Direito Civil Atual

Titularidade dos créditos de carbono REDD+ em territórios coletivos

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18 de dezembro de 2023, 11h17

Em coluna publicada em 8 de maio de 2023, tratou-se da natureza jurídica dos créditos de carbono à luz da teoria dos bens do Direito Civil, com o objetivo de contribuir para a regulamentação do Mercado Brasileiro de Redução de Emissões — PL 412/2022 (MBRE), atualmente em discussão na Câmara dos Deputados.

Em continuidade, a de hoje aborda, especificamente, a titularidade dos créditos de carbono REDD+ [1] gerados em territórios de comunidades tradicionais, consideradas como principais protetoras dos sumidouros de carbono.

ConJur

No Brasil, as relações jurídicas estabelecidas entre as populações tradicionais e os territórios sofrem a incidência de normas de Direito Privado (em especial dos Direitos das Coisas [2]) e de Direito Público, e diferenciam-se conforme a população envolvida e a espécie de território. A natureza dessa relação, com efeito, pode, em tese, influenciar a titularidade dos créditos de carbono gerados nessas áreas.

Imprescindível, nesse sentido, analisar a relação estabelecida pelas comunidades tradicionais com seus territórios, visto que existem diferentes regimes jurídicos aplicáveis para comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas, recorte ora selecionado.

Povos indígenas
Segundo o disposto no artigo 231 c/c artigo 20, inciso XI, da Constituição, os povos indígenas possuem o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, as quais são “bens da União” [3].

O Estatuto dos Indígenas (Lei 6.001/1973), nos artigos 22 a 24, estabelece que os povos indígenas detêm a posse permanente das terras que ocupam, além do usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes, compreendendo o uso, a percepção e a exploração econômica de tais riquezas.

O usufruto indígena, regulamentado em lei especial, é similar ao usufruto estabelecido pelo Direito Civil (artigos 1.390 e ss do Código Civil) no que diz respeito à abrangência. Difere, todavia, quanto à transitoriedade. Enquanto o usufruto no Direito Civil é transitório (por prazo determinado ou, quando muito, vitalício), o usufruto indígena não encontra limite temporal, sendo pautado por uma lógica de permanência pela ancestralidade.

Nesse contexto, os direitos relativos aos créditos de carbono resultantes de projetos desenvolvidos dentro desses territórios são, inegavelmente, titularizados pelos povos indígenas. Esses projetos, no entanto, não podem restringir o modo de vida dessas populações e, de modo algum, influir na posse da terra. Eventuais desenvolvedores devem ter em mente que terceiros, estranhos à comunidade, não podem interferir nem controlar as atividades tradicionais e a gestão do território, sendo nulas eventuais cláusulas contratuais que assim o estabeleçam (artigos 18 e 62 da Lei 6.001/1973)

Comunidades quilombolas
Os direitos territoriais quilombolas também estão previstos na Constituição, no artigo 68 do ADCT “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

O caso das comunidades quilombolas, perceba-se, é particular, pois o ordenamento reconhece-lhes a propriedade do território, sendo imperativo que o Estado, por meio do Incra, emita e conceda-lhes os respectivos títulos, após a devida regularização fundiária, nos termos do artigo 31, da Lei 12.288/2010.

Segundo Nota Técnica emitida pela Coordenação das Comunidades Quilombolas do Pará (Malungu), “A legislação pertinente tanto à titulação de territórios quilombolas quanto à CCDRU de reservas extrativistas é direito étnico e não meramente trata de títulos de imóveis. Ou seja, a proteção ao território como prevista em lei alcança a forma de uso e gestão da terra e da floresta com a finalidade de garantir autonomia de decisão ao grupo/comunidade titular” [4].

Dessa forma, considerando a propriedade e o exercício dos poderes inerentes ao domínio, evidente que a titularidade sobre eventuais créditos de carbono será dos quilombolas, o que pode ser visto também quando se endereçam as normas referentes aos serviços ambientais prestados por essas comunidades (Lei 14.590/2023).

Populações extrativistas
As comunidades extrativistas também possuem especial relação com seus territórios — normalmente Reservas Extrativistas (Resex) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), ambas Unidades de Conservação, regulamentadas pela Lei 9.985/2000 (Snuc).

Nas Resex, a economia das populações baseia-se no extrativismo como “sistema de exploração baseado na coleta e extração, de modo sustentável, de recursos naturais renováveis” (inc. XII, do art. 2º, da Lei 9.985/2000) e, complementarmente, na criação de animais de pequeno porte e agricultura em pequena escala.

Já no caso das RDS, a economia ancora-se em “sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica”. (artigo 20 da Lei 9.985/2000).

A lei estabelece que tanto a Resex quanto a RDS são áreas de domínio público, mas cuja uso e a posse são conferidos às populações extrativistas (artigo 18, §1º; artigo 20, §2º da Lei 9.985/2000) através de contrato de concessão de direito real de uso ou termo de compromisso, nos termos do artigo 23 da Lei 9.985/2000, artigo 13 do Decreto 4.340/2002, artigo 7º do Decreto-Lei 271/1967 e inciso XII, do artigo 1.225, do Código Civil.

