Direto do Carf

De assunto a interlocutor: o que esperamos do Carf para 2024

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

20 de dezembro de 2023, 9h18

Quando começamos a escrever a “Direto do Carf“, em janeiro de 2019, iniciamos falando da relevância da jurisprudência desse tribunal administrativo, e de como ela impactava as interpretações judiciais e administrativas, a produção legislativa e doutrinária, e, principalmente, as condutas dos contribuintes. A coluna nasceu como um meio de “exposição técnica e imparcial da jurisprudência do Carf”, com uma análise crítica dos fundamentos adotadas e comparativa entre as diversas turmas de julgamento.

Buscávamos, naquele momento, falar com o Carf, em um diálogo intermediado pelas milhares de decisões produzidas pelo órgão. A iniciativa se inseria em contexto não apenas de reconstrução institucional, quatro anos após o baque da “operação zelotes”, mas principalmente de uma publicidade muito maior do tribunal e sua jurisprudência: o Carf se tornara mainstream no debate tributário, com artigos, livros, seminários etc., todos buscando participar nessa dialética instituição-sociedade.

Spacca

À época, tinha a impressão de que o órgão entrara em um ciclo virtuoso, com a estabilização de entendimentos no âmbito dos colegiados (que trazia celeridade e segurança nos julgamentos), amadurecimento dos julgadores administrativos (a grande maioria em seu segundo ou terceiro mandato), crescimento da relevância e do respeito à jurisprudência do tribunal (que inspirou essa coluna) e, especialmente, com um grau de estabilização institucional.

Inclusive, o ano de 2020 se iniciou com a inovadora realização de uma consulta pública para discutir alterações regimentais, da qual participaram ativamente conselheiros, advogados e professores, todos dando sua contribuição para melhorar o processo administrativo. Entretanto, e na opinião este colunista, o que se seguiu foi o marco de início uma instabilidade institucional que vem se arrastando até hoje. Foi a partir desse ano que o tribunal passou a ser cada vez menos interlocutor de um diálogo, para se tornar o assunto – fala-se cada vez mais do Carf do que com ele.

É absolutamente temerário apontar uma causa única, suficiente e/ou necessária, para essa instabilidade institucional, mas podemos elencar algumas. Adianto que o rol abaixo é apenas um breve sumário das principais ocorrências, sem pretensão de esgotar tudo que se deu nesse período.

Uma delas foi a eclosão da pandemia de Covid-19, que gerou a suspensão das sessões em março/2020, por um longo período, e que nos anos seguintes fez com que as reuniões ocorressem majoritariamente de forma virtual. Os julgamentos telepresenciais, que em outro contexto seriam uma alvissareira novidade, foram marcados inicialmente pelo baixo valor dos casos analisados e a dificuldade para replicar a dinâmica de uma sessão presencial (e.g. as sustentações orais gravadas). Paralelamente a isso, foi editada a Lei nº 13.988/2020, que não apenas inovou com a criação do “contencioso de pequeno valor”, para as DRJs, mas também acabou com o voto de qualidade, estabelecendo a vitória do contribuinte em caso de empate nos julgamentos no Carf.

Somaram-se, nesse momento, as críticas ao funcionamento (ou suspensão) durante a pandemia e a dinâmica das sessões virtuais, e aquelas direcionadas à nova dinâmica de julgamento nas DRJs, sem falar na intensa discussão a respeito do fim do voto de qualidade, com o ajuizamento de diversas ADIs e a participação de diversas entidades nesse debate. Além disso, o Ministério da Economia publicou a Portaria ME nº 260/2020, que dava uma interpretação absolutamente restritiva ao novo critério de desempate, gerando um intenso debate acadêmico e judicial a respeito da nova sistemática.

O ano de 2021, ainda sob a dinâmica das sessões virtuais, com valores reduzidos, foi marcado pelo lamentável episódio no qual alguns conselheiros foram ameaçados de perda de mandato por proporem a realização de distinguishing na aplicação de uma súmula. O efeito disso foi a realização de dezenas de eventos, manifestações, artigos e entrevistas criticando-se duramente o ocorrido e a postura institucional na condução da questão, o que obnubilou inclusive boas medidas, como a implementação do VER, um novo sistema de pesquisa de acórdãos.

Adicione-se a isso a edição de Portarias que prorrogaram, sem justificativa plausível, a competência de algumas turmas, atraindo novas críticas públicas, além de novas suspensões em suas sessões, dessa vez em razão de greves dos auditores-fiscais das Receita Federal, que exigiam a regulamentação do bônus de remuneração, que não fora pelo Executivo.

O ano de 2022 se iniciou e se encerrou com sessões suspensas, em razão de greves de auditores-fiscais. Foi um ano no qual pouquíssimas sessões foram realizadas, com destaque apenas de algumas matérias de alta relevância econômica que voltaram a ser julgadas, por volta de agosto, com o fim do teto de valor para sessões virtuais e com a breve retomada dos julgamentos. Paralelamente a isso, o órgão vinha recebendo sucessivas críticas pela suspensão sucessiva dos julgamentos, além de uma intensa judicialização voltada a garantir coercitivamente a realização de julgamentos sob a égide do desempate pró-contribuinte.

