, o instituto se desenvolveu e promoveu, em 35 anos, um leque de serviços assistenciais para a população local que vão desde o oferecimento de cursos profissionalizantes de marcenaria e mecânica até atendimento da população mais carente por meio de projetos de saúde popular. Hoje, a instituição pertence à Fundação La Salle (clique aqui para ler mais sobre o instituto).

Em 1989, a professora Beth se elegeu vereadora pelo PDT e fez parte da primeira composição da Câmara Municipal de Lucas do Rio Verde. O pedagogo Klaus assumiu o projeto de instalação de escolas municipais e estaduais da cidade. A educação era uma obsessão porque, acreditava, era o único caminho para abrir a cabeça dos agricultores para a importância de um desenvolvimento sustentável, que unisse a agricultura com a preservação do meio ambiente.

O começo foi bastante difícil. Morando em barracões e criando do zero a infraestrutura de toda uma cidade, o que não faltam são histórias de resiliência. Por exemplo: não havia energia elétrica, salvo aquela produzida apenas em momentos bem específicos por geradores movidos por motores à diesel. Logo, geladeira não era algo comum e enlatados eram algumas das melhores refeições. “Salada” de sardinha com cebola como prato principal, com pêssegos em calda de sobremesa, são iguarias gravadas nas memórias afetivas dos filhos dos pioneiros daquela região.

É difícil resumir em um texto curto uma vida tão frutífera como foi a de Klaus, alguém que fez o caminho de Santiago de Compostela aos 70 anos e que voava de parapente e se aventurava em toda espécie de tirolesas aos 80. Jovem seminarista, largou a ideia de se tornar padre um ano antes da ordenação. Casou-se com a professora Beth em 1969, mudou para o interior de São Paulo e gerou três filhos — Maurício, Eddie e Bruno — e uma filha, Luciana Huber, a artista gráfica que cuida dos projetos do Anuário da Justiça desde sua primeira edição e, hoje, também do design das publicações da Amanuense Livros. Desbravou o Centro-Oeste brasileiro, participou da criação de uma cidade, fundou uma ONG, voltou a morar na Suíça para que os filhos pudessem se formar lá. Como pedagogo, ainda na Suíça, trabalhou em um centro de recuperação de adolescentes dependentes químicos. Voltou ao Brasil. Ele e Beth divorciaram-se em 2012. Morou em Lucas do Rio Verde até 2022, quando mudou para Santos com sua atual companheira, Fátima Aparecida Ferreira, para desfrutar a aposentadoria. Infelizmente, teve pouco tempo para isso.

Klaus desembarcou no Brasil no Porto de Santos, em 16 de março de 1951, com dez anos de idade. Chegou com os pais, Anton e Marie, três irmãs e seis irmãos. O caçula, ainda sendo gestado na barriga da mãe. Morreu em Santos, às 20h da última quarta-feira (20/12), aos 83 anos, em casa, rodeado pela família. Além dos filhos e da filha, deixa três netos e duas netas: Laura, Clara, Samuel, Rafael e Niclas. Poucos dias antes de morrer, confessou que o plano de viver a aposentadoria na cidade do litoral paulista era justamente o de fechar um ciclo. Quis voltar para o lugar onde, na sua visão, sua vida tinha realmente começado.

Há uma boa literatura, no Brasil, que conta histórias de imigrantes alemães, italianos, árabes e japoneses, e da sua influência para o crescimento do país e para a nossa rica miscigenação cultural. Pouca coisa se escreveu sobre a influência de outros povos, como a da comunidade suíça. Esta é uma história que ainda deverá ser escrita. Se houver justiça, um capítulo será dedicado à vida de Klaus Huber.

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