Veja-se que, às populações extrativistas, titulares da concessão por meio de suas associações representativas, é conferido o direito de usar e fruir do território (artigo 1.412 do Código Civil, §2º do artigo 7º do Decreto-Lei 271/1967), respeitados os termos do contrato, os objetivos aplicáveis à unidade de conservação e seu plano de manejo (artigo 28 da Lei 9.985/2000).

Importante destacar que estes instrumentos são elaborados de forma coletiva pela comunidade e órgãos gestores, de forma a garantir a manutenção da cultura — econômica e social — das populações tradicionais, em paralelo à proteção do meio ambiente.

Questão relevante, nesse cenário, é definir se os créditos de carbono gerados nesses territórios estariam contemplados no feixe de direitos titularizados por essas comunidades. Em sendo positiva a resposta, as comunidades teriam plena autonomia para desenvolver projetos geradores de créditos e livre disposição sobre os créditos gerados.

A discussão está inserida num ambiente bastante disputado. O MPF-Pará, recentemente, emitiu a Nota Técnica 02/2023, pela qual concluiu pela necessidade de intervenção do Estado no contrato relativo à REDD+:

O contrato relativo a direitos incidentes sobre créditos de carbono tem natureza de interesse público, e especificamente quando incidente em florestas públicas, deve ter a necessária intervenção estatal por tratar-se de contrato de natureza administrativa.” [5]

No Processo 02070.003392/2021-01, por sua vez, a Procuradoria do ICMBio emitiu parecer consignando que “na forma como previsto na Lei 14.119/2021 e no artigo 34, do Snuc, parece-me que a competência para celebração do contrato […] é do órgão gestor da UC e não, diretamente, da comunidade tradicional favorecida pelo CCDRU ou sua representação associativa” [6].

Com efeito, em sintonia com o entendimento professado na coluna passada, de que os créditos de carbono configuram um ativo renovável, vinculado ao ciclo de carbono dentro de um determinado recorte (no caso, uma floresta), assimilável à categoria de fruto, parece-nos incorreto considerar que os extrativistas não titularizariam o direito à exploração dos créditos de carbono gerados no interior de seus territórios.

Por conseguinte, teriam referidas populações autonomia para realizar projetos e, igualmente, comercializar seus créditos no mercado voluntário, desde que respeitadas as salvaguardas relativas à consulta livre, prévia e informada (Convenção 169 da OIT), as diretrizes aplicáveis à UC, o plano de manejo e as disposições do contrato real de concessão de uso, dando ciência e oportunizando a participação aos órgãos gestores, mas dispensada autorização.

Conclusão
Em suma, a titularidade dos créditos de carbono, quando oriundos de projetos REDD+ em terras coletivas, vai muito além do mero documento declaratório da posse ou propriedade, perpassando pela terra enquanto configuração sociológica, geográfica, histórica e étnica.

Assim, aos povos indígenas está garantido a posse permanente e o usufruto exclusivo, aos quilombolas a propriedade definitiva, e, no ponto mais discutido atualmente, às populações extrativistas a posse e a concessão de direito real de uso a partir de um contrato firmado com o Poder Público.

É inequívoco que os povos indígenas e as comunidades quilombolas detém a titularidade dos créditos de carbono gerados em seus territórios. A legislação não deixa dúvidas. Às populações extrativistas, por sua vez, devem ser reconhecidos os mesmos direitos, eis que possuem direito de uso e fruição da UC, com autonomia para escolher parceiros econômicos nesses processos – como no caso do manejo madeireiro, por exemplo.

Frise-se que, em todos os casos, os órgãos de governança de nível nacional devem exercer o acompanhamento e fiscalização de eventuais projetos a fim de evitar prejuízos, sem, no entanto, limitar o protagonismo e a autonomia das comunidades. Aqui, novamente, é mais um espaço a ser preenchido pelo Direito Privado.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

** As opiniões presentes na coluna são atribuíveis, exclusivamente, aos autores.

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 [1] REDD+ é a sigla para Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação Florestal, aliado ao + que designa a conservação de estoques de carbono florestal, o manejo florestal e o aumento dos estoques de carbono florestal.

[2] Sobre o tema, ver: JARDIM, Mônica. Direitos reais versus direitos pessoais. A eficácia real de direitos pessoais – actualidades civilísticas. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 19, ano 6, p. 295-332, abr.-jun. 2019.

[3] Sobre os direitos dos povos indígenas, ver: BERNARDO, Leandro Ferreira. Povos indígenas e direitos territoriais. Belo Horizonte: Del Rey, 2021.

[4] Nota Técnica sobre “Direitos territoriais frente a contratos de mercado de carbono”, elaborada pela Coordenação das Comunidades Quilombolas do Pará – Malungu, Terra de Direitos e Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Marinhas (CONFREM Brasil), 2023.

[5] Nota Técnica 02/2023 – Ministério Público Federal – Assunto: Limites e condições para a realização de projetos incidentes em terras públicas e territórios tradicionais, tomando por escopo os direitos territoriais a partir dos pressupostos de Direitos Humanos.

[6]Parecer no 00185/2021/CPAR/PFE-ICMBIO/ PGF/AGU, no Processo no 02070.003392/2021-01.

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