Em 2023, o ano se inicia com a edição de uma medida provisória que restabelecia o voto de qualidade para o julgamento, e muda-se também a presidência do órgão — o terceiro presidente desde 2020 — com visões e vivências completamente diferentes dos dois anteriores, que tampouco coincidiam entre si.

Uma das primeiras medidas foi exatamente a suspensão das sessões, até meados de fevereiro, em razão da “discussão que envolve os Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo com relação à Medida Provisória nº 1.160/2023”. Em maio, há uma nova greve dos auditores-fiscais, que paralisa o órgão novamente. Paralelamente a isso há uma intensa discussão e judicialização no sentido de suspender os julgamentos enquanto a referida MP não é convertida em lei, que culminou na peculiar Portaria MF 139/2023, que autorizava o pedido de retirada de pauta dos processos, para julgamento após a vigência da medida — criou-se a MP com efeitos suspensivos —, fruto de uma amplamente noticiada negociação envolvendo diversos players políticos.

Mesmo com o encerramento da vigência da MP, fim da greve e retomada do desempate pró-contribuinte, as sessões seguiram sendo virtuais, mas acompanhadas de dezenas de pedidos de retirada de pauta para julgamento presencial — tanto pelo lado dos contribuintes quanto pelo lado da procuradoria da Fazenda — o que acabava esvaziando a pauta de discussões mais relevantes. Por outro lado, o ano foi marcado pela importante Portaria MF nº 1.360/2023, que estabeleceu ação afirmativa para a realização da paridade de gênero no preenchimento de vagas de conselheiros.

As sessões presenciais só são retomadas em outubro de 2023, curiosamente após a sanção da Lei nº 14.689/2023, que restabeleceu o voto de qualidade, ao custo de diversas benesses estabelecidas para os contribuintes, apenas para voltarem a ser suspensas em novembro, com nova adesão à greve, pelos auditores-fiscais, por mais um descumprimento do acordo existente com Executivo, e que persiste até agora, com a noticiada ameaça de renúncia coletiva por parte dos conselheiros representantes da Fazenda, que certamente teria o efeito de paralisar o órgão por vários meses.

Paralelamente a todos os fatos institucionais relatados acima, ainda há as pessoas — os conselheiros, advogados, servidores etc., todos cuja vida se relaciona, em alguma medida, com o Carf, que certa e profundamente sentiram os impactos dessa instabilidade institucional. Não tenho nenhuma pretensão de catalogar os impactos pessoais que todo esse turbilhão gerou em cada um deles, mas certamente combaliu todos os envolvidos.

Pensando no caso dos conselheiros, especificamente, muitos saíram do órgão durante esse período, e tantos outros entraram, sem que tivessem a oportunidade de um período de calmaria institucional para se habituarem devidamente à função de conselheiro e ao ambiente de debate de um colegiado, experiência que demanda algum tempo para ser assimilada e compreendida.

Para o ano de 2024, é preciso urgentemente retomar a normalidade institucional. É preciso que o tribunal volte aos trilhos e que passe a funcionar habitualmente, de maneira consistente, amadurecendo a sua jurisprudência e prestigiando, principalmente, as pessoas que lhe dão sustentação.

Tenho para mim, e já defendi em outra oportunidade, que o artigo 19-E da Lei nº 13.988/2020 foi o ovo da serpente que eclodiria para atacar a própria estrutura do Carf como ela é hoje. Expurgada essa regra excrescente, é hora de se pensar em aperfeiçoamentos na estrutura do processo administrativo, a partir de um diálogo aberto e franco com todos os interessados, como tentou-se fazer em 2020, com a abertura de consulta pública sobre alterações regimentais, antes do advento de todos os fatos relatados acima.

Em um polo desse debate, aqueles que veem o Carf como órgão arrecadatório e “repouso de sonegadores”, do outro, aqueles que pretendem tornar o Carf um instrumento de desoneração e estímulo à litigância administrativa, e muita gente entre esses extremos: o que gerou essa crise foi, principalmente, as tentativas de impor soluções unilaterais por parte de todos os agentes envolvidos, desde o fim do voto de qualidade ao seu restabelecimento, as múltiplas suspensões, a intervenções do judiciário etc.

É preciso estabelecer uma perspectiva multilateral nas rédeas e os rumos da instituição, e retomar o diálogo que foi precocemente interrompido em 2020, colocando de volta o Carf no melhor caminho, pela relevância que historicamente sempre teve, para que deixemos de falar dele, e voltemos a dialogar com ele.

Aproveito para deixar um agradecimento muito especial a todos os meus companheiros de coluna, Diego, Fernando, Thaís, Ludmila e Alexandre, pela parceria em mais um ano e pelo aprendizado que me proporcionam com os seus textos, sempre brilhantes!

Um Feliz Natal e um ano novo de muita paz a todos os nossos leitores, e ficam nossos votos de um Carf forte, com conselheiros e conselheiras respeitados, com disposição e atenção para atender todos os contribuintes e advogados, públicos e privados, que batem às suas portas em busca de uma correta aplicação da legislação tributária!

PS: A coluna vai tirar merecidas férias, mas voltamos na terceira semana de janeiro! Até lá!

Autores

  • é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